De volta às trincheiras do escritório

Após um período de convivência forçada com o teletrabalho, muitos portugueses preparam-se agora para voltar ao escritório. O saldo da pandemia ainda está longe de estar apurado, tal como as regras transgredidas por algumas empresas durante este período. Rita viu os seus apelos para continuar em casa negados e despediu-se. Ana nunca conseguiu cumprir o horário reduzido. Tiago gere os recursos humanos de duas empresas e tem muitos problemas em cima da mesa. No retorno marcado para 14 de junho, será essencial “ouvir as pessoas, perceber como estão”, pois “muitas podem estar esgotadas” e precisar de férias, diz Teresa Espassandim, psicóloga do trabalho.

04 jun, 2021 - 08:23 • Fábio Monteiro



Foto: Arne Dedert/DPA/Reuters
Foto: Arne Dedert/DPA/Reuters

Um escritório ou qualquer local de trabalho é um ecossistema em miniatura. Há sempre uma hierarquia, seja esta explícita ou não, e dinâmicas de poder entre colegas. No jargão empresarial, cada firma tem a sua “cultura”: a forma como se posiciona no mercado, como trata os seus trabalhadores, e os cuidados e benefícios que lhes atribuiu. Mas, porventura, esta linha de pensamento é demasiado simplista para exprimir o que um escritório resume em 2021.

Nos dias que correm, estes espaços são, acima de tudo, um destino e ponto de encontro, em tudo semelhante à fábrica no período da revolução industrial. No caso particular dos profissionais qualificados, são um lugar onde se vai trabalhar cinco dias por semana. Desde o início da pandemia, muitos portugueses que puderam continuar a trabalhar a partir de casa acordaram para este facto – o que não vai facilitar a vida às entidades patronais agora que o teletrabalho deixará de ser obrigatório a 14 de junho (salvo os municípios que recuem no desconfinamento).

Dir-se-á que com o regresso à rotina, regressam os velhos hábitos e problemas. Antes disso, em todo caso, ainda será preciso saldar contas com a pandemia, as mudanças que esta impingiu e as infrações laborais cometidas sob o véu deste tempo excecional. Primeiro virão os inquéritos internos das empresas, e, só mais tarde, os estudos científicos. Para já, há os testemunhos.

O caso de Rita Pinto é paradigmático. Quando a Covid-19 chegou a Portugal, trabalhava há pouco mais de três anos num "contact center" que pertence a um grupo de clínicas dentárias. Enquanto mãe solteira e cuidadora de uma idosa e doente crónica, viu no teletrabalho a prancha de salvação para continuar a ganhar o seu salário “em segurança”. Por imposição do Governo, a lei estava do seu lado. E os seus instrumentos de trabalho eram básicos: um computador e uma boa ligação à internet.

Em março do ano passado, como milhares de portugueses, foi para casa, mas em junho, mal o Governo deu um aberta no teletrabalho obrigatório, a empresa quis obrigá-la a regressar. “Entreguei várias declarações para que pudesse manter-me em casa, em segurança, declarações essas de doente crónica, de cuidadora da filha, de o agregado familiar ser de alto risco, para que me fosse possível continuar a trabalhar em casa, uma vez que já tínhamos estado, no mês de março e abril, em casa”, diz.

A clínica fez ouvidos moucos ao pedido. Foi sempre “negado”, nunca lhe foi dada uma justificação por escrito. Tentou falar com a coordenadora da equipa, mas foi ignorada. Foi-lhe pedido para expor a situação por email. Nunca obteve resposta. “Tive o meu patrão a dizer diretamente que ‘o perigo estava em ficarmos em casa com as criancinhas’ e que nós ‘devíamos era todos ter de ficar infetados’”, conta. A única reunião que conseguiu foi com a responsável de recursos humanos da empresa, alguém que “nada tinha a ver com a situação e que não podia fazer grande coisa a não ser transmitir a informação”.

O escritório onde Rita trabalhava tinha apenas 60 metros quadrados, mas lá dentro conviviam 25 pessoas. “Não havia separação alguma de secretárias, estamos a falar em ilhas de quatro, com pessoas lado a lado”, diz. A trabalhadora viu-se, por isso, obrigada a não trabalhar, com a justificação de dar auxílio à família.

Logo a 2 de junho, Rita fez queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). A resposta só veio três meses depois, a 10 de setembro, e apenas para confirmar que a queixa tinha sido registada. “Face à situação de facto denunciada, mais se informa que estes serviços registaram a queixa apresentada para intervenção no local assim que tal se revele oportuno, considerando a planificação da atividade determinada por esta Autoridade, as prioridades constantes do referencial da atividade inspetiva e os recursos disponíveis”, lê-se na resposta, a que a Renascença teve acesso.

