Coliving. Um co-problema ou uma co-solução para a habitação?

O conceito já anda por aí e promete muito: uma vida mais comunitária, outra forma de pensar e desenhar uma casa. Em Portugal, há projetos de coliving que vão das residências para estudantes à habitação de luxo, passando pelo setor cooperativo. Em Palmela, a Cooperativa das Formas está a tentar erigir uma comunidade sem senhorios e sem especulação. Mas de que forma pode afetar o mercado imobiliário? “O processo de gentrificação que aí vem vai ser sobretudo a partir da classe média, que não vai ter capacidade para pagar a sua casa”, aponta o arquiteto Tiago Mota Saraiva.

06 dez, 2022 - 07:00 • Fábio Monteiro



Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Ilustração: Rodrigo Machado/RR

Apesar da inflação, os preços das casas em Portugal continuam a aumentar. E o setor do arrendamento segue pelo mesmo caminho: só em novembro, de acordo com dados do portal Imovirtual, as rendas aumentaram 9%; um T1 em Lisboa por menos de 600 euros é uma espécie rara que já não é avistada há bastante tempo.

O Governo de António Costa já prometeu que o Programa de Resolução e Resiliência (PRR), com 1.250 milhões alocados à construção de habitação pública, ajudará a controlar o aumento dos preços. Mas quando e como ninguém sabe dizer.

Face à asfixia crescente do mercado imobiliário, há cada vez portugueses a procurar alternativas, a refletir sobre o que é habitar um espaço e ter um teto. E um dos conceitos que tem vindo a gerar mais debate e interesse é o coliving, uma espécie de filosofia arquitetónica mas também social.

O que é o coliving?

O coliving assenta na construção de habitações com áreas reduzidas, à medida das necessidades reais e em diálogo com os moradores, no privilegiar da criação de espaços comuns – cozinhas e lavandarias, por exemplo - e da vida em comunidade. Na Dinamarca, país de origem do conceito, é visto como uma nova iteração das cooperativas de habitação -- mais uma forma de luta contra a especulação imobiliária.

“Diminui-se muito [em área] os apartamentos e depois criam-se espaços comuns, de utilização coletiva, de coworking ou assim. As pessoas comem juntas, apoiam-se. Uma pessoa pode cuidar das crianças, outra dos idosos, por exemplo”, explica Sónia Alves, investigadora do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, à Renascença.

No entanto, o coliving não é apenas isto. O conceito tem várias declinações, diferentes significados consoante o país e o contexto em que é utilizado. E se nuns casos é parte da solução, noutros é um isco para investimento.

Em Portugal, por exemplo, existem algumas cooperativas de habitação a explorar o modelo, mas as feições mais visíveis do conceito estão no campo comercial.

A promotora imobiliária Gavinho Properties está a remodelar um prédio de quatro andares, em Campo Ourique, bairro emblemático de Lisboa, e a convertê-lo em 22 pequenos apartamentos (com áreas que vão dos 39 aos 95 metros quadrados). A startup israelita Willa investiu 10 milhões de euros para criar 39 unidades de habitação de luxo no Porto.

Em solo nacional, há pelo menos oito espaços de coliving, a maioria dos quais situados em Lisboa ou nos arredores, que podem ser considerados, como a Bloomberg lhes chamou em 2018, “dormitórios para adultos”. Por outras palavras: espaços onde se alugam quartos ou estúdios ao mês, que funcionam como residências, em edifícios desenhados ou reconstruídos de modo a privilegiar uma vida comunitária.

“No fundo, o que estão a vender é espaços para estudantes estrangeiros ou para nómadas digitais. É onde a malta fica dois ou três meses a trabalhar, pronto. Eu já fiquei em alguns em Inglaterra e na Dinamarca, em trabalho. E aquilo é ótimo, serve o propósito”, diz Sónia Alves.


