Todas as razões que levam autarquias e entidades públicas a fugir do concurso público

A Renascença contactou as 10 autarquias e as 10 entidades públicas que nos últimos três anos têm contratos mais avultados com escritórios de advogados, utilizando o ajuste direto de mais de 20 mil euros, invocando as exceções previstas na lei. Saiba como justificaram a opção quase única pela contratação direta. Esta é uma das partes do especial Renascença, "O império do ajuste direto".

14 mar, 2023 - 07:00 • João Carlos Malta (texto), Diogo Camilo (dados), Rodrigo Machado (grafismo e animação), Ricardo Fortunato (vídeo)



 

A imprevisibilidade. A urgência. A complexidade. A necessidade de confiança. A incapacidade de definir preços. Estas são algumas das justificações dadas pelas entidades públicas e pelas autarquias para não recorrerem a concursos públicos ou auscultar três propostas diferentes, e optarem de forma quase universal pelo ajuste direto. A transparência dos processos, garantem, é total. A maior parte não considera a concorrência um valor fundamental na decisão final de contratar um escritório de advogados.

O Código de Contratação Pública estabelece os 20 mil euros como limite máximo para o ajuste direto. No entanto, abre um conjunto de exceções em dois artigos, o 24.º e 27.º, cada um com vários números e alíneas. As autarquias e entidades públicas contactadas pela Renascença justificam a opção de contratação sem recurso a auscultação do mercado através destas janelas que a lei confere.

Olhando para esta realidade, o especialista em Direito Administrativo e professor de Direito Miguel Prata Roque acredita que o concurso público caminha para ser uma exceção.


“O sistema está a ser montado para que a contratação pública seja uma exceção”, começa por dizer. “O próprio legislador tem consciência de que é preciso flexibilizar o recurso ao ajuste direto e, portanto, vai detalhando em várias alíneas quais são os casos em que o ajuste direto é aceitável”, acrescenta Miguel Prata Roque.

Entre os anos de 2020 e 2022, o Estado e o setor público ꟷ inclui autarquias, entidades públicas, ordens profissionais, etc ꟷ fizeram 2.551 contratos de serviços com escritórios de advogados, mas desses apenas 25, ou seja 1%, é que foram feitos através de concurso público.



Explicador: O que é um ajuste direto?

Nas 15 respostas enviadas à Renascença por autarquias e entidades públicas, num universo de 20 que foram contactadas, a maior parte justifica a opção pelo ajuste direto com recurso a fatores materiais, utilizando o artigo do Código de Contratação Pública em que está escrito: “(…) permite o recurso àquele tipo de procedimento por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, que impossibilite o cumprimento dos prazos inerentes aos demais procedimentos”.

As justificações do Banco de Portugal

O Banco de Portugal, a entidade pública que de longe mais contratualiza através de ajuste direto ꟷ num total de 11 milhões de euros em três anos ꟷ explica em resposta à Renascença que a “celebração de contratos, que têm por objeto a elaboração de pareceres jurídicos, está sempre em causa o suporte da posição do Banco de Portugal através da obtenção de opiniões jurídicas dotadas de especial autoridade por parte de reputados académicos e especialistas, em domínios de grande tecnicidade e elevado nível de especialização”.

E que, por esse motivo, “inerente à natureza das prestações em causa, não é viável a utilização de procedimentos de índole concorrencial”.



Para a instituição liderada pelo ex-ministro das Finanças Mário Centeno, “estão em causa processos judiciais associados à resolução de instituições bancárias, com a inerente excecionalidade e imprevisibilidade, e que, como é sabido, se prolongam por um extenso período de tempo”.

“Ao mesmo tempo, a mesma prossecução do interesse públicos e as próprias regras deontológicas de exercício de advocacia exigem que se assegure a inexistência de conflitos de interesses o que, desde logo, reduz em termos muitíssimo substanciais o universo de possíveis adjudicatários”, contesta fonte oficial do BdP.

