Em pandemia, as empresas com matérias-primas são rei

A economia quer arrancar, mas o travão de mão continua acionado. Faltam matérias-primas em vários setores da indústria portuguesa e o preço de algumas aumentou de forma “abismal”. “Não é possível travar a globalização”, mas é preciso reduzir a dependência de outros mercados, defende Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal. Nos últimos meses, os principais fabricantes de automóveis nacionais foram obrigados a encerrar linhas de produção por falta de chips. “Ser-se competitivo no futuro será bem mais difícil do que ser competitivo nos últimos anos”, avisa José Souto, presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel.

19 mai, 2021 - 07:26 • Fábio Monteiro



Foto: José Sena Goulão/Lusa
Foto: José Sena Goulão/Lusa

Em março, a Autoeuropa, a maior empresa exportadora de Portugal, foi obrigada a fechar portas durante uma semana. Motivo: “A distribuição condicionada de semicondutores (chips) na indústria automóvel.” Em abril, a PSA Mangualde foi obrigada a “ajustar” a produção de veículos e parou seis dias. Motivo: “Falta de semicondutores.” E já em maio, a Bosch em Braga, onde trabalham 3800 pessoas, acedeu ao regime de lay-off e só deve voltar a abrir portas a 9 de junho. Motivo: “Escassez mundial de fornecimento de componentes eletrónicos.”

As expectativas dos maiores fabricantes automóveis com sede no país não são as melhores para 2021. A falta de componentes eletrónicos (mas não só) fez derrapar o objetivo de a produção voltar a atingir os números pré-pandemia, assume José Souto, presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA). “A nossa expectativa é que em 2021 não vamos cumprir já aquilo que era suposto no princípio do ano. Poderemos ficar perto. Mas em 2022 esperamos estar muito perto daquilo que eram os valores de 2019”, diz à Renascença.

A escassez de matérias-primas, “que não tem só a ver com a parte eletrónica, mas também com a área dos polímeros e metais”, obrigou empresas a parar, “a ter de reorganizar os seus planos de produção.”

Este é um problema português e europeu com duas dimensões: os maiores produtores mundiais de semicondutores estão na Ásia (em particular, Taiwan) e o fabrico abrandou, de forma significativa, devido à pandemia; ao mesmo tempo, o preço dos chips aumentou.

“Os preços aumentaram e, neste momento, temos uma perda de valor para fornecedores, há uma depreciação da margem, por aumento de preço das matérias-primas”, diz José Souto. Por outras palavras, a margem de lucro das empresas diminuiu. “Em termos gerais, podemos falar de um aumento entre 12 e 15%. Mas em alguns materiais os valores são bem mais altos, podem chegar aos 30%.”


Volkswagen T-Roc em construção na fábrica Autoeuropa de Palmela. Foto: José Sena Goulão/Lusa
Volkswagen T-Roc em construção na fábrica Autoeuropa de Palmela. Foto: José Sena Goulão/Lusa

Chips, chips, chips

O aumento da procura de chips por parte da indústria automóvel começou quando as linhas de fornecimento de semicondutores já estavam sobrecarregadas. No ano passado, deu-se um incremento significativo na procura de chips pelo sector da eletrónica de consumo, para telemóveis e infraestruturas 5G, novas consolas e equipamento informático. Mas a pandemia veio piorar a situação.

De acordo com a consultora especializada IHS Markit. no primeiro trimestre de 2021 foram produzidos menos 1,3 milhões de automóveis no mundo, devido à falta de chips. Portugal está incluído nesta estatística: em março, a Autoeuropa produziu menos 5.700 veículos do que o esperado, devido à semana de paragem forçada.

Para complicar o cenário, a falta de semicondutores, tudo indica, deverá continuar durante todo este ano e só deverá ficar resolvida em 2022. Na semana passada, em declarações à BBC, Jim Whitehurst, presidente da gigante tecnológica americana IBM, admitiu que seriam necessários “dois anos” para que exista “capacidade incremental suficiente em linha para aliviar todos os aspetos da escassez de chips”.

Ora, o setor automóvel a nível mundial é responsável por cerca de 10% da procura de semicondutores, valor que sobe para 37% na Europa.

