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Dia do Artista

A cantora de rua chilena que Alfama adotou. "Apaixonei-me terrivelmente" por Lisboa

24 ago, 2023 - 21:44 • Redação

Os moradores que sobem e descem aquela escadaria, em Alfama, já a conhecem. "Los gringos" (termo usado na América do Sul para se referir aos estrangeiros), vindos das mais variadas partes do mundo, seguem o rasto dos acordes musicais que saem da guitarra de Fabíola e vão até às Portas do Sol. Uma sonoridade que mistura ritmos chilenos com a música tradicional sul-americana.

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Com a guitarra numa das mãos e o seu tão amado sombrero, Fabíola Moroni Pavéz desce as escadarias a passo apressado, após o almoço. Confessa sentir-se cansada, o calor abrasador também não ajuda. Admite ter-se atrasado, pois ainda foi buscar a guitarra a casa de uma amiga.

As Escadinhas de São Miguel são o palco de Fabíola. A arquitetura de Alfama faz a guitarra da artista chilena ser ouvida sem ser necessário aparelhos de amplificação. "Não é uma rua, é um anfiteatro natural”, diz Fabíola com um sorriso no rosto, enquanto se prepara para mais uma atuação.

Procura pela melhor sombra para fugir ao sol que incandesce as escadas, tira a guitarra, começa a afiná-la e coloca o sombrero no chão para recolher o dinheiro que lhe vão dando naquela escadaria de Alfama. Fabíola diz que “este é o local mais tranquilo para se tocar, toda a gente aqui me trata bem”.

Vítor Manuel Bogarim e a esposa Palmira moram no largo de São Miguel há 37 anos e tratam Fabíola como uma filha: “já disse à mãe dela para se pôr a pau, um dia adoto-a”, brinca Vítor.

Foi o casal que, quando a artista começou a tocar na escadaria, prontamente se mostrou disponível para ajudar. “Fui migrante durante nove anos em França, e senti no corpo o que ela está a sentir agora”, desabafa o morador.

A música de Fabíola ajuda o casal a distrair-se nos dias mais monótonos e a fugir da rame rame do dia a dia. Há alturas que se põem os dois à porta a ouvir a artista a cantar, “é uma joia de pessoa”, confessam os moradores. Se Fabíola falha mais que um dia, é a esposa, Palmira, que imediatamente liga a perguntar o que aconteceu.

"Já disse à mãe dela para se pôr a pau, um dia adoto-a"

Começa a ouvir-se o pequeno aquecimento vocal de Fabíola e logo de seguida meia dúzia de acordes para verificar se a guitarra está afinada. O som começa a ficar cada vez mais intenso e sem nos apercebermos da transição a atuação já começou. Um a um os turistas que descem as escadas param para a ouvir e começam a tomar assento no “anfiteatro natural”.

Os estrangeiros emocionam-se: uns porque são latino-americanos e sentem-se identificados com o reportório clássico, “são músicas antiquíssimas, mas muito conhecidas, clássicos que os nossos avós e talvez os nossos pais ouviam na rádio”, outros aproveitam para fazer uma interrupção da “agitada vida de turista, que tem de caminhar três dias por Lisboa e conhecer tudo de uma ponta a outra, e de repente uma pausa”. Isto faz relaxá-los e aliviarem o stress, admite a artista. “Tenho gente aí que se impacta com a melodia, com a música, com a voz, não é comigo, é com o que eu faço”, conta a artista chilena que Alfama adotou.

Fabíola confessa ter como fonte de inspiração a artista chilena Violeta Parra, a quem pediu intervenção espiritual antes de chegar a Portugal: “Aqui sou reconhecida por ser cantora chilena que também canta canções da Violeta Parra.”

A pouco e pouco, as contribuições monetárias começam a ganhar forma dentro do sombrero de Fabíola. O repertório, tocado ao longo da tarde, não é sempre o mesmo, com exceção das músicas mais conhecidas e mais “badaladas”, tais como “Gracias a la vida”, de Violeta Parra, “Piensa en mi”, de Luz Casal, ou “Besame mucho”, de Consuelo Velázquez.

De vez em quando, faz uma pausa para beber um pouco de água e interagir com os turistas, saber de onde vêm e quanto tempo vão ficar por Lisboa. Muitos pedem para tirar uma foto e aproveitam para trocar contactos nas redes sociais.

As horas vão passando e a tarde começa a chegar ao fim, porém, o dia da cantora está longe de acabar. Perto das 18h00 começa a arrumar a guitarra, a recolher o dinheiro angariado e a preparar-se para ir embora. Às 19h00 tem de estar no “Vossa Lisboa”, o restaurante de Tapas, localizado na calçada de São Vicente, onde vai atuar.

O destino levou Fabíola a Portugal

Fabíola Moroni Pavéz é chilena e mora há sete anos em Lisboa. Começou a cantar mesmo antes de aprender a falar, muito por influência dos pais que sempre tocaram guitarra em casa. Aprendeu tudo de forma autónoma, “sempre estava uma guitarra por perto. Comecei a tocar porque já tinha tantos anos a ver meu pai e a minha mãe que um dia apanhei a guitarra e comecei sozinha, a cantar uma canção que o meu pai costumava cantar à minha avó”.

Profissionalmente começou ainda no Chile, em plena ditadura, quando participou no festival da canção júnior, onde ficou em segundo lugar. Morou cerca de 10 anos na Alemanha antes de vir para Portugal. Tomou a decisão de abandonar o Chile e rumar a terras germânicas por influência do ex-marido, também ele músico que foi tirar um curso no conservatório de música e teatro de Hannover. Na Alemanha, em 2000, Fabíola lançou um disco EP para participar num festival de jazz-latino. Em 2008 volta para o Chile, onde já com mais alguma experiência, lança o segundo disco.