Por fim, refere “grande dimensão e complexidade” do contencioso em que está envolvido.


Mário Centeno, governador Banco de Portugal, lidera a instituição que mais recorre a serviços jurídicos externos. Foto: José Sena Goulão/Lusa
Mário Centeno, governador Banco de Portugal, lidera a instituição que mais recorre a serviços jurídicos externos. Foto: José Sena Goulão/Lusa

Num universo de 17 contratos, em três anos, só em 2021, o BdP tem dois contratos por ajuste direto com a Vieira de Almeida: um no valor de 4,365 milhões de euros e o outro de 2,5 milhões de euros. O primeiro tem um tempo de execução de dois anos e nove meses e o segundo prolonga-se por dois anos.

No ano anterior, o mesmo escritório já tinha celebrado um contrato com a mesma instituição no valor de 890 mil euros. O Banco de Portugal tem ainda, entre 2020 e 2022, mais dois contratos de 800 mil euros ou mais ꟷ ambos com a Cuatrecasas.

O critério da rapidez para resolver os casos é também invocado pela autarquia de Paços de Ferreira. A câmara duriense, a oitava que mais gasta com o trabalho de escritórios de advogados, enquadra os sete contratos de ajuste direto de mais de 20 mil euros com o contencioso que surgiu desde o final do ano de 2013. Estão relacionados com um conjunto de processos relativos a dois temas: PFR Invest ꟷ Sociedade de Reabilitação Urbano que entrou em insolvência ꟷ e a concessão de água e saneamento.

“Tais processos, intentados contra o Município são de elevado valor (em montantes superiores a mais de 150 milhões de euros), de grande complexidade e com prazos curtos de resposta”, argumenta fonte oficial da autarquia.



E, por isso, devido à ausência de recursos internos ꟷ aliada à especificidade e complexidade dos processos ꟷ o município contratou serviços externos, “por forma a responder em tempo útil e, naturalmente, assegurar a continuação do seu patrocínio (e, consequentemente, sua defesa) com base na estratégia delineada”.

Trabalho intelectual difícil de definir em critérios

Já a Gebalis, empresa municipal que gere os bairros de habitação social em Lisboa, justifica as opções tomadas com o argumento da necessidade de dar continuidade aos contratos existentes. Não faria sentido, segundo aquela entidade, passar a outro escritório de advogados casos que começaram a ser trabalhados anteriormente.

“Foram celebrados dois contratos por ajuste direto acima dos 20.000 euros, um em 2022 e um já em 2023. Ambas as sociedades têm à sua responsabilidade, à data de hoje, 420 processos jurídicos num caso e 105 processos jurídicos noutro caso, o que consubstancia o “critério material” que suporta a decisão. Seria imprudente e contra a defesa dos interesses da Gebalis não assegurar a continuidade do acompanhamento dos processos pela mesma entidade”, escreve.

A impossibilidade de definir um preço, por os serviços jurídicos constituírem um trabalho intelectual onde a elaboração de critérios contratuais é complexa, é outro argumento vastamente invocado para explicar o porquê da impossibilidade de lançar concursos públicos.



A Gebalis argumenta que recorre a ajustes diretos se deve à necessidade de dar continuidade aos processos.  Foto: António Cotrim/Lusa
A Gebalis argumenta que recorre a ajustes diretos se deve à necessidade de dar continuidade aos processos. Foto: António Cotrim/Lusa

É o caso da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), que escreve nas respostas à Renascença que a “natureza intelectual dos serviços a contratar não permite a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que sejam qualitativamente definidos atributos das propostas, necessários para fixar critério de adjudicação”.

Tal como o Banco de Portugal, a ARSLVT também invoca a complexidade dos processos. “Alguns dos referidos contratos respeitam a apoio ao acompanhamento da execução em diversas áreas acometidas à ARSLVT e com especial incidência nos contratos de gestão em Parceria Público-Privada (PPP) do Hospital de Cascais Dr. José de Almeida, Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, e Hospital de Vila Franca Xira”, explica.