Neste momento, “é evidente que quem conseguir responder às encomendas dos clientes ganha uma posição, tem de ter vantagem, é bem mais interessante conseguir cumprir as encomendas dos clientes do que estar sistematicamente em falta”, diz José Souto, da AFIA. Até porque “ser-se competitivo no futuro será bem mais difícil do que ser competitivo nos últimos anos”.

“Vai exigir um aumento de investimento, é preciso que as empresas aumentem a produtividade, os níveis de tecnologia. A intensidade tecnológica e a intensidade de formação e da qualificação dos seus recursos humanos. Portanto, temos aqui um conjunto de novos desafios, que é estar na cadeia de valor. E conseguir mostrar vantagens aos clientes”, avisa.


Deputados visitam Siderurgia Nacional. Foto: Miguel Lopes/Lusa
Deputados visitam Siderurgia Nacional. Foto: Miguel Lopes/Lusa

Um problema a aumentar de tamanho?

Um inquérito da Associação dos Industriais Metalúrgicos Metalomecânicos e afins de Portugal (AIMMAP), realizado em março, junto de mais de uma centena de associados, especialmente Pequenas e Médias Empresas, indicava que 44% via como principais obstáculos à retoma pós-pandemia a escassez e o aumento do custo das matérias-primas.

Passados quase três meses, Rafael Campos Pereira, vice-presidente da AIMMAP, diz à Renascença que “a situação está a agravar-se cada vez mais”. O preço do cobre aumentou cerca de 200%; no aço ou alumínio, a subida varia entre os 40 e 100%. “Como se isso não fosse por si só muito grave, acresce que as entregas estão a ser agendadas pelos fornecedores para daqui a alguns meses”, aponta.

A experiência no terreno de Bruno Pinto, diretor da JOMAPE, empresa especialista em redes de arame para vedações e malhas electrossoldadas para a construção civil, corrobora a auscultação da AIMMAP. “Temos sentido um aumento brutal no custo das matérias-primas há uns meses para cá”, conta. Por exemplo: o preço do aço e ferro duplicou o preço desde o final de outubro.

No início do ano, os preços ainda estabilizaram, mas desde abril que voltaram a aumentar. “Voltou a haver novas subidas abruptas. Novas dificuldades de material, portanto isto tem estado um bocado a piorar, ninguém sabe quando é que se vai inverter, se vai inverter. Se vai continuar a haver subida”, diz.

O empresário vive agora na antecipação do pior cenário possível. “Até ao momento, não tivemos nenhuma rutura. Mas desde o final do ano estamos à espera do momento em que vamos mesmo ter uma rutura, em que vamos ser obrigados a parar a fábrica. Porque de facto há muita dificuldade em conseguir material. Portanto, isso causa-nos grande incerteza.”

Bruno assume ainda que já obrigado a refletir no preço final dos bens que vende o aumento de preços das matérias-primas. “Acho que só agora está a chegar ao consumidor final, refletir no preço que o consumidor final paga. Nós somos uma indústria que vende a outras indústrias. Acho que esse fenómeno começou agora e vai piorar cada vez mais.”

Um caso prático: um rolo de ferro para vedação de uma propriedade que custaria cerca de 60 euros “antes do final do ano, neste momento está já a uns 75 euros e nas próximas semanas irá custar certamente uns 85 euros.”


Foto: Regis Duvignau/Reuters
Foto: Regis Duvignau/Reuters

Não é possível travar a globalização

Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP), está preocupado. Apesar de todos os contratempos provocados pela pandemia, o país teve um “desempenho muito interessante” ao nível das exportações no primeiro trimestre. Mas se a falta de matérias-primas não for resolvida no curto prazo, a recuperação económica de Portugal pode mesmo estar em causa.

“Se não conseguimos ter matéria-prima, se não conseguimos ter bens de consumo intermédio, se não conseguimos concluir a produção dos nossos produtos, muitos dos quais exportamos, obviamente aquilo que foi o desempenho e a performance das nossas exportações, que até ao mês de março estavam com uma avaliação positiva, pode regredir. Como é público, há empresas que já suspenderam a atividade e há outras que estão com muita dificuldade na entrega e cumprimento das suas encomendas”, diz à Renascença.

A AEP foi alertada por associados para as falhas no fornecimento já há alguns meses e comunicou essa situação ao Ministério da Economia. As empresas estão a ser “altamente penalizadas” não só pela questão dos prazos de entrega e escassez de materiais, mas também pelo custo do transporte marítimo. “Em múltiplos casos, mais do que triplicou.”

