A lenta erosão
Os números, por regra, são cegos ao contexto. E os da OCDE sofrem dessa limitação, aponta o sociólogo Elísio Estanque, autor do livro “Classe Média: Ascensão e Declínio” (ed. FFMS). “Os critérios usados para a medição da classe média estão um pouco pervertidos.”
O problema, nota Elísio Estanque, prende-se “com a falta de indicadores que sejam um pouco mais elaborados que o mero critério do rendimento salarial”. Fatores como a educação ou hábitos de consumo, por exemplo, são também importantes para se ter um retrato real do país.
Ainda assim, o sociólogo admite: os salários são um elemento fundamental para análise. O rácio entre o SMN e o salário mediano em Portugal (924 euros) está, neste momento, nos 85%. Caso o salário mínimo continue a aumentar ao mesmo ritmo que desde 2015, até 2030 o rácio poderá chegar aos 100% - ou seja, o valor do salário mediano em Portugal ser igual ao do salário mínimo nacional.
À Renascença, Elísio Estanque lembra ainda que se tem observado uma relativa aproximação do salário mínimo nacional (760 euros) ao salário médio nacional (1.361 euros brutos) nos últimos anos. Até ao final da legislatura, em 2026, o Governo pretende aumentar o SMN até aos 900 euros.
“Isso significa que as classes que até então estavam mais estáveis e se sentiam mais protegidas, com expectativas de subida e reconhecimento e de melhoria económica, têm sofrido talvez mais até do que aqueles que estão na base da pirâmide social, que devido às políticas sociais têm sido mais objeto de atenção do que os setores intermédios”, afirma.
De acordo com dados recentes do Eurostat, o salário médio bruto por ano em Portugal foi de 19.300 euros em 2021, enquanto a média europeia foi de 33,5 mil euros; o décimo valor mais baixo de toda a União Europeia. “O salário médio em Portugal é dos mais baixos dos países da OCDE. Isso significa que a economia não tem conseguido acompanhar aquilo que é um processo de qualificação das gerações mais jovens em Portugal”, diz.
Frederico Cantante, professor universitário no ISCTE e investigador no Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLABOR), subscreve as mesmas teses que Elísio Estanque. Nas últimas décadas, “houve uma recomposição acelerada da população portuguesa”, em particular ao nível da formação superior, mas “no campo dos rendimentos houve um hiato”, defende.
O sociólogo encontra até um reflexo contemporâneo deste problema nas greves dos professores nas últimas semanas.
“Aquilo que estamos a ver neste momento na greve dos professores é de facto um bom exemplo daquilo que podemos chamar de desqualificação social ou simbólica de um grupo de pessoas que, objetivamente, se enquadra na classe média portuguesa, do ponto de vista socioprofissional. Mas, do ponto de vista do rendimento, são pessoas que têm vindo a perder bastante”, aponta.
Há dez anos, o salário de um professor poderia ser facilmente encarado como um salário de alguém de classe média. Hoje, é pouco provável. O crescimento de salários abaixo do PIB, os preços da habitação a galopar e a inflação fizeram com que os rendimentos de “uma boa parte da população portuguesa estejam bastante condicionados, bastante magros”.
Houve “uma grande compressão” entre o valor do salário mínimo e o salário médio: uma diferença que varia entre os 250 e os 300 euros, como indica o estudo “Os salários em Portugal: padrões de evolução, inflação e desigualdades”, publicado em dezembro de 2022, e do qual Frederico Cantante é coautor.
Por vários motivos, Frederico Cantante não fica espantado que apenas 32% dos portugueses tenham dito à OCDE que se sentiam de classe média. “As pessoas tendem a posicionar-se abaixo, a subestimar a sua posição de rendimentos”, em sociedades cujo nível de desigualdade social é maior, explica.
Em norma, pertencer à classe média é algo que as pessoas associam a estar numa posição de segurança, com previsibilidade quanto ao futuro. Um cenário que não bate certo com o “aumento da precariedade laboral que houve em Portugal” nos últimos anos.