 

Uma Co.Lisboa

Em Benfica, numa das laterais do Jardim Zoológico de Lisboa, é possível encontrar o Co.Lisbon, um projeto de Patrícia Raposo e de Mariana Magalhães, que abriu portas no arranque de 2021.

O edifício tem uma cozinha comunitária em cada piso; no rés-do-chão todos os espaços livres são salas comuns: servem para trabalho, mas também para encontros informais. Ao todo, há 28 quartos, 16 dos quais com kitchenette. Os preços começam nos 690 euros e vão até aos 1.200 mensais.

Há alguns anos, Patrícia Raposo descobriu o conceito do coliving (na versão dos EUA) através de uma publicação internacional e viu aí uma oportunidade. “Na altura, já estava a aparecer a dificuldade, que hoje é mais premente, de arranjar habitação no centro da cidade [de Lisboa], sobretudo para jovens em início de carreira”, conta à Renascença.

Como já geria e era proprietária de um espaço de coworking, a empreendedora portuguesa não estranhou a filosofia. Era apenas mais um reflexo da ideia de comunidade, de um “espírito que já existia”.

O coliving abre a “possibilidade de viver-se e experienciar-se outras realidades, outros países, de forma comunitária, de uma forma socialmente muito mais interessante. De repente, a pessoa que quer trabalhar fora, que quer viajar, fá-lo, desde logo, acompanhado, de outras pessoas que estão a viver essa realidade também.”

Desde que o Co.Lisbon abriu portas, a maioria dos hóspedes – que ficam, no mínimo, por cinco ou seis meses – têm sido cidadãos estrangeiros. “De estudantes de mestrado para cima, digamos. Ou profissionais que trabalham remotamente ou que se mudaram para Lisboa para trabalhar.” Ainda assim, para surpresa de Patrícia, também houve uma percentagem significativa de portugueses a recorrer a esta opção de alojamento. “No ano passado, tivemos seis residentes portugueses, mais do que estávamos à espera à partida.”

O que significa o fluxo de portugueses? O coliving é uma solução ou um problema para o mercado imobiliário? Patrícia não arrisca uma resposta.

No seu entender, o coliving é apenas “uma solução para quem procura companhia”. Já as dinâmicas do mercado de arrendamento correspondem a uma “realidade internacional”, um problema que “está a ser vivido noutras capitais do mundo” e que está patente na “dificuldade em encontrar habitação no centro da cidade a valores capazes de serem pagos por pessoas em início de carreira”.


Cerimónia de entrega de 128 chaves de Habitação em Renda Acessível em Lisboa Foto: António Cotrim/Lusa
Cerimónia de entrega de 128 chaves de Habitação em Renda Acessível em Lisboa Foto: António Cotrim/Lusa

Defeitos de fabrico?

Falar de coliving em Portugal é complicado e tem algumas rasteiras. A Lei de Bases da Habitação, aprovada em 2019, faz referência a “infraestruturas e equipamentos coletivos”, mas não faz nenhuma menção à ideia de que uma comunidade possa ter autonomia para influenciar o projeto habitacional onde irá morar.

No mesmo sentido, o regime geral de edificações urbanas, em vigor desde 1951, está também datado, defende à Renascença Tiago Mota Saraiva, arquiteto do ateliermob e membro da cooperativa “Trabalhar com os 99%”.

O modelo, concebido pelo Estado Novo, “continua a privilegiar a ideia de um tipo de habitação, que vem sendo mantido, sobretudo devido aos lóbis das construtoras”, acusa.

“Temos um problema que é a legislação não acompanhar este evoluir dos tempos.”

Para o arquiteto, o conceito de coliving, tal como está implementado no país, “abre portas a pessoas que vêm de fora, que procuram comunidade, e muitas vezes está associado a uma certa capacidade financeira”. E isso não é um dilema. “Eu não critico. O que importa é fazer chegar [o mesmo modelo] a mais gente.”

