Diário de um resgate de 173 refugiados ucranianos

Depois de ter enviado um autocarro que trouxe 49 pessoas da Polónia, a paróquia do Campo Grande, em Lisboa, voltou a juntar-se e organizou um voo humanitário para transportar para Portugal 70 famílias que deixaram tudo na Ucrânia para fugir à guerra. Viktoriia e a filha estavam em viagem há um mês, Sergei não dormia há três noites e Yuliia estava desesperada para reencontrar os filhos

12 abr, 2022 - 06:20 • Ana Catarina André , enviada à Polónia



O voo humanitário foi organizado pela paróquia do Campo Grande, em Lisboa, e partiu de Varsóvia, na Polónia.
O voo humanitário foi organizado pela paróquia do Campo Grande, em Lisboa, e partiu de Varsóvia, na Polónia.

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Tinham conversado ao telefone, pela primeira vez, há poucos dias. Nunca se tinham encontrado nem conheciam as feições uma da outra. Ainda assim, quando a ucraniana Viktoriia Hrybanovska, 38 anos, foi recebida, com a filha de 10, pela conterrânea Oksana Khrushch, numa noite fria de abril, num hotel, em Varsóvia, na Polónia, deu-lhe um longo abraço.

Há um mês que Viktoriia e a filha Elisabete tentavam chegar à Polónia - tinham fugido de Chernihiv, no norte da Ucrânia, onde viviam, e percorrido dezenas de localidades, procurando escapar aos ataques do exército russo. Aquela era a primeira vez, em semanas, que poderiam dormir numa cama limpa e tomar um banho de água quente. "Obrigada, muito obrigada", repetiu Viktoriia, emocionada.

Nesse dia, ainda de madrugada, Oksana Khrushch, ucraniana de 41 anos a viver em Portugal há mais de 20, viajara para a Polónia com mais cinco voluntários da paróquia do Campo Grande, em Lisboa, com a missão de resgatar refugiados vindos da Ucrânia. Desde que a guerra começou, a 24 de fevereiro, mais de 11 milhões de pessoas abandonaram as suas casas, na Ucrânia, e mais de quatro milhões fugiram para países vizinhos, de acordo com as Nações Unidas. Destas, mais de 28 mil pediram proteção temporária a Portugal.

“Desde o início do conflito, pensámos que eramos chamados a envolvermo-nos de alguma maneira. Fizemos uma campanha para recolha de bens essenciais e depois a oportunidade de fazer mais alguma coisa veio ter connosco, quando um grupo de jovens nos pediu ajuda para trazer algumas famílias para Portugal”, recorda o padre Hugo Gonçalves, pároco do Campo Grande, contando que, em meados de março, a paróquia enviou um primeiro autocarro que transportou 49 pessoas. Desta vez, graças a um donativo da Fundação Santander, conseguiu fretar um avião.

“Onde houver uma pessoa a sofrer, onde houver um lugar onde a paz não acontece, aí devemos ser testemunhas da paz, aqueles que partem e ajudam, desde que esteja ao nosso alcance - e neste caso estava”, sublinha o sacerdote.

Menos de 48 horas depois de o grupo de cinco voluntários ter saído de Lisboa, com destino a Varsóvia, 173 pessoas, com idades entre os 3 e os 81 anos, a maioria das quais mulheres e crianças, aterravam no aeroporto militar de Figo Maduro, em Lisboa. Este é o diário desse resgate.


A maioria dos passageiros é do sexo feminino
A maioria dos passageiros é do sexo feminino
Muitos têm familiares à espera em Portugal
Muitos têm familiares à espera em Portugal


Dia 1

03h30 | O início de uma viagem de mais de 2700 quilómetros

Ainda faltam quatro horas para o sol nascer, quando os voluntários chegam ao aeroporto de Lisboa. Entre eles estão Oksana Khrushch e Liliya Mazur, ucranianas radicadas em Portugal há vários anos, que se disponibilizaram para serem intérpretes nesta missão. Nos últimos dias, os telemóveis de ambas têm tocado incessantemente. São ucranianos que querem trazer os seus familiares para Portugal ou refugiados que estão, ainda, na Ucrânia e que perguntam se há lugar para eles no voo humanitário. “Divulgámos esta iniciativa em páginas de Facebook e também através da paróquia. A partir daí, a informação espalhou-se”, explica Oksana, dizendo que têm recebido centenas de pedidos nas últimas duas semanas. “É indiscritível a alegria das pessoas, quando percebem que têm transporte.”