Aquela Administração enquadra ainda o período de tempo e o trabalho que foi necessário executar. “Cumpre notar que os anos de 2020-2022 foram anos extraordinariamente exigentes no acompanhamento das PPP”, começa por explicar.

“A proximidade do termo destes contratos e a sua extinção foram acompanhadas de divergências entre o parceiro público, representado pela ARSLVT, e os respetivos parceiros privados, o que ditou processos arbitrais. O contencioso arbitral, específico, deu lugar a procedimentos com objeto justificadamente distinto e não previsto aquando da celebração do contrato respeitante ao acompanhamento das PPP”, refere.

Faltam advogados nas entidades públicas e autarquias

Licínio Martins, professor de Direito da Universidade de Coimbra e membro do Conselho Superior da Magistratura, elencou à Renascença um conjunto de motivos que levam as entidades públicas a recorrer a serviços externos de escritórios, entre os quais a falta de meios próprios. Essa é uma das razões referida pela Anacom - Autoridade Nacional de Comunicações.

Aparece logo a seguir ao Banco de Portugal como a segunda entidade que mais recorre aos serviços dos escritórios de advogados. E mais de 75% dos contratos são por ajuste direto acima dos 20 mil euros.

No total, somam o valor de 1,3 milhões de euros. “A necessidade de contratação de advogados externos prende-se com diversos fatores, desde logo com a inexistência de recursos humanos suficientes, a nível interno”, explica a Anacom.

Fonte oficial daquela entidade acrescenta que a escolha do prestador "não pode deixar de ter em conta a sua experiência curricular e a sua trajetória profissional anterior para, com base nestas, se formular um juízo quanto à respetiva aptidão técnica para executar o contrato”.

Para justificar o montante superior a um milhão de euros, a Anacom soma à necessidade de recurso a advogados externos, “a dimensão e capacidade económico-financeira de grande número das entidades reguladas”, e que, por isso, é fácil depreender que diversas empresas do setor contratam grandes equipas jurídicas (de conhecidos escritórios) para litigar contra o Regulador”.

O preceito da confiança ou fidúcia, como normalmente é referido na relação com advogados, é um argumento referido pela Câmara de Cascais ꟷ quarta autarquia com valores de ajuste direto mais altos, equivalentes a meio milhão de euros.



A câmara liderada por Carlos Carreiras argumenta que os critérios de "qualidade, disponibilidade, adaptabilidade, confiança” na contratação,“dificilmente são compatíveis com um mecanismo concorrencial”.
A câmara liderada por Carlos Carreiras argumenta que os critérios de "qualidade, disponibilidade, adaptabilidade, confiança” na contratação,“dificilmente são compatíveis com um mecanismo concorrencial”.

“A confiança recíproca e subjetiva que preside à prestação dos serviços jurídicos em causa inviabiliza qualquer tentativa de adoção e critério de adjudicação que se revele adequado a assegurar uma proposta que responda aos objetivos da aquisição pretendida, para além de estar em causa a continuidade da prestação de serviços de patrocínio judiciário”, explica fonte da autarquia.

A mesma diz que a adjudicação “tem de ser realizada com base em critérios de qualidade, disponibilidade, adaptabilidade, confiança”, mas que isso “dificilmente é compatível com um mecanismo concorrencial”.

Esta autarquia evidencia ainda que dos cerca de 500 processos em que está envolvida, em média, por ano, apenas 30% são externalizados para escritórios. Os restantes são tratados pelos advogados da Câmara de Cascais.

Concurso público: todos fogem a sete pés

A Ordem dos Enfermeiros ꟷ que em três anos contratou serviços de escritórios de advogados com valor superior a mais de um milhão de euros ꟷ garante a absoluta legalidade de todos os processos em que está envolvida. Sublinha que estando sujeita "a uma obrigação geral de concorrência, transparência e publicidade”, "só recorre a este ajuste direto para a aquisição de serviços jurídicos quando não existe, em concreto, viabilidade de qualquer outra solução concorrencial.”