Por comparação, Sara Brysch, arquiteta portuguesa e investigadora na Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda, tem uma visão menos simpática. Prova disso é que o conceito nem é visado na investigação do doutoramento sobre habitação colaborativa que está a prestes a concluir, como indica à Renascença.

“Sou bastante crítica do modelo de coliving. É um modelo especulativo que acaba por tirar partido do facto da construção até poder ser apelativa, porque constrói-se mais pequeno, muitos espaços compartilhados. Portanto, não há tantos gastos [para os promotores]. Há uma certa exploração financeira do conceito.”

Segundo Sara, para se falar realmente num projeto de coliving é necessário, por um lado, que exista o envolvimento dos futuros residentes no processo de design; e por outro, que o fim último não seja comercial nem a criação de um ativo de investimento.

Por isso mesmo, o coliving “não chegará ao mainstream”, nem permitirá resolver “o problema da habitação”, defende a especialista.

“O que permite é uma outra possibilidade para além da propriedade privada e o arrendamento normal, quer seja público, quer seja privado. O setor colaborativo permite uma maior independência por parte dos cidadãos em resolver o problema da habitação. Não tem de ficar ali à espera que o setor público tenha de resolver o problema por eles”, diz.

A título de exemplo, tanto Tiago Mota Saraiva como Sara Brysch referem a cooperativa La Borda, em Barcelona, como um dos projetos pioneiros; funciona como uma verdadeira “cooperativa de residentes”, não apenas de habitação. Além de todo o processo de construção – num terreno cedido pela câmara – ter sido feito em colaboração com os residentes, com foco nas áreas comuns, a propriedade das casas é coletiva.

De modo a controlar a especulação, nenhuma habitação pode ser vendida a título individual ou por um preço superior ao custo do investimento inicial. Aliás, a propriedade da habitação não é sequer hereditária, não é um investimento que se possa legar a gerações futuras – apesar de ser possível que familiares tenham direito de preferência quando concorrem ao espaço.

Em La Borda, os moradores abdicaram de construir um parque de estacionamento, o que diminuiu os custos da intervenção; quando o município disse que ia fazer um grande jardim na retaguarda do novo bairro, tiveram oportunidade de dizer: “Queremos que a entrada do jardim seja pela nossa cooperativa”.

“Este é um modelo de negociação, parceria e de interesse público que importa estimular”, defende Tiago Mota Saraiva.


Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e Habitação. Foto: Tiago Petinga/Lusa
Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e Habitação. Foto: Tiago Petinga/Lusa

A nova onda da gentrificação

Quando é que comprar casa passou a ser um investimento, em teoria, lucrativo? Nas últimas décadas, segundo Tiago Mota Ribeiro, “habituámo-nos a ver a habitação privada como um investimento para fins especulativos. Mesmo com a nossa [casa], depois de a comprarmos, estamos sempre a ver quanto vale”.

O arquiteto antecipa que os problemas da habitação em Portugal só vão agravar-se nos próximos tempos. E prevê mesmo que vem aí uma nova onda de gentrificação que vai afetar, em particular, a classe média.

“As pessoas vão começar a perceber, pela primeira vez, que a casa própria que compraram com apoio do banco não é bem a casa própria. Podem perdê-la. As pessoas dizem sempre: prefiro estar a pagar ao banco, porque a casa é uma coisa que é minha, em vez de estar a pagar a um senhorio. E agora vão perceber que a coisa não era totalmente sua. E que se, de repetente, não conseguirem pagar, a casa fica no banco”, diz.

“Isto já está a acontecer. Há muitos anos que digo isto: o processo de gentrificação que aí vem vai ser sobretudo a partir da classe média que não tem capacidade para pagar a sua casa. E que é escondido porque as pessoas têm vergonha. As pessoas que têm vergonha estão a recuar, afastam-se dos territórios. E também porque ainda conseguem vender. Conseguem vender ainda caro.”