Para Luís Miguel Ribeiro, a Europa (a pensar em futuras crises) deve agora apostar numa campanha de reindustrilização, “na diminuição da dependência de outros mercados”, nomeadamente o asiático; no caso português, fazer um uso inteligente das verbas disponibilizadas para o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “Ao proporcionarmos às empresas outros meios e instrumentos de apoio à capitalização, estaremos certamente a contribuir para que situações como esta, no futuro, possam ter um impacto menor. Sendo certo que a globalização é um processo que não tem retorno. Vamos continuar a assistir e a vender e a importar para o mundo”, sublinha.

Tal como Luís Miguel Ribeiro, Rafael Campos Pereira, da AIMMAP, também vê o momento presente como uma oportunidade para repensar a industria metalúrgica na Europa. “Há componentes importantíssimos para a indústria transformadora que são essencialmente importados de fora da União Europeia.” A inexistência de matérias-primas “pode comprometer várias empresas” que precisam “de trabalhar” e responder a encomendas em espera.

“Nós temos que fazer uma aposta. Temos ouvido muitas vezes responsáveis europeus falarem num investimento a sério da europa na reindustrilização da Europa e na criação de maior autonomia, mas na prática não se vê a fazer nada. Temos que ter fábricas na Europa a produzir este tipo de componentes como também temos de investir de forma estruturada, a médio e longo prazo na criação de siderurgias”, diz.

O vice-presidente da AIMMAP defende ainda que a União Europeia deve repensar algumas das cláusulas de salvaguarda. “Existem cláusulas de salvaguarda que são verdadeiramente restrições à importação de matérias-primas de fora da europa para, alegadamente, se proteger os fabricantes europeus de matérias primas”, acusa.


Foto: EPA
Foto: EPA

“Tempestade perfeita” no setor têxtil

Para Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), não é exagero dizer que o setor que representa foi atingido por uma “tempestade perfeita”.

Por causa da pandemia, houve uma série de empresas que produzem químicos essenciais para o têxtil que decidiram interromper a produção. “Quando isso aconteceu, a oferta no mercado diminuiu substancialmente. E com essa diminuição, quando houve alguma retoma, acabou por não haver capacidade de resposta. Isso originou que os preços começassem a subir”, explica à Renascença.

O presidente da ATP dá os números mais recentes que tem: o preço do metanol subiu 46%. O n-propanol 53%. O n-butanol 328%. O isobutanol aumentou 208%. A comum acetona 77%. O butil acetato 188%. O monopropilenoglicol 292%. O polietilenoglicol só subiu 29%. Mas o butilglicol subiu 500% e o butildiglicol subiu 422%. E estamos apenas a falar dos químicos utilizados pela indústria.

Acontece que o preço do transporte também aumentou. “Um contentor que custava à volta dos 2500 euros, agora custa perto dos 12 mil euros para vir da Ásia para a Europa.” E, ao mesmo tempo, o algodão também ficou mais caro: 40% no caso das produções orgânicas, 20% no comum.

Segundo Mário Jorge Machado, parte da subida do preço do algodão é justificada pelo que está a acontecer na China, na região de Xinjiang. A comunidade internacional tem feito várias denúncias de perseguição à comunidade uigure; há relatos de campos de reeducação com milhares de pessoas e a tese de genocídio está mesmo a ser investigada. “Houve uma série de marcas a nível internacional, que recusaram e não compram artigos de algodão que sejam produzidos na zona de Xinjiang”, conta.

Circulam relatos “que parte da mão de obra que estaria a ser utilizada” em Xinjiang, na apanha do algodão, “seria trabalho forçado”. “E, portanto, as marcas não querem estar ligadas a más práticas sociais. E bem, muito bem”, nota o representante da ATP.

Para contornar este embargo, a China foi comprar algodão à Índia (o principal exportador mundial) e ao Paquistão (quarto exportador mundial). Ora, num mundo e economia global, não há ação sem consequência: ao comprar algodão a outros países, a China “fez subir o preço”. Resta, por isso, saber quando e se esse aumento se irá refletir no preço da próxima t-shirt made in Portugal que seja vendida.


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