Analisando os dados extraídos do Portal Base, verifica-se que quatro em cada dez contratos da Ordem dos Enfermeiros neste âmbito são por ajuste direto de valor superior a 20 mil euros. Se olharmos para o critério valor, a quase totalidade dos acordos (o equivalente a 900 mil euros) são feitos ao abrigo do ajuste direto.



Os problemas que resultam do lançamento de um concurso público são outra justificação comum para que a proporção no número e no valor dos ajustes diretos tenha alcançado este desequilíbrio.

A Gebalis, por exemplo, em relação aos concursos públicos, diz que o instrumento foi utilizado pela empresa em 2020 e motivou significativos prejuízos. “O concurso de assessoria jurídica à Gebalis (empresa municipal de Lisboa) foi ganho (critério preço) por uma sociedade de advogados do Porto, com as consequentes dificuldades”, sublinha.


A Casa da Moeda ꟷ soma quase 900 mil euros de ajustes diretos superiores a 20 mil euros, num universo de contratos que valem 1,1 milhões de euros. Foto: José Sena Goulão/Lusa
A Casa da Moeda ꟷ soma quase 900 mil euros de ajustes diretos superiores a 20 mil euros, num universo de contratos que valem 1,1 milhões de euros. Foto: José Sena Goulão/Lusa

E densifica as queixas em relação ao concurso público: “É particularmente complexo definir critérios que permitam a escolha dos melhores prestadores, até porque o CCP proíbe expressamente que se eleja a capacidade técnica dos concorrentes como critério de adjudicação”.

“Também não se aconselha neste tipo de contratação a adoção do critério do preço mais baixo dado que isso pressuporia que todos os potenciais concorrentes estariam em igualdade de condições ao nível técnico e de confiança para prestar o serviço – o que não se afigura de todo condizente com a realidade do mercado de prestação de serviços jurídicos”, acrescenta.

A Casa da Moeda ꟷ soma quase 900 mil euros de ajustes diretos superiores a 20 mil euros, num universo de contratos que valem 1,1 milhões de euros ꟷ segue esta linha de raciocínio e escreve, através de fonte oficial, que a escolha do prestador, neste caso não é compatível com uma adjudicação tendo como critério a proposta “economicamente mais vantajosa”, pois “não permite a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas” para definir critérios qualitativos ou quantitativos de adjudicação.

Concurso público põe em causa a confiança, diz Câmara do Porto

Já a Câmara do Porto, a segunda autarquia que mais recorre a serviços jurídicos, com um total contratado de um milhão de euros em três anos, diz que "a abertura à concorrência através da adoção de outros procedimentos, que não o ajuste direto, colocaria em perigo a natureza da relação de confiança inerente também à prestação de serviços de assessoria jurídica, quando para trabalhos altamente especializados”.



O concurso público é uma figura usada para defender a transparência dos contratos, mas também a concorrência no mercado. Ao representar 1% de todos os contratos com escritórios de advogados, como é que este princípio é defendido?

A Gebalis advoga que a concorrência “é muito importante”, “mas não é um valor intocável”.

A Casa da Moeda acrescenta ainda que existem outros valores tão importantes, como "a defesa do interesse público e a competitividade e capacidade de resposta do setor público empresarial, especialmente quando tem de atuar no mercado em concorrência com outras empresas privadas”.

A mesma Casa da Moeda diz defender a concorrência mesmo não usando o concurso público com frequência. Garante que tem sempre “privilegiado a contratação a vários fornecedores de serviços jurídicos, evitando a concentração de aquisições num único”.


Entre 2020 e 2022, "contratou dez escritórios/sociedades de advogados, o que mostra bem a preocupação de diversificação e compromisso com os valores da concorrência”.

