Alemanha tem medo da conta do gás. Menos tempo no duche?

O preço do gás aumenta todos os dias e os alemães estão preocupados com a conta no final do ano. Como poupar energia tornou-se quase uma obsessão nacional. Os alimentos também estão mais caros e a desigualdade social aumenta. Haverá protestos em breve?

14 set, 2022 - 17:55 • Guilherme Correia da Silva, correspondente na Alemanha



Há meses que os alemães fazem contas à vida. Como poupar gás e eletricidade tornou-se quase uma obsessão nacional. Foto: Yahya Arhab/EPA (arquivo)
Há meses que os alemães fazem contas à vida. Como poupar gás e eletricidade tornou-se quase uma obsessão nacional. Foto: Yahya Arhab/EPA (arquivo)

A conta do gás mete medo e ainda nem chegou à caixa de correio dos alemães. O verão está a acabar, as temperaturas começam a descer e aumentam as dúvidas: Haverá gás suficiente para aquecer as casas no inverno? Quanto é que as famílias vão ter de pagar extra? Mais 1.000 euros por mês, como se estima para quatro pessoas? Será que vão conseguir pagar?

"A sociedade está extremamente preocupada", diz o politólogo alemão Mario Candeias em entrevista à Renascença.

Três em cada quatro alemães temem uma quebra no abastecimento de energia nos próximos meses, segundo uma sondagem da BdB, a federação dos bancos privados, divulgada no final de agosto. E não só. Estão também preocupados com a subida galopante dos preços dos alimentos: em agosto, 14,8% em comparação com o ano anterior, quase o dobro da inflação média, que rondou os 7,5%.

Se com a pandemia da Covid-19 "a desigualdade social acelerou", agora a situação pode agravar ainda mais, alerta Mario Candeias, diretor do Instituto de Análise Social da Fundação Rosa Luxemburgo, ligada ao partido A Esquerda.

"O aumento dos preços da energia, dos alimentos e da renda da casa faz com que muitas pessoas deixem de poder financiar a sua vida quotidiana, não só quem tem menos rendimentos mas também a classe média."

O gás barato sai caro

A invasão russa da Ucrânia mudou tudo. Até aqui, a Alemanha confiava nos abastecimentos de gás da Rússia, mais de metade das importações de gás provinham daí. Mas as relações entre os dois países esfriaram com a guerra.

Moscovo é alvo de sanções; a Alemanha tem enviado ajuda humanitária, armas e dinheiro para a Ucrânia. Agora, volta e meia a Rússia fecha a torneira ao gás, invocando problemas técnicos. Os preços sobem em flecha.

A 24 de fevereiro, o primeiro dia da invasão, o gás estava a 12,3 cêntimos por kilowatt-hora. Na sexta-feira passada, 9 de setembro, estava a 38,3 cêntimos.

Segundo a chefe da diplomacia alemã, Annalena Baerbock, este é o preço da dependência energética fomentada pelos últimos governos federais. "Na realidade, nunca recebemos gás barato da Rússia. O preço até pode ter sido barato em determinadas alturas, mas o que levou a esse preço baixo foi meramente uma dependência cega ou a troca de infraestrutura, o que na verdade era um risco de segurança."

O barato saiu "duas ou três vezes" mais caro à "segurança nacional", acrescentou Baerbock.


Gasoduto Nord Stream 1. Foto: Anatoly Maltsev/EPA
Gasoduto Nord Stream 1. Foto: Anatoly Maltsev/EPA

A guerra na Ucrânia fez com que os erros na política energética alemã ficassem à vista de todos.

Depois da II Guerra Mundial, acreditou-se que Moscovo "seria um parceiro confiável para o fornecimento de energia", disse, em abril, Rafael Loss, investigador do Conselho Europeu de Relações Internacionais (ECFR, na sigla em inglês) em declarações à Renascença.

Mas há várias décadas que há sinais em contrário, de acordo com o investigador: "Por exemplo, em 1990, o Kremlin cortou o fornecimento de petróleo à Lituânia para tentar coagir a recém-independente república báltica a regressar à União Soviética. Desde 1991 que a Ucrânia tem sido alvo constante da chantagem energética russa, sempre que se afastava demasiado da linha do Kremlin", escreveu Rafael Loss no site do ECFR.

Para o investigador, foram décadas de "ingenuidade, incompetência e ganância" que levaram os políticos alemães "a aprofundar progressivamente a dependência do gás natural russo".


Central a carvão de Neurath a todo o vapor.  Foto: Sascha Steinbach/EPA
Central a carvão de Neurath a todo o vapor. Foto: Sascha Steinbach/EPA

Menos tempo no duche?

Agora, há meses que os alemães fazem contas à vida. Como poupar gás e eletricidade tornou-se quase uma obsessão nacional. O medo da fatura energética no final do ano é grande.

A imprensa dá várias dicas, desde reajustar a temperatura do frigorífico para 7 graus até trocar as lâmpadas normais por LED. Usar mantas e beber chá quente em vez de usar o aquecimento a gás nas casas são outras sugestões.

Em junho, o ministro alemão da Economia, Robert Habeck, disse à revista Spiegel que "reduziu consideravelmente" o tempo em que toma duche.

