05 fev, 2019 - 09:00 • Dina Soares , Joana Bourgard
Vista de muito longe, a garça real quase se confunde com um pequeno avião. Com uma envergadura superior a um metro e meio, esta ave é uma das maiores do Estuário do Tejo, a principal zona húmida do país e uma das mais relevantes da Europa.
Ao longo do ano, vivem ali de forma permanente cerca de 50 mil aves. Na época das migrações, o Estuário do Tejo chega a dar abrigo a mais de 200 mil aves, de 200 espécies diferentes.
“Muitas destas espécies são migradoras de longa distância, viajam desde o Ártico até à África do Sul. São espécies que estão muito ameaçadas e que têm cada vez menos pontos de escala na sua viagem. É por isso que esta área é classificada, tanto através de legislação nacional como internacional”, explica Domingos Leitão, presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).
Domingos Leitão não se conforma com a escolha do Governo para a localização do novo aeroporto. Doutorado em Ecologia, especialista na inventariação e catalogação de espécies, é perentório: “Ou está cá o aeroporto ou estão cá as aves. Se o Governo quiser fazer aqui o aeroporto, terá que tirar de cá as aves e não penso que isso seja possível sem destruir um património natural que é dos portugueses e da humanidade.”
Engenheiro aeronáutico diz sim, ambientalistas dizem não
Luís Coimbra discorda. Engenheiro aeronáutico e antigo presidente da NAV, Navegação Aérea de Portugal, a empresa que garante a prestação dos serviços de tráfego aéreo, defende que o Montijo é a melhor solução.
“É a que tem menor impacto no Estuário do Tejo. Mesmo que a pista tenha de ser aumentada 200 metros, o impacto não será maior do que aquele que já é provocado pela Base Aérea n.º 6”, considera este especialista.
Quanto ao problema das aves, Luís Coimbra defende que “grande parte das aves de grande porte está a montante da ponte Vasco da Gama e essa zona não vai ser mexida. Não penso que seja uma questão importante.”
Carla Graça, da associação ambientalista Zero, contesta o argumento. “As aves não conhecem limites administrativos. Supostamente, a maior parte das aves estão na área de proteção especial e na reserva, mas depois temos colónias de flamingos que vivem fora dessa zona.”
Os conflitos entre aves e aviões são clássicos. Segundo dados revelados pela Autoridade Nacional da Aviação Civil, entre 2012 e 2016 foram reportados 1322 incidentes envolvendo aves, o que representa 22,4% do total de incidentes com aeronaves. Estes incidentes, designados de “bird strikes”, podem ir desde o avistamento de aves com perigo de colisão, a colisões propriamente ditas.
Pássaro deixa avião da Força Aérea em terra
Muito mais recentemente, no final de janeiro deste ano, um avião da Força Aérea colidiu com um pássaro no momento da descolagem, na base aérea do Montijo. O incidente obrigou a um alerta imediato de emergência e impediu o avião – que se dirigia para o Porto Santo – de descolar. Não houve feridos, mas o motor ficou danificado.
Todas estas questões esperam ter uma resposta definitiva no estudo de impacto ambiental. O primeiro foi arrasado pela comissão de avaliação, que considerou que o trabalho levado a cabo pela empresa “Profico” tinha falta de qualidade, era confuso e apresentava lacunas. O estudo seria mesmo omisso nos impactos que os aviões têm sobre as aves, bem como os danos que estas podem provocar nas aeronaves.
Face a esta rejeição, foi encomendado novo estudo, que deverá estar pronto em março. Mesmo assim, o Governo e a ANA assinaram um memorando de entendimento que define as metas do investimento a realizar nos próximos anos, nomeadamente, as obras que vão permitir a transformação da Base Aérea n.º 6 num aeroporto civil e as obras de alargamento do aeroporto de Lisboa.
“Claro que se o estudo de impacto ambiental e o parecer sobre a segurança aeronáutica forem negativos, ninguém vai avançar com o aeroporto”, garante o presidente da Câmara Municipal de Alcochete. Fernando Pinto levanta, no entanto, muitas dúvidas relativamente às objeções de caráter ambiental. “Na altura da construção da ponte Vasco da Gama, também se falou muito do perigo para os flamingos e depois não aconteceu nada. Aliás, atualmente até há mais flamingos a viver aqui.”
Zero apresenta queixas na Europa e em Portugal
Carla Graça faz votos para que este segundo estudo de impacto ambiental tenha em conta todos os fatores, mas considera que, mesmo assim, será insuficiente.
“A decisão de localização de um aeroporto tem impactos muito abrangentes, nomeadamente o nível da implantação no território porque vai implicar a organização de uma série de atividades como habitação, turismo, acessos, logística. Isso impõe uma avaliação ambiental estratégica que também contemple a articulação com o aeroporto de Lisboa.”
Mas o Governo não avançou com este estudo. Por isso, a Zero apresentou uma queixa à Comissão Europeia em agosto de 2018, que está a ser analisada.
Tenciona agora reforçar a queixa com os elementos entretanto recolhidos e prepara igualmente uma ação que deverá dar entrada nos tribunais nacionais, para obrigar o Estado a cumprir a sua obrigação legal.
Carla Graça teme que o Governo queira apresentar a construção do aeroporto como um facto consumado para condicionar as conclusões do estudo de impacto ambiental. Constata, aliás, que todo o processo tem sido muito opaco. “A Agência Portuguesa do Ambiente só nos forneceu informação após uma intimação judicial. É lamentável. É uma tentativa de que não haja escrutínio nenhum.”
Para os ambientalistas, o Montijo nunca será uma boa solução. Luís Coimbra, pelo contrário, só vê vantagens nesta localização. “A pista já lá está e é paralela à pista principal de Lisboa, o que do ponto de vista do controle de tráfego aéreo é de fácil resolução” – diz o antigo presidente da NAV – que vê o Montijo como a melhor alternativa para descongestionar o aeroporto de Lisboa nas horas de ponta, como aeroporto suplementar.