A autarquia de Ponta do Sol, na Madeira, com ajustes diretos de quase 500 mil euros, e que representam a quase totalidade dos contratos de serviços de advogados, reclama: “Um procedimento aberto à concorrência para a prestação de serviços jurídicos comporta uma obrigatoriedade de descrever todas as prestações pretendidas, que na maioria os casos são desconhecidos pelas entidades adjudicantes, ou sendo conhecidas, permite que a pretensão da entidade seja publicamente conhecida, mesmo antes da mesma se efetivar. E tal é inconcebível”.

Já a autarquia do Porto argumenta ainda que existe alguma doutrina que defende que a contratação deste tipo de serviços deveria “ser entendida como excluído das regras da contratação pública”, "enquanto contratos cujo objeto abrange prestações que não estão nem são suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado”.

A câmara liderada por Rui Moreira alega que, em todas as contratações, o procedimento que adotou visou sempre a contratação de determinados advogados, em concreto identificados, justificados e fundamentados no procedimento, “e não a contratação de uma sociedade abstratamente considerada, independentemente dos advogados que a integram, ressalvando-se assim a necessária relação de confiança estabelecida.”



Câmara liderada por Rui Moreira alega que os contratos com escritórios de advogados "não estão nem são suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado".  Foto: Rui Manuel Farinha/Lusa
Câmara liderada por Rui Moreira alega que os contratos com escritórios de advogados "não estão nem são suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado". Foto: Rui Manuel Farinha/Lusa

E dá dois exemplos. O primeiro de Fernanda Paula Oliveira, que foi contratada para a elaboração, aprovação e acompanhamento do atual PDM do Porto, aprovado em 2021, por ser “uma destacada autoridade académica em matérias do urbanismo e do ordenamento do território, unanimemente reconhecida pelos seus pares, com um conhecimento e experiências únicas na elaboração de Instrumento de Planeamento Territorial”. Estes aspetos qualitativos, diz a autarquia, “que se revelaram absolutamente fundamentais”, “seriam impossíveis de serem transpostos para critérios de adjudicação”.

O segundo exemplo é relativo a João Taborda da Gama, que prestou “um serviço de assessoria jurídica altamente especializada no âmbito específico do Regulamento da Taxa Municipal Turística do Porto” e em questões conexas relacionadas com a fiscalidade do turismo.

A necessidade, explica a autarquia, surgiu de “terem sido suscitadas questões junto da Provedoria de Justiça, que colocavam em causa a legalidade da Taxa Turística”. Taborda da Gama, escreve a edilidade, é especialista em fiscalidade do turismo.



O executivo de Rui Moreira enaltece que a metodologia utilizada tem sido muito bem-sucedida. A taxa de sucesso dos processos foi “superior a 80%, no ano de 2022”.

Isso, diz fonte oficial da autarquia, por si só, atesta “a qualidade da representação forense exercida, possível, em boa parte, graças às contratações identificadas, defendendo, deste modo, de forma evidente, o superior interesse público”.

A Câmara de Cascais justifica também desta forma o virtuosismo das suas opções, alegando que a “esmagadora maioria” dos contratos tiveram ganho jurídico para o município. “De salientar ainda a redução muito significativa do volume indemnizatório potencial em contencioso”, alega a autarquia liderada por Carlos Carreiras em respostas escritas à Renascença.

Portal Base não diz quanto realmente foi gasto

Em relação ao montante global contratado envolvido na relação entre o setor público e os escritórios de advogados, que soma 92 milhões de euros em três anos, há várias entidades que alertam para uma questão que deve ser ponderada. O Portal Base inscreve os valores contratados e não os valores executados. Ou seja, não há uma listagem do valor efetivamente gasto.


Isso mesmo adverte, por exemplo, as Águas do Norte, que garantiram que "apenas três dos sete contratos em causa se mantêm em vigor”, e “constata-se que a execução dos contratos em apreço se cifra apenas em 321,2 mil euros, o que representa cerca de 44% do valor total de 715 mil euros”.