09h05 | Um escritório improvisado em Frankfurt

A viagem com destino a Varsóvia, capital da Polónia, tem escala no aeroporto de Frankfurt, na Alemanha. Cláudia Lourenço, responsável da paróquia que viaja com o grupo, aproveita esse tempo para confirmar se todos os refugiados têm transporte à chegada a Lisboa - a grande maioria ficará alojada em casa de familiares ou amigos. “O objetivo é assegurar que as pessoas conseguem chegar junto daqueles que as vão acolher”, explica, entre telefonemas. Ao seu lado, Oksana e Liliya continuam a receber contactos em ucraniano.

Sentando à mesma mesa, de repente transformada num escritório improvisado, está também José Maria Alves Pereira, outros dos voluntários que integra o grupo e que, com duas amigas ucranianas, fundou a plataforma Help UKR-PT. Foram estes três jovens que, no início de março, pouco depois de a guerra ter começado, contactaram a paróquia do Campo Grande a pedir ajuda. “Sabíamos que havia pessoas na Polónia que queriam vir para o nosso país e não tínhamos como os trazer”, recorda José Maria, dizendo que a paróquia “mostrou logo disponibilidade em colaborar”.

Depois de algumas conversas, conseguiram organizar a primeira iniciativa de resgate, à qual se seguiu esta, já de avião. “Acredito que a minha geração tem muito a dizer sobre os problemas em geral. Não podemos esperar que os mais velhos definam tudo”, sublinha o jovem estudante de gestão comercial.


A listagem dos passageiros foi verificada várias vezes. Alguns refugiados não chegaram a tempo do embarque
A listagem dos passageiros foi verificada várias vezes. Alguns refugiados não chegaram a tempo do embarque
A operação de resgate começou de madrugada
A operação de resgate começou de madrugada


15h30 | Nem todos conseguem chegar

Já em Varsóvia, o grupo de voluntários divide-se para dar conta de tudo o que é preciso fazer. Oksana e Claúdia ficam no hotel a verificar a listagem. “A situação é muito volátil, quer na Ucrânia quer na Polónia. Algumas pessoas cancelam a vinda porque arranjam outro transporte, outras porque não conseguem atravessar a fronteira. Há bombardeamentos que destroem pontes e as populações não conseguem sair. Por isso, os nomes estão constantemente a mudar”, explica Claúdia Lourenço que, pouco depois de aterrar, na Polónia, se apercebe que ficaram com cinco lugares por preencher no avião. “É mesmo assim”, assume, procurando de imediato encontrar uma solução. “José Maria, podes por favor enviar algumas mensagens para tentarmos encontrar outra família?"

Por esta altura, a outra parte do grupo vindo de Portugal dirige-se ao maior centro de refugiados de Varsóvia, onde nas primeiras semanas do conflito chegaram a estar cerca de oito mil pessoas. É lá que estão três das famílias que, no dia seguinte, viajarão para Lisboa.

18h15 | Um centro de exposições convertido em abrigo para refugiados

Está quase a anoitecer, quando os voluntários chegam a um dos maiores centros de eventos e exposições de Varsóvia, instalado no Global Expo, um espaço que, no último mês, se transformou num centro de acolhimento de refugiados. Lá dentro, centenas de pessoas descansam, lado a lado, em colchões improvisados, distribuídos por dois pisos, enquanto outras se alimentam. Há muitas crianças a brincar e conversas ao telefone.

Em poucos minutos, Liliya Mazur, que veio como intérprete, reúne junto à entrada, as três famílias que seguirão no voo humanitário para Portugal. Em ucraniano, explica-lhes que terão de estar no aeroporto, antes das sete da manhã, e dá-lhes algum dinheiro para que possam apanhar um táxi até lá. Duas das mulheres parecem constrangidas com aquela oferta, mas aceitam e agradecem-lhe.


Três das famílias que viajaram para Lisboa estavam no maior centro de acolhimento de refugiados de Varsóvia
Três das famílias que viajaram para Lisboa estavam no maior centro de acolhimento de refugiados de Varsóvia
Voluntários compraram caixas de transporte para que os animais pudessem viajar. Um dos cães pesava 30 quilos
Voluntários compraram caixas de transporte para que os animais pudessem viajar. Um dos cães pesava 30 quilos


20h30 | Em busca de um meio para transportar cães

Oksana e Claúdia apercebem-se que há duas famílias que não têm caixa transportadora para que os seus cães possam viajar. Com uma rápida pesquisa, descobrem, nas imediações do hotel, uma loja de animais. Precisam de duas caixas, uma para um cão de 25 quilos e outra para um de 30. Além destes dois bichos, seguirão no avião mais seis cães, um porquinho de índia e quatro gatos, dois dos quais com os donos já em Portugal. “São de um ucraniano que não os conseguiu levar quando viajou para Lisboa, mas pediu a um voluntário polaco que cuidasse deles até encontrar forma de os transportar “, conta Oksana que, até ao fim do ano passado, trabalhou como agente imobiliária e decidiu despedir-se, porque não queria continuar a trabalhar com clientes russos.