O desejo de voltar à Europa sempre esteve presente. A vinda para Portugal aconteceu quase por acidente, mas também por premonição. Fabíola confessa que durante anos sonhou com uma cidade muito parecida com Lisboa, mas não sabia como interpretar, “poderiam ser apenas saudades da Alemanha e da Europa”. Até que um dia sonhou que ajudava a tia de uma amiga a fazer umas mudanças, e ela morava aqui na Europa. “Escrevi um email à minha amiga a contar a história, ao que ela me respondeu que não poderia acreditar na coincidência, tinha acabado de comprar uma casa em Lisboa e não tinha ninguém para cuidar do apartamento”, relata a cantora.

"Fiquei terrivelmente apaixonada por esta cidade, nunca me tinha acontecido nada assim"

Foi assim que Fabíola, já decidida a voltar para a Alemanha, ficou por terras lusas a tomar conta da casa da amiga, Isabel. Uma estadia que inicialmente era para ser de duas semanas, culminou em sete anos a morar em Lisboa.

“Fiquei terrivelmente apaixonada por esta cidade, nunca me tinha acontecido nada assim, fiquei apaixonada pelo fado, pelas cores, pela luz, pela arquitetura e a forma como me tratavam.”

Apesar da paixão pelo fado, não se sente confortável a cantar em português por respeito à cultura. “Aqui fui reconhecida e valorizada por ser a única cantora chilena, que mora aqui e toca música folclórica latino-americana. Agora porque é que tinha de cantar fado? Tinha vergonha de estar a desrespeitar a vossa cultura”, confessa a cantora.

Foi em Portugal que tocou pela primeira vez na rua. Por cá, encontrou-se como mulher, mas também como artista. Nunca tinha posto em cima da mesa a hipótese de ser artista de rua, mas agora mostra-se orgulhosa de fazer o que faz. “Eu quero fazer isto, também, porque sou mulher, na rua não há muita presença feminina, sobretudo cantoras.” Porém, considera que gostaria de voltar aos palcos, voltar a cantar jazz e trabalhar com outros músicos. A ambição de lançar um terceiro disco, agora em Portugal, continua presente, no entanto, segundo a cantora, ainda não encontrou as pessoas certas para avançar com o projeto.

As rendas elevadas da capital tornam-se insustentáveis para a artista, o que a obrigou a arranjar um trabalho fixo para fazer face aos custos habitacionais. Viver unicamente da música é uma impossibilidade, devido à imprevisibilidade do meio.

Ressoam as sete badaladas no sino da igreja de São Miguel. Fabíola, que depois da atuação na escadaria foi à casa da amiga para descansar, chega agora ao “Vossa Lisboa”. À porta tem Constança Casquilho a dar-lhe as boas-vindas. Há tempo para um beijinho e um abraço antes de entrar e preparar o espetáculo.

A hora de jantar aproxima-se, os primeiros clientes começam a entrar e ainda Fabíola está a posicionar-se no estratégico espaço existente entre o balcão e a dúzia de mesas que compõem a sala. Após a guitarra afinada, os ritmos latino-americanos começam a inundar a sala. As mesas, outrora vazias, começam a ser poucas para tanta gente que era atraída pela música de Fabíola. Tal como na escadaria, também aqui são os ingleses, os franceses, os italianos e os espanhóis que mais tomam conta do espaço.

O meu reportório é bom para os negócios, são músicas populares e clássicas que atraem gente com maior poder financeiro”, confessa a cantora, enquanto faz uma pausa de 10 minutos para comer o bacalhau com grão que Constança tinha preparado. Dá um último gole no copo de vinho e volta à atuação.

A noite cai e se, ao início, o ambiente era mais calmo e tímido, por esta altura existe um público muito mais participativo, que canta, bate palmas e fica em êxtase enquanto espera pela comida. Os copos de vinho esvaziam-se, ouvem-se os “bravos” vindos da mesa de italianos, visivelmente emocionados, após Fabíola tocar “Besame Mucho” de Consuelo Velázquez. Até Constança se deixa levar pela energia, começa a dar uns passos de dança enquanto serve a comida aos clientes. “É um ambiente diferente da rua, num contexto diferente, as pessoas estão a jantar. O silêncio é difícil de se obter, mas a minha emoção e a de quem ouve continua a ser a mesma”, declara Fabíola.

São 21h30, apagam-se as luzes, a cantora aproxima-se das mesas, Fabíola começa a cantar os primeiros versos de “Piensa en mi”, de Luz Casal. Os turistas que passam na rua e os vizinhos, que vêm esticar as pernas depois do jantar, param e perguntam a Constança quem está a cantar. A hora de fecho do restaurante aproxima-se, mas ainda há tempo para mais duas músicas. A noite atinge o clímax, os acordes inconfundíveis de “Guantanamera” e de “La bamba” levam o público ao delírio, sem ser necessário Fabíola abrir a boca. Em coro começam a cantar os versos iniciais das canções e os clientes na mesa exterior do restaurante interrompem o jantar e a taça de vinho para começarem a dançar no meio da calçada de São Vicente.

É agora hora de Fabíola voltar a arrumar a viola no saco, mas não sem antes fazer um último agradecimento ao público e tirar fotos com os novos fãs que fez nessa noite. “Uma noite verdadeiramente mágica, já venho tocar ao “Vossa Lisboa” há algum tempo e nunca me tinha acontecido nada assim, é como se o universo estivesse a conspirar”, comenta a cantora.

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