Seleção

Jota Silva, o "cavalo selvagem" que foi do distrital até à seleção nacional em cinco anos

22 mar, 2024 - 17:10 • Eduardo Soares da Silva

A estreia do jogador do Vitória de Guimarães “prova que não há uma só forma para chegar ao topo”. João Ferreira foi o treinador que estreou Jota na terceira divisão e elogia a mentalidade do mais recente internacional português: "Quando o treino começa, é sempre a sério".

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O marcador apontava o minuto 63 quando o Estádio D. Afonso Henriques explodiu de alegria pela sexta vez. Não foi mais um golo de Portugal, que já vencia a Suécia por 5-1 num particular de preparação para o Europeu do próximo verão, mas sim a estreia de Jota Silva, o avançado do Vitória de Guimarães que se estreou na seleção, mas que jogava nos campeonatos distritais há apenas cinco anos.

Não foi para Cristiano Ronaldo – que nem sequer integrou a ficha de jogo -, Bernardo Silva, Rafael Leão ou Bruno Fernandes. A maior ovação da noite no jogo foi para Jota Silva, o avançado de 24 anos que se tornou o primeiro jogador do Vitória a jogar pela seleção desde André André, em 2014/15.

Jota entrou aos 63 minutos e teve até uma grande oportunidade para fazer mesmo o sexto golo da seleção nacional, mas o remate esbarrou no guarda-redes sueco.

A noite de quinta-feira é para mais tarde lembrar, mas a carreira do jogador que tem parecenças físicas com o inglês Jack Grealish foi maioritariamente feita longe dos grandes palcos. Jota, que nunca foi internacional português pelas camadas jovens, estreou-se no futebol sénior nos distritais da Associação de Futebol do Porto.

Um dos primeiros a reconhecer-lhe o talento foi o treinador João Ferreira, que ouviu falar de um avançado que se destacava cada vez mais na outra série da primeira divisão distrital portuense. Ferreira estava nos gaienses do Avintes e Jota Silva, na altura ainda apenas conhecido como João Pedro, no Sousense.

“Abordei o Jota para tentar levá-lo para o Avintes, mas ele acreditava que merecia mais do que isso e queria muito ir para o Campeonato Portugal e, portanto, não estava muito disponível para continuar no mesmo escalão”, recorda, à Renascença.

Mas a vida de João Ferreira também o encaminhou para o patamar seguinte. A boa época no clube de Vila Nova de Gaia abriu-lhe as portas da terceira divisão. Destino: Espinho, do Campeonato de Portugal.

“Levei um papel com nomes de jogadores na primeira reunião que tive com o vice-presidente. Ele também tinha uma lista e o Jota coincidia. Disse-me logo que iriam tentar avançar por ele”, conta. E, no dia seguinte, o negócio ficou fechado.

Jota chegava do distrital e não faltavam jogadores com currículo a concorrer pelos lugares na frente de ataque: Betinho, que chegou a jogar pelo Sporting, e Diogo Valente, que somou quase 200 jogos na I Liga.

“No desenho do plantel para a época, o Jota era um jogador para concorrer com os outros. Não seria uma primeira figura no plano teórico, mas quando começaram os treinos percebemos que ele dava algo mais do que todos os outros”, lembra o também comentador Bola Branca.

E, por isso, também rapidamente ganhou o lugar. Foi titular nos 25 jogos do Campeonato de Portugal até a pandemia ter impedido que a época chegasse ao fim. Marcou 13 vezes. “Era explosivo, muito focado, fazia a diferença até contra equipas de II Liga. Fez golos, assistências, recuperava à frente, fazia tudo”, elogia João Ferreira.

O treinador, que hoje treina novamente o Sporting Clube de Espinho, defende que a melhor posição de Jota é no corredor central. No Vitória, alinha habitualmente nos corredores, mas Roberto Martínez lançou o avançado curiosamente para o lugar de ponta de lança, substituindo Gonçalo Ramos.

“Connosco jogou na posição de nove até meio da época. Acho que é mais forte no corredor central porque ataca muito bem a profundidade. Não é alto, mas tem um tempo de salto fantástico e um bom cabeceamento”, defende.

Ferreira temia que Jota Silva pudesse deixar o SC Espinho a meio da época para rumar aos campeonatos profissionais. Houve propostas, mas o jovem avançado preferiu manter o compromisso: “Era inquestionável que iria sair no fim da época”.