23h30 | A lista de passageiros continua a mudar

De volta ao hotel, Cláudia, Oksana e Liliya reveem, uma vez mais, a lista para o embarque. Há ainda alguns passageiros por confirmar. “O número 62 desistiu”, diz Oksana. “Ia para casa de uns amigos que lhe tinham dito que teria trabalho, mas como, afinal, não conseguem garantir-lhe isso, prefere ficar aqui.”

Minutos depois, a mesma voluntária continua a fazer telefonemas. Num deles, apercebe-se que há uma mulher que acaba de chegar ao aeroporto com uma criança e planeia dormir por lá. Trata-se de Viktoriia Hrybanovska e da filha Elisabete. “Disse-lhe que as vamos trazer para o hotel”, conta Oksana, enquanto se prepara para ir buscá-las. “Aqui poderão descansar melhor.”


José Maria exibe uma placa que diz Lisboa em ucraniano
José Maria exibe uma placa que diz Lisboa em ucraniano
Carlos Birrento é voluntário na Polónia
Carlos Birrento é voluntário na Polónia


Dia 2

06h30 | Os refugiados começam a chegar ao aeroporto

Duas bandeiras, uma da Ucrânia, nas costas de Liliya, e outra de Portugal, ostentada por Cláudia, identificam, na zona das partidas do aeroporto Chopin, em Varsóvia, os voluntários de Lisboa. Ao mesmo tempo, e enquanto as 70 famílias que viajarão para Portugal vão chegando, José Maria segura um cartaz onde se lê Lisboa em ucraniano e Liliya vai confirmando os dados de todos os que vão chegando. Grande parte do grupo é composto por mulheres e crianças. Algumas pessoas trazem pouco mais do que uma mala – a maioria dos bens ficou na Ucrânia.

07h25 | Um voluntário português e uma ucraniana perdida

Uma avó, a sua filha e neta, habitantes dos arredores de Kiev, chegam ao aeroporto, graças à ajuda de Carlos Birrento, voluntário português que as trouxe de Cracóvia. “Querem ir para Santiago do Cacém, onde têm família”, explica este antigo militar, de 50 anos. “Estou aqui, na Polónia, há mais de 30 dias a transportar pessoas, desde as fronteiras. Vim para aqui no terceiro dia de guerra”, acrescenta este paraquedista, enquanto se aproxima de uma refugiada que parece perdida, junto a um carrinho de bagagens.

A comunicação entre ambos não é fácil: nem ele fala ucraniano, nem ela sabe português ou inglês. Com a ajuda de um tradutor online, consegue perceber que Yuliia – é este o seu nome – quer chegar a Madrid, onde já estão os dois filhos, o marido e a mãe. “Se tivermos lugar, ela vai connosco para Lisboa e depois arranjamos forma de a levar a Espanha”, diz Oksana que, entretanto, se apercebe da angústia da ucraniana, quando esta, de olhos já marejados, tenta explicar que tem o passaporte caducado.

Enquanto isso, Carlos faz um telefonema: sabe quem pode pagar o bilhete de avião a Yuliia. Basta apenas ter a certeza de que a companhia área aceita o documento fora do prazo, confirmação que obtém, pouco depois. “Há muita gente generosa”, garante o português. No dia seguinte, Carlos receberá uma fotografia da ucraniana, já em Espanha, junto da família. “Com ela são 47 as pessoas que já ajudei. Estão todos em segurança.”


No voo seguiram oito cães, quatro gatos e um porquinho de índia
No voo seguiram oito cães, quatro gatos e um porquinho de índia


07h55 | O avô que não dorme há três dias

Sergiy Shteyn, de 67 anos, acaba de chegar. “Fui buscar os meus dois netos. Moram numa cidade a 23 quilómetros de Kiev”, conta o ucraniano, adiantando que vive em Torres Vedras, há 22 anos.

“Não durmo há três dias. Andei de um lado para o outro. Estou muito cansado. Já não consigo pensar”, diz o sexagenário, explicando que o filho não pôde sair do país. Ficou na guerra, tal como a nora. Os dois netos, de 14 e 9 anos, ficarão ao seu cuidado e da mulher, nos próximos tempos.

08h10 | A professora para quem Portugal é uma incógnita

O grupo encontra-se já na zona de check-in do aeroporto. Yevheniia Slovachevska é uma das primeiras da fila. Acaba de entregar o seu cão para pesagem, junto ao balcão da companhia aérea – vai trazê-lo para Portugal. A professora, de 53 anos, vivia com o marido e a filha em Kiev, de onde saíram três dias depois do início da guerra. “Desde então, temos estado em Varsóvia, em casa de uns amigos”, conta.

