Defeitos de fabrico?
Falar de coliving em Portugal é complicado e tem algumas rasteiras. A Lei de Bases da Habitação, aprovada em 2019, faz referência a “infraestruturas e equipamentos coletivos”, mas não faz nenhuma menção à ideia de que uma comunidade possa ter autonomia para influenciar o projeto habitacional onde irá morar.
No mesmo sentido, o regime geral de edificações urbanas, em vigor desde 1951, está também datado, defende à Renascença Tiago Mota Saraiva, arquiteto do ateliermob e membro da cooperativa “Trabalhar com os 99%”.
O modelo, concebido pelo Estado Novo, “continua a privilegiar a ideia de um tipo de habitação, que vem sendo mantido, sobretudo devido aos lóbis das construtoras”, acusa.
“Temos um problema que é a legislação não acompanhar este evoluir dos tempos.”
Para o arquiteto, o conceito de coliving, tal como está implementado no país, “abre portas a pessoas que vêm de fora, que procuram comunidade, e muitas vezes está associado a uma certa capacidade financeira”. E isso não é um dilema. “Eu não critico. O que importa é fazer chegar [o mesmo modelo] a mais gente.”
Por comparação, Sara Brysch, arquiteta portuguesa e investigadora na Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda, tem uma visão menos simpática. Prova disso é que o conceito nem é visado na investigação do doutoramento sobre habitação colaborativa que está a prestes a concluir, como indica à Renascença.
“Sou bastante crítica do modelo de coliving. É um modelo especulativo que acaba por tirar partido do facto da construção até poder ser apelativa, porque constrói-se mais pequeno, muitos espaços compartilhados. Portanto, não há tantos gastos [para os promotores]. Há uma certa exploração financeira do conceito.”
Segundo Sara, para se falar realmente num projeto de coliving é necessário, por um lado, que exista o envolvimento dos futuros residentes no processo de design; e por outro, que o fim último não seja comercial nem a criação de um ativo de investimento.
Por isso mesmo, o coliving “não chegará ao mainstream”, nem permitirá resolver “o problema da habitação”, defende a especialista.
“O que permite é uma outra possibilidade para além da propriedade privada e o arrendamento normal, quer seja público, quer seja privado. O setor colaborativo permite uma maior independência por parte dos cidadãos em resolver o problema da habitação. Não tem de ficar ali à espera que o setor público tenha de resolver o problema por eles”, diz.
A título de exemplo, tanto Tiago Mota Saraiva como Sara Brysch referem a cooperativa La Borda, em Barcelona, como um dos projetos pioneiros; funciona como uma verdadeira “cooperativa de residentes”, não apenas de habitação. Além de todo o processo de construção – num terreno cedido pela câmara – ter sido feito em colaboração com os residentes, com foco nas áreas comuns, a propriedade das casas é coletiva.
De modo a controlar a especulação, nenhuma habitação pode ser vendida a título individual ou por um preço superior ao custo do investimento inicial. Aliás, a propriedade da habitação não é sequer hereditária, não é um investimento que se possa legar a gerações futuras – apesar de ser possível que familiares tenham direito de preferência quando concorrem ao espaço.
Em La Borda, os moradores abdicaram de construir um parque de estacionamento, o que diminuiu os custos da intervenção; quando o município disse que ia fazer um grande jardim na retaguarda do novo bairro, tiveram oportunidade de dizer: “Queremos que a entrada do jardim seja pela nossa cooperativa”.
“Este é um modelo de negociação, parceria e de interesse público que importa estimular”, defende Tiago Mota Saraiva.