“Gostou muito do nosso grupo e de a massa adepta ser muito presente. Em janeiro, tomou a decisão de não sair e ficar connosco. Fê-lo sem restrições nenhumas, mas estávamos conscientes que era a primeira e última época que faria no Espinho se ficássemos naquele patamar”, atira.

Um jogador “sem sábados”

A época não foi concluída, mas o Espinho não subiu e o avançado deu o salto para o Leixões, na II Liga. Ficou apenas meia época em Matosinhos. “É o único momento da carreira em que ele não se afirma verdadeiramente”, diz João Ferreira. Deu um passo ao lado para o Casa Pia e rapidamente explodiu.

Foi figura na época da subida de divisão com 14 golos na II Liga e rumou diretamente a um dos maiores clubes do país: o Vitória de Guimarães. Para lá do talento, João Ferreira justifica o sucesso com a capacidade de trabalho.

“Não chega fazer bem, é preciso fazer muito bem. E ele tem uma consistência que lhe aumenta a possibilidade de progredir na carreira”. O treinador assume que “é difícil explicar a mentalidade de Jota para quem não conviveu com ele”, mas decide tentar.

“Cria bom ambiente e é alegre, mas, quando o treino começa, é sempre a sério. Há jogadores que facilitam um pouco no sábado, antes do jogo. E o Jota está sempre no limite de segunda a sábado. Para ele, todos os dias são quartas-feiras. É um cavalo selvagem”, diz, de sorriso na cara.

O treinador recorda uma história que só soube anos mais tarde, que lhe foi contada por quem partilhou o balneário com Jota. Utiliza-a para aprofundar a ideia de que o avançado do Vitória só chegou ao patamar em que está hoje - a disputar um lugar no Campeonato da Europa numa das melhores seleções nacionais da história - devido à sua mentalidade.

“Todos os jogadores já tiveram unhas encravadas nos pés. É muito limitativo. Ele queixou-se aos colegas no balneário. E os colegas, na brincadeira, disseram-lhe que não iria ficar de fora do treino por causa daquilo. Ele deu-lhes razão, calçou a bota e foi treinar. Eu nem dei conta. Só soube da história muito depois”, aponta.

E é por este motivo que o técnico torce o nariz quando lhe agradecem pelo seu contributo na evolução do internacional português. Jota Silva menciona regularmente o nome do treinador do Espinho em várias entrevistas, mas Ferreira acredita que Jota “autoconstruiu-se”.

“O que fiz foi dar-lhe a oportunidade de ter muitos minutos, porque ele mereceu. Uma pessoa com esta mentalidade é muito fácil de trabalhar e de evoluir", diz.

Um trajeto “pouco comum” e de olhos postos nos grandes

Jota é dos poucos jogadores da seleção nacional que não foi formado nos maiores clubes nacionais. Cresceu nas margens do Douro, em Melres, e fez formação nos relvados do Sousense, em Gondomar. E, por isso, nunca vestiu a camisola da seleção nas camadas jovens.

“A carreira dele foi sempre ascendente. Acho que tudo aconteceu no tempo certo, mas não deve ser usado como um exemplo, porque é muito difícil de ser repetido”, argumenta o treinador.

E explica: “Podia ter feito tudo o que fez e ninguém ter reparado. Podia ter passado ao lado. Depende de muitos fatores. Pode treinar muito bem, mas o treinador ter outro que também treina muito bem, pode não cair nas graças do treinador. Mas ele tem uma mentalidade fortíssima”.

Jota foi do distrital à seleção em cinco anos e o seu ex-treinador acredita que “é uma história muito bonita”, mas só “uma pessoa com características muito, muito particulares é que consegue fazer um percurso tão longo. É uma distância tremenda. É a exceção que confirma a regra”.

Há um caminho que permite chegar ao topo mais rapidamente, através dos maiores clubes, argumenta Ferreira, mas o treinador diz que Jota “prova que não há uma só forma para chegar ao topo”.

O técnico do Espinho diz, no entanto, que a chamada e estreia de Jota na seleção tem de ser um fator de enorme motivação para os restantes portugueses da I Liga. Afinal, não é obrigatório jogar no Porto, Benfica, Sporting e Braga para se chegar à seleção.

“Isto tem de motivar os jogadores do nosso campeonato. O selecionador tem a intenção de, pelo menos, abrir as esperanças de mais jogadores", conclui.

De olhos postos no futuro, João Ferreira acredita que será inevitável a saída de Jota do Vitória no final da temporada. E aponta-o aos três grandes.

“Acho que há dois caminhos: ou vai para os três grandes em Portugal, ou para outro campeonato europeu”, termina.

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