Depois, já em dezembro, quando o teletrabalho já havia voltado a ser obrigatório, Rita foi contactada pela ACT. Mas já não havia nada a fazer. “Percebi que eu própria não queria mais fazer parte da empresa, porque estava a ir contra muito dos meus princípios e daquilo em que acredito enquanto ser humano. E pensei que não podia continuar a fazer parte de uma empresa que não olhasse para os seus trabalhadores como pessoas. Achei que tinha que pôr um ponto final”, diz.

A Renascença questionou a ACT, em mais de uma ocasião nos últimos meses, sobre o número de queixas relativas ao incumprimento das regras estabelecidas pelo Governo; o número de empresas fiscalizadas; e quantas irregularidades foram detetadas nessas inspeções. Todavia, não foi possível obter resposta.


Foto: Meg Potter/Reuters
Foto: Meg Potter/Reuters

Um tempo de exceções

Com “sorrisos falsos”, “pedidos trapalhões de desculpa” e “apelos a dar a 'extra mile' por causa da pandemia”. Nos últimos 15 meses, estes são os elementos básicos do teatro a que Mário (nome fictício) assiste sempre que algum superior ou colega marca uma reunião depois do horário de trabalho. “Já fiz tantas 'extra miles' desde o início da pandemia que, entretanto, já devo ter corrido uma maratona”, ironiza.

Por estes dias, a saturação já atinge “níveis épicos”. E o problema não está no teletrabalho - o designer de 30 anos já trabalhava a partir de casa antes da pandemia. Em parte, o dilema é narrativo: Mário trabalha numa "startup" cuja retórica é uma e a prática é “totalmente” outra. “Tanta preocupação com as pessoas, publicações bonitas no LinkedIn, mas depois há equipas inteiras em 'burnout', está tudo a arder, e continua-se a bater na mesma tecla.” Saturados e esgotados, os colegas de trabalho tentam proteger-se como podem. “É o salve-se quem puder.”

Há algumas semanas, Mário estava numa reunião “via Teams” quando bateram as sete da tarde; pouco minutos depois, uma das colegas presentes teve de sair para abrir a porta aos sogros, que vinham trazer o filho. “Vocês não têm filhos, podem continuar em reunião”, disse a colega, ao sair. Estas palavras beliscaram o designer, que é solteiro. “O que é que se podia responder àquilo? Nada. Ela tem razão e direito de ir embora. A ironia desta história é que é a mesma pessoa que, noutros momentos, já se queixou a mim que a superior dela não a deixar cumprir o horário”.

A situação que Mário relata pode criar dinâmicas de conflito entre os trabalhadores. E mostra quão limitada é a visão de certas empresas, nota Teresa Espassandim, especialista em Psicologia do Trabalho, à Renascença. Privilegiar, por exemplo, trabalhadores com filhos em detrimento de solteiros, “seguindo o que está estipulado pela lei”, “é colocar ao nível do mínimo”.

“Há pessoas que não tendo filhos a seu cargo ou idosos, também têm vidas pessoais. E essa é a dimensão da conciliação que mais vezes ainda continua por estar ausente da sensibilização das empresas. Fala-se muito mais da conciliação da vida profissional-familiar, que não é uma boa tradução do "work-life-balance" do inglês”, explica.

Há uma parte do anglicismo, para a psicóloga, que raramente é traduzido, mas que também faz parte da equação. “O espírito do 'work-life balance' assenta em três dimensões: profissional, familiar e pessoal. Mas na representação de muitos decisores, gestores, está apenas a dimensão familiar. Como que se quem não tivesse filhos ou adultos para cuidar, não tivesse necessidade de também se desconectar, vontade de praticar desporto, ou necessidade de lazer e tempo para si.”

A distância da retórica de uma empresa à prática é a prova do algodão. Em algumas empresas, “quem não tem que prestar cuidados a outros fica em último na hora de escolher o formato de trabalho desejado. E isto é revelador de culturas de organizações que não são genuinamente centradas nas pessoas.”


Foto: Marília Freitas/RR
Foto: Marília Freitas/RR

Atirar à carteira, onde dói

Teresa Espassandim é pragmática, não se perde no discurso inflamado e pouco realista de algumas empresas. Para a psicóloga, os patrões não vão acordar para os problemas dos seus trabalhadores – agora que o regresso aos escritórios é uma certeza no horizonte – por questões de responsabilidade social. Vão ser “os números”, o lucro, a produtividade, que os vai conseguir despertar.