O Governo decidiu que, a partir de setembro, piscinas privadas deixam de poder ser aquecidas a gás e eletricidade. Nas ruas, as luzes de placards de publicidade e montras devem ser desligadas das 22h00 às 6h00.

As instituições públicas também já entraram em modo de poupança de energia. O aquecimento em edifícios públicos não pode ultrapassar os 19 graus (ao contrário dos 20 atuais), exceto em unidades de saúde e lares para idosos. E os aquecedores terão de ficar desligados em corredores e halls de entrada.

Neste inverno, a capital alemã quer reduzir o consumo de energia em pelo menos 10%. À noite, monumentos emblemáticos de Berlim, como a Porta de Brandemburgo, ficarão às escuras.

Será que chega?

Mesmo assim, o medo em relação ao futuro mantém-se. As preocupações estendem-se também às empresas. Será que algumas vão ter fechar as portas ou reduzir pessoal porque não conseguem acompanhar a subida dos custos de produção?

"Encaramos estas preocupações com bastante seriedade", garantiu este mês o chanceler Olaf Scholz. "A minha promessa é: Não deixaremos ninguém para trás".

Scholz anunciou várias medidas para tentar aliviar a situação, algumas até relativamente semelhantes às que foram anunciadas em Portugal.

Tanto em Portugal, como na Alemanha, estudantes, trabalhadores e reformados receberão um subsídio para ajudar a pagar as contas do gás e da eletricidade. Na Alemanha, os estudantes receberão 200 euros; trabalhadores e reformados recebem 300 euros, sem exceções.

No verão, o Governo alemão financiou um passe para os transportes públicos, a 9 euros por mês. Foi um sucesso. Agora, disponibilizou 1,5 mil milhões de euros para arquitetar mais passes a preços acessíveis. Em Portugal, António Costa anunciou o congelamento dos preços dos passes de transportes públicos.

O primeiro-ministro português prometeu também baixar o IVA da eletricidade de 13% para 6%. Na Alemanha, Scholz quer introduzir um desconto para o consumo básico de cada família, que será financiado com receitas extraordinárias de empresas de energia.

A Esquerda diz que as medidas anunciadas por Scholz não chegam. De acordo com o partido, "para a maioria das pessoas que sofrem com os preços exorbitantes, o alívio é muito pequeno. A Esquerda quer ajuda direcionada para pessoas com rendimentos médios e baixos" e apela a protestos.

Outras vias?

Na vizinha República Checa, 70 mil pessoas - tanto da extrema-esquerda como da extrema-direita - foram para a principal avenida de Praga, no início do mês, protestar contra o aumento do custo de vida.

Em julho, a inflação no país rondou os 17,5% e teme-se que atinja os 20% em breve.

Na Alemanha, protestos desta magnitude também podem despontar nos próximos meses, prevê o politólogo Mario Candeias.

Há uma semana, já houve um protesto em Leipzig, no leste da Alemanha, em que participaram cerca de 3.000 pessoas. Mas o número de manifestantes pode aumentar assim que os alemães receberem a "fatura do gás pelo correio", diz Mario Candeias.

"É sempre difícil dizer, mas acreditamos que haverá protestos no outono. A situação é bastante tensa e o Governo reage com hesitação e medidas insuficientes. E, infelizmente, é preciso dizer que a direita radical também tentará lucrar com a situação."


Protesto contra a política energética do governo, em Leipzig. Foto: Hannibal Hanschke/EPA
Protesto contra a política energética do governo, em Leipzig. Foto: Hannibal Hanschke/EPA

O partido de extrema-direita AfD considera que uma das causas da crise energética é a insistência na transição para fontes renováveis à custa do "cidadão comum".

Alice Weidel, dirigente do partido, diz que a solução passa por outro tipo de tecnologias: "A AfD não só quer reativar as centrais nucleares na Alemanha, como também investir na pesquisa e construção de centrais modernas e seguras. É a única forma de nos tornarmos verdadeiramente independentes", escreveu Weidel na rede social Twitter.

O Governo alemão opta por outro caminho. O Ministério da Economia e Proteção do Clima anunciou, na semana passada, que planeia manter duas das três centrais em prontidão, durante o inverno. Mas a terceira será encerrada como previsto, no final do ano.

A Alemanha continua, entretanto, à procura de alternativas ao gás russo.

Para a ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, o "maior escudo contra os jogos de poder de Moscovo com o carvão, o gás e o petróleo é um apoio direcionado às pessoas preocupadas por deixarem de poder aquecer as suas casas" nos próximos meses. "Ao mesmo tempo, cada centavo investido em painéis solares, parques eólicos e centrais de hidrogénio verde é um investimento na nossa segurança", escreveu Baerbock num artigo de opinião no semanário Zeit.

Mas enquanto a energia de outras fontes não chega, a poupança mantém-se, nas instituições públicas, nas empresas e em casa.

Atualmente, na secção de bricolage da maior loja online na Alemanha, os contadores de energia são, além das máscaras de proteção respiratória, um dos produtos mais vendidos. Além disso, segundo uma sondagem do instituto YouGov publicada em agosto, a maioria dos alemães já começou a poupar na eletricidade, na confeção de alimentos e nos duches.


Artigos Relacionados