De acordo com Tiago Mota Saraiva, podemos estar perante um período de asfixia financeira semelhante ao que se viveu no país durante o período da troika, quando “as pessoas tinham vergonha de dizer que não conseguiam pagar a renda e preferiam não fazer duas refeições quentes a deixar de pagar. E só diziam já no fim, no limite”.

Agora, o mesmo cenário irá repetir-se com “uma classe média que tem mais visibilidade” e com uma nuance: “Se em 2012, 2013, os bancos não queriam ficar com as casas, sob o risco de as terem de declarar com ativos mais baixos do que aqueles que tinham, agora que estamos num momento de inflação acho que é o oposto. E os bancos vão querer ficar com as casas à primeira coisa. E aí sim, acho que é preciso legislação. E muita mediação do Estado.”


Foto: Abedin Taherkenareh/EPA
Foto: Abedin Taherkenareh/EPA

Novas formas de viver

Os sonhos começam na imaginação e ganham forma através da ação. A Cooperativa da Formas, em Palmela, está a trabalhar para concretizar um. O terreno, com cerca de 20 hectares, para construção de um projeto de coliving já foi comprado; o design do projeto arquitetónico está nas mãos de Sara Brysch.

A iniciativa partiu de Fernando Santos e tem raízes biográficas. O homem de 63 anos lembra-se de ouvir, em criança, a mãe e outros familiares falarem “sobre a possibilidade de se juntarem numa casa”, numa comunidade, para o final de vida, de forma a não ficarem sozinhos.

Chegado à senioridade, Fernando deu por si a ter o mesmo tipo de conversas. Decidiu desafiar um grupo de amigos e começou a explorar possibilidades.

A primeira tentativa para comprar um terreno foi na zona da praia do Meco. O negócio esteve quase, quase para acontecer – até que o vendedor saiu de cena.

“O terreno era barato, porque, na teoria, não dava para construir. Mas a câmara estava aberta a fazer uma leitura mais simpática do Plano Diretor Municipal (PDM), tendo em conta o propósito do projeto”, explica à Renascença.

Para o projeto do Meco, Fernando e os amigos não tiveram dificuldade em encontrar pessoas interessadas. Só depois tomaram consciência: havia interessados “não tanto em construir comunidade, não no valor de uso do terreno, mas no valor de troca”. Ou seja, queriam lucrar, fazer apenas negócio.

A experiência do Meco serviu de lição para futuro. Quando o terreno em Palmela foi encontrado, os estatutos da cooperativa blindaram o projeto. Todo o projeto ficou estabelecido como propriedade coletiva. “Quem entra sabe: o terreno é barato, mas nunca o vai conseguir vender ao valor de mercado.”

“Temos blindagem para especulação. Por exemplo, até março a cooperativa tem de fazer a aprovação de contas do ano anterior, e dizer: o valor do investimento na casa foi de 100 mil euros. Temos de escolher um índice de atualização do património investido, uma inflação de 6%, por exemplo. Para o ano, posso vender a minha participação da cooperativa por 106 mil euros, mais nada”, exemplifica.

Inicialmente, a compra do terreno foi feita por três cooperantes. Mas, neste momento, a Cooperativa das Formas já conta com oito membros. “Assim que tivemos chão, tivemos interessados. Perceberam que não era só uma ideia.” O mais novo tem 49 anos, o mais velho tem 63. “Não conseguimos encontrar jovens com poder económico”, lamenta Fernando, lembrando que, nos países nórdicos, a comunidades de coliving são muitas vezes intergeracionais.

No centro das habitações, que ainda estão a ser desenhadas e pensadas, ficará um edifício grande, com lavandaria, cozinha, ginásio e até duas suites para visitas. “No dia em que a gente precisar de ajuda, em vez de ir para o lar, vem o lar até nós. Podemos ter alguém em permanência”, diz Fernando. E com isso a possibilidade de viver, até ao fim dos seus dias, em comunidade.


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