Não foram enviados os dados dos contratos que já terminaram, para perceber se há uma diferença objetiva entre o valor contratado e o valor efetivamente pago.


Também a Casa da Moeda afiança que os 894.850 euros são apenas um valor máximo de serviços jurídicos, não existindo qualquer obrigação de os consumir na totalidade. “A título informativo, até à data foi consumida a verba de 456.719,71 euros, muito inferior a 895 mil euros”, refere, ao, mesmo tempo que ressalva que os contratos se estabeleceram no regime de bolsa de horas e as mesmas podem ou não ser cumpridas na íntegra.

O caso Ponta do Sol

Aprofundemos agora o caso da autarquia da Ponta do Sol, um concelho com 8.360 habitantes na ilha da Madeira. É o sétimo município mais gastador no que diz respeito a serviços jurídicos com contratos, em três anos, de quase 469 mil euros. Sete em cada 10 contratos foram por ajuste direto e os mesmos valem 99% do valor gasto.

Em respostas à Renascença, demonstra a surpresa em relação a estar entre as 10 autarquias com maior volume de contratos com escritórios de advogados. E deixa uma dúvida em relação a outros que porventura não são tão transparentes.

“Podemos afirmar que o Município da Ponta do Sol, com os poucos recursos humanos que dispõe, pública todos os contratos na plataforma Basegov, o que, sabemos, não é frequente em todos os Municípios e demais entidades adjudicantes”, escreve em respostas escritas à Renascença.



 

“Assim, o “ranking” em que o Município da Ponta do Sol se encontra poderá dever-se ao facto do mesmo cumprir com as exigências legais de publicidade dos contratos públicos, num universo em que tal não é, ainda, a regra”, crítica.

A câmara insular não se pode dizer que é uma “exceção”. Apesar de concordar com o princípio da concorrência, alerta que nem todas as “prestações podem ser avaliadas pelo mercado, razão pela qual o próprio CCP designou mecanismos, que observados, permitem a contratação a um único operador, mas com observância dos requisitos para o efeito, sendo os mesmos, objeto de publicidade”.



Sublinha que todos os atos e procedimentos lançados pelo município “são fundamentados e enquadrados nas opções do CCP”, mas reconhece que existe um “estigma” no recurso ao ajuste direto pela forma como a sociedade o interpreta.

Fonte oficial daquela câmara deixa ainda uma farpa ao sistema. Diz que prefere “utilizar os meios legais existentes, fundamentando-os", do que recorrer “às típicas simulações concertadas de recurso ao mercado, apenas para se olvidarem do escrutínio público”.

“A comunicação social e a sociedade em geral impele-se em analisar os declarados ‘ajustes direto’ incitando-lhes um carácter negativo à partida. No entanto, desde que devidamente enquadrados e fundamentados, é um meio totalmente transparente, objetivo e legal”, assegura a autarquia de Ponta do Sol.

A mesma câmara sublinha não ter advogados nos quadros, apenas juristas, e que isso faz com que os recursos internos não possam representá-la em tribunal. Desde 2015, que as autarquias apenas podem contratar juristas e estão impedidas de fazer admissões de novos advogados para os quadros.



“Isto significa que, as entidades adjudicantes que não tinham advogados nos seus quadros (como é o caso da Ponta do Sol) não podem colmatar as suas necessidades senão através do recurso à contratação pública para a prestação desses serviços”, conclui.

Das 20 entidades contactadas pela Renascença não responderam às questões cinco: a Câmara de Lisboa, a Câmara de Guimarães, a Câmara de Albufeira, a Câmara de Santarém e o Banco de Fomento.

No entanto, houve entidades como os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde que, ao conjunto de cinco perguntas concretas da Renascença, decidiram responder com uma frase: “A SPMS tem contrato com três sociedades de advogados, todas elas já colaboravam com a SPMS antes de 2020.”


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