Trabalhadores com “menos stress”, “cujos problemas são acompanhados”, “têm mais saúde psicológica” e produzem mais. “A produtividade interessará às empresas, por isso é que interessará práticas de gestão centradas nas pessoas”, diz. De acordo com o estudo “Custo do Stresse e dos Problemas de Saúde Psicológica no Trabalho em Portugal”, publicado em julho do ano passado, a perda de produtividade associada ao absentismo ou ao presentismo, causados por stress, burnout ou outros problemas de saúde psicológica, custa às empresas portuguesas €3,2 mil milhões por ano.

No regresso ao escritório, será essencial “ouvir as pessoas, perceber como estão”, pois após um ano de pandemia, “muitas podem estar esgotadas”, até a precisar de férias. “Há equipas que não se veem há mais de um ano. E por muita tecnologia que se tenha auxiliado ao trabalho - e muito bem - não é igual ao presencial. Por isso, o desejável é que houvesse espaços para que as pessoas pudessem contribuir com o que não resultou. O que é que aprendemos da transformação digital que foi acelerada. O que é para aprender, o que é para deitar fora.”

“As empresas que desperdicem ou que continuem a desperdiçar oportunidades para envolver os seus colaboradores estão continuamente a ter perdas de produtividade”, frisa a psicóloga.


Foto: Lusa
Foto: Lusa

E as mães

Ana (nome fictício), 37 anos, é arquiteta e regressou ao escritório no início de 2021, com horário reduzido após gozar a licença de maternidade – na teoria, menos duas horas por dia.

Em seis meses, contudo, foram muitos poucos os dias em que conseguiu usufruir desse direito. “Julgo que disse três vezes ao meu superior que não estava a conseguir cumprir o horário, que me estavam a ligar e a pedir trabalhos depois das 16 horas, quando devia estar com o meu filho. Sempre que o chamei à atenção, ele veio com o discurso que compreendia a situação, que ia tentar estar mais atento, mas nada mudou”, conta.

Em conversa, Ana repete inúmeras vezes a palavra “esgotada”. É o seu “estado espírito constante”, apesar de “gostar muito” do trabalho que faz. “Esgotada por causa de todas as responsabilidades”, “esgotada por estar constantemente preocupada com o filho e não conseguir dar atenção”. Ana está, tudo indica, em burnout parental.

Segundo um inquérito internacional realizado no ano passado, entre 30 de abril e 20 de maio, que contou com a participação de “488 pais e mães (a maioria mães, 81%), o período de confinamento teve um impacto negativo na relação entre pais e filhos: 19% dos pais e 31% das mães inquiridas assumiram ter sintomas.

“Portugal foi um dos países em que teve as escolas mais tempo fechadas e isso teve um impacto claro no burnout. Tivemos que de facto conciliar de facto as tarefas da parentalidade, que não é apenas o cuidar, é também o estimular e o promover o desenvolvimento, com as outras tarefas todas que, de repente, ficaram dentro de casa”, explica Filomena Gaspar, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade Coimbra e uma das autoras do estudo, em declarações à Renascença.

O burnout parental afetou em particular as mulheres “com mais qualificações”. Porquê? “Porque são aquelas que têm profissões mais exigentes. E ao terem profissões mais exigentes colocam em si mesmas expectativas mais elevadas relativamente à qualidade do trabalho.” A especialista sublinha que é “muito diferente estar em teletrabalho com uma atividade rotineira” ou com uma “grande responsabilidade”, e, ao mesmo tempo, ser a principal cuidadora dos filhos.

“Isto é grave. Somos um país com planos para a igualdade para a educação e no trabalho, mas não temos planos para a igualdade na parentalidade. E isto é um dado que é muito comum em outros países, não só Portugal”, aponta. Na prática, é como se a educação para a igualdade que hoje se dá nas escolas – as mesmas expectativas, as mesmas ambições, independentemente do género – fosse uma mentira.

“Cresço numa sociedade que me dá valores para a igualdade e de repente estou a exercer a minha função parental onde não há igualdade nenhuma. Porque quem cuida e é responsável pela maior parte das tarefas, no que diz respeito à criança, fundamentalmente nos primeiros anos de vida, é a mulher. O que é que isto faz? Faz com que as mulheres se sintam brutalmente infelizes e stressadas, porque há uma discrepância enorme entre aquilo que lhe venderam e aquilo que é a realidade”, explica a psicóloga.


Foto: Lusa
Foto: Lusa

Chama os Recursos Humanos?

Em março, Ana pensou em ir queixar-se aos recursos humanos sobre as solicitações fora do seu horário reduzido. Mas acabou por não o fazer. “Bem, já sabia o que me iam dizer. Que não estava obrigada a aparecer nas reuniões, que o meu superior não me estava a obrigar a nada. Eu continuava a trabalhar porque queria e que tinha que gerir melhor o meu horário”, conta.