“Nunca estivemos em Portugal. É uma incógnita. A Polónia está cheia de ucranianos e, como uma amiga nos convidou para ir para Vila do Conde, aceitámos!”, acrescenta Yevheniia que, ao contrário da maioria dos passageiros, fala inglês. “As pessoas dizem-nos que somos heróis. Que heróis? Seríamos heróis se estivéssemos em Kiev a lutar. Infelizmente não somos soldados.”

Para esta professora que ensina russo e ucraniano a estrangeiros, “com esta guerra, Putin fortaleceu a cultura e língua ucranianas”. E explica: ”Há muitos alunos que já não querem aprender e estudar russo – é a língua dos agressores, dos assassinos. Também conheço pessoas que falavam russo na Ucrânia e deixaram de o fazer”.


Angela, de 33 anos, voltou a Kharkiv, no leste da Ucrânia, depois de ter fugido pela primeira vez
Angela, de 33 anos, voltou a Kharkiv, no leste da Ucrânia, depois de ter fugido pela primeira vez

Dia 2, 9h15 | As últimas quatro pessoas a chegar

A hora do embarque aproxima-se, mas há ainda dois grupos em falta. Um deles avisa a organização de que não conseguirá chegar a tempo, devido aos atrasos para atravessar a fronteira. O outro, composto por duas mulheres e duas crianças, junta-se, a poucos minutos do início do voo. Entre elas está Angela Sharukhanova, de 33 anos, que implorou ao motorista do autocarro que as trouxe da cidade de Lviv que, antes de se dirigir ao terminal, as deixasse no aeroporto. “Só assim, foi possível chegar a horas”, relata a ucraniana, esteticista na área do styling de sobrancelhas e pestanas. Traz quatro sacos de viagem, ao contrário de muitos dos refugiados que viajam apenas com um. “Em meados de março, fugi com a minha mãe para Portugal, mas voltei à Ucrânia para ir buscar material de trabalho e alguns bens”, revela. E acrescenta: “Penso de forma positiva e sempre acreditei que ia correr bem.”

Dia 2, 9h30 | Glória à Ucrânia, ouve-se no avião

Os cento e setenta e três refugiados estão já a bordo do avião, tal como os animais – os de pequeno porte viajam na cabine, junto aos donos. Algumas pessoas respiram fundo, assim que se sentam. Outras aproveitam imediatamente para fechar os olhos e descansar um pouco. Uma mãe com duas meninas tira da mochila um pedaço de pão e pepino e dá às filhas para comerem.

Pouco depois, a assistente de bordo dá as boas-vindas aos passageiros, fazendo ecoar na cabine um “Slava Ukraini” (glória à Ucrânia), expressão que todos aplaudem e repetem em voz alta. Assim que o avião descola, muitos aproveitam para dormir. Grande parte das crianças, porém, continua a brincar. “Temos lápis e desenhos para lhes entregar”, diz a responsável Cláudia Lourenço, apressando-se a distribuir os presentes. Entre sorrisos e expressões de alegria, muitos apressam-se a colorir os bonecos inscritos nas folhas de papel.


Liliya Mazur, ucraniana a viver em Portugal, é uma das intérpretes
Liliya Mazur, ucraniana a viver em Portugal, é uma das intérpretes
Durante a viagem, as crianças fizeram pinturas
Durante a viagem, as crianças fizeram pinturas


Dia 2,13h10 | Um kit de boas-vindas à espera

Assim que o avião aterra no aeroporto militar de Figo Maduro, os refugiados são encaminhados para um pavilhão, onde são recebidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e pelo Alto Comissariado para as Migrações. Além da verificação dos documentos, são submetidos também a testes à Covid-19. É-lhes dada uma refeição. De seguida, e já noutra sala, são recebidos pelos paroquianos do Campo Grande. À sua espera têm um kit de boas-vindas, com comida e roupa, e brinquedos para as crianças. Ninguém se vai embora, sem que a organização se certifique que têm alguém à sua espera, no exterior, ou transporte para se encontrarem com as famílias que os vão acolher. “Procuramos acompanhar as pessoas da melhor maneira possível e potenciar a sua integração, daí termos trazido sobretudo pessoas com família em Portugal”, explica Cláudia Lourenço.

À medida que as famílias de refugiados se despedem da organização, ecoam pela sala repetidas expressões de agradecimento. “Nesta guerra, tenho encontrado muitas pessoas generosas”, sublinha uma das refugiadas.

“O futuro? Não sei como será. O que queria mesmo era voltar para casa.”




A Renascença viajou a convite da Fundação Santander.


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