Aquilo que um gabinete de recursos humanos representa varia muito, consoante a empresa. Em algumas, este departamento – com a adesão aos sindicatos em declínio - é visto como um dos poucos “espaços seguros” para expor problemas. Noutras, como um mecanismo tampão para abafar confusões, proteger os patrões.

Tiago (nome fictício) é responsável pelo departamento de recursos humanos em duas empresas ligadas ao setor ambiental, com sede no Porto. É na secretária dele que vários problemas laborais vão cair. O homem de 35 anos está habituado a ouvir queixas, a lidar com situações pouco claras moralmente. Mas a sua capacidade de ação é “limitada”, afirma.

Tiago conta à Renascença a sua experiência: numa das empresas em que trabalha, existe um protocolo para “casos de whistleblower” (denúncias anónimas) e um grupo de mediação – “três pessoas do staff, uma da direção; igualdade de género” - dedicado a lidar com problemas internos. A maioria dos casos visa “pessoas que se zangam umas com as outras, problemas de comunicação”, mas “já tivemos casos de abuso por parte da liderança, mas equipa é muito pequena, por isso acaba por ser mais delicado”, conta.

Segundo Tiago, têm sempre de existir um “mecanismo” para os trabalhadores reportarem infrações. “Nem tem de ser público, de ir necessariamente para os jornais.” O grupo de mediação funciona como uma “primeira instância, que tem como principal função a mitigação e a tentativa de uma reconciliação, quando uma reconciliação é possível”. (Quando é impossível, existe a via judicial.)

Nessa empresa, ainda este ano, uma funcionária em part-time fez queixa do CEO por misoginia e paternalismo, após este lhe indicar que ela não podia desempenhar mais tarefas, tendo em conta o seu horário. Tiago e o grupo de mediação tiveram de intervir: organizaram uma conversa entre ambas as partes e conseguiram clarificar a situação. “Ele é CEO, podia ter uma posição autoritária e quer dizer que quero que faças isso ou faças aquilo. Optou por dizer as coisas até de uma forma mais branda, o que acabou por lhe dar mais problemas”, defende Tiago.

Já na segunda empresa com que colabora, o responsável tem em mãos um problema com resolução muito mais complicada. Também este ano, três mulheres apresentaram queixa contra o CEO. “Nas reuniões tirava a palavras às mulheres, não promovia mulheres”, conta. “Houve uma investigação que foi feita e chegou as conclusões com base em provas.” Como as conclusões não satisfizeram as trabalhadoras que apresentaram as queixas, foi encomendada uma segunda investigação a uma entidade externa. O resultado foi o mesmo. “Conversas privadas é difícil provar. O problema normal do Me Too. Neste caso, já se chegou a um ponto em que não se quer a reconciliação e quer-se que alguém assuma as culpas.”

As trabalhadoras vão partir para a via judicial, já que ninguém sabe responder à pergunta: quem é que despede o CEO?


Foto: Thibaud Vaerman/Hans Lucas/Reuters
Foto: Thibaud Vaerman/Hans Lucas/Reuters

Talento em fuga

Até à pandemia, o registo laboral de Rita Pinto no contact center não tinha mácula. Nem a entidade patronal tinha razões para reclamar. Mas os piores instintos – “controladores” –, a incapacidade de perceber a situação familiar dos seus trabalhadores, veio ao de cima com a Covid-19. Por isso, no final de 2020, Rita despediu-se.

Estava efetiva, mas despediu-se. “Os recursos humanos propuseram-me chegar a um acordo. No entanto, esse acordo não abrangia sequer uma declaração para o desemprego. Ainda arrastei a situação durante um mês e meio. E acabei por perder o amor ao dinheiro e vir-me embora na mesma, porque para lá não ia regressar. Estava mais que decidido”, explica.

O processo de saída não foi fácil – por várias razões. Rita foi ameaçada de morte por uma colega. “Sabia que a pessoa devia estar de quarentena e que não tinha comunicado à empresa. Tinha até ido ao escritório, já depois de saber que tinha tido um contacto de risco”, explica. Porquê esta reação extrema? Provavelmente o medo de perder o emprego.

Rita denunciou o “desleixo” da colega e não se arrepende. “Porque não é dever, acho que é obrigação de qualquer pessoa o fazer.” O problema, na raiz, não estava na colega, mas na entidade patronal. Na teoria, deviam ser os segundos a dar o exemplo aos primeiros. Como isso raramente acontece, Rita diz: “Se houvesse mais pessoas a querer exercer os seus direitos, havia mais empresários a cumprir os direitos dos trabalhadores.”


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