Reportagem

Uma Kima em cima da mesa, Rabo de Peixe na Netflix. Que Açores nos mostra a série?

05 jun, 2023 - 07:00 • Daniela Espírito Santo

Há quem critique a falta de sotaque, quem ache que não há representatividade, mas certo é que "Rabo de Peixe" tem micaelenses em fartura. E não só.

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Rabo de Peixe. Açores na rota da Netflix. Daniela Espírito Santo (entrevistas), Marta Pedreira Mixão (edição de vídeo), Pedro Valente Lima
Daniela Espírito Santo (entrevistas), Marta Pedreira Mixão (edição de vídeo), Pedro Valente Lima (vídeo)

“Eu sou de Rabo de Peixe, mas não tenhas medo”, reza a canção de Sandro G. O preconceito persegue a pequena vila piscatória de São Miguel, nos Açores.

Depois de fazer manchetes quando se viu inundada de fardos de cocaína em 2001, Rabo de Peixe volta agora a ser falada pelo mesmo motivo, duas décadas depois.

Num daqueles casos em que a realidade supera a ficção, a história mais mediática de Rabo de Peixe não escapa ao tratamento Netflix, numa produção de sete episódios que, em poucos dias, entrou no top 10 mundial do serviço de streaming.

As semelhanças não são pura coincidência, mas antes detalhes calculados para adensar a trama. O resultado, no entanto, divide espectadores.

Há quem acuse a série de 'glamourizar' uma situação dramática, quem lamente que os problemas da vila e a pobreza extrema sejam apenas adereços, quem se queixe da falta de sotaque micaelense. O certo é que há muito dedo açoriano na produção e muito orgulho à mistura.

Os atores principais não escondem o seu sotaque “continental”, mas não estão sozinhos neste “barco” micaelense. Ana Lopes, assistente de casting e também atriz, ajudou na tarefa de encontrar talento local.

Entre as dezenas de atores e figurantes usados nos episódios, há nomes mais conhecidos como Miguel Damião, que dá corpo ao padre que figura em diversos episódios. Zeca Medeiros, músico, compositor, ator e realizador, é, talvez, um dos mais ilustres. O filho, David Medeiros, também desempenha um papel na trama. O apresentador Luís Filipe Borges também aparece, a dada altura (com ou sem boina? Terá de ver para descobrir).

Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" com Ana Lopes e Tomás Furtado de Melo Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" com Ana Lopes e Tomás Furtado de Melo Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" (na foto com Kelly Bailey) Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" (na foto com Kelly Bailey) Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" (na foto com Maria João Bastos) Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" (na foto com Maria João Bastos) Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" Foto: DR
Keven Santos participa em "Rabo de Peixe" Foto: DR

"Polícia número 2"

Para muitos, este foi o seu primeiro papel. Para outros, mais um passo naquilo que, esperam, seja uma carreira de futuro. É o caso de Keven Santos, 29 anos, que trabalha em Marketing Digital mas foi o “Polícia número 2” em “Rabo de Peixe”.

“Sou ator, mas não é a tempo inteiro. Faço umas participações de vez em quando”, diz à Renascença. Vive na ilha de São Jorge, mas nasceu nos EUA. “É uma coisa que acontece muito aqui na região. É muito comum.”

O seu caminho até à série foi o mesmo de muitos outros colegas e passou por Ana Lopes. “Ela propôs-me fazer casting para um papel e fiquei. Não estava nada à espera”, admite, antes de adiantar que nem sabia ao que ia.

“Não sabia que era para a Netflix. Só sabia que era uma série filmada em São Miguel”, assegura. Já a história não lhe era, de todo, desconhecida. “Quem é açoriano conhece muito bem essa história.”

Ao todo, foram 11 dias de trabalho, entre Lisboa e São Miguel, para dar vida ao polícia que faz par com Tomas Melo (polícia número 1). O resultado não podia ter sido melhor. “Acho que está mesmo espetacular. Acho que, em Portugal, nunca se tinha sido feito nada assim, nada com esta qualidade”, opina.

Série ‘Rabo de Peixe’ chega à Netflix
Série ‘Rabo de Peixe’ chega à Netflix

Quem pôs a Kima em cima da mesa?

Uma série filmada nos Açores tem, obviamente, que ter um toque açoriano, mas será que tinha mesmo de ser assim?

O casting local, que Ana Lopes ajudou a orientar, foi uma exigência do criador Augusto Fraga, também ele açoriano. "É muito generoso de parte dele", entende Ana, que admite que "antes e depois" da gravação da série, a ilha já recebeu várias "produções que não tiveram esse cuidado". "É um passo importante para a região", defende.

Francisco Afonso Lopes, que ajudou a dar forma ao "coração" açoriano da trama, concorda. "É uma série internacional, de milhões. Não tinha qualquer necessidade em manter qualquer referência mais específica aos Açores. Mas o Augusto Fraga teve esse cuidado", acrescenta.

"Houve um mínimo de carinho para que aquela série também se tornasse apetecível para o pessoal de São Miguel. Nem que seja um 'olha, tem ali uma Kima [marca de sumo dos Açores] em cima de uma mesa'", diz Francisco.

A população local parece feliz com o resultado final, mas nem sempre foi esse o caso. No início, muitas foram as reticências quanto a um projeto com o nome de Rabo de Peixe. O medo de perpetuar o estigma imperava.

"Na altura houve gente contra, mas agora a reação está a ser muito positiva", diz Ana Lopes, que admite que "sabia que isto ia acontecer".

O principal "culpado" talvez seja Eduardo, personagem interpretada por José Condessa, jovem pescador que só quer uma oportunidade. "Tu tens empatia pela personagem, que é uma pessoa boa. Ele representa Rabo de Peixe como um sítio de pessoas boas", defende Ana Lopes.


Desconstruir o estigma

Eduardo é a face visível de um trabalho de bastidores de que Francisco Afonso Lopes também tem "culpa". Enquanto "staff writer" ficou com a posição de "pessoa que ensina a dizer palavrões em micaelense", diz a brincar. A tarefa passava por dar vida a uma história ficcional sem atirar mais "gasolina para a fogueira" do estigma regional.

A equipa, garante, compreendeu a tarefa desde o início, ainda em plena pandemia. O objetivo passou sempre por respeitar quem "levou a vida toda" a ouvir falar da vila só pela "'cocaína do italiano', a pobreza extrema, a marginalização da freguesia em relação ao mundo".

"O estigma existe e ninguém negou que o estigma existe. Mas a equipa sabia que o nosso guião tentava desconstruir o estigma de Rabo de Peixe" desde o primeiro episódio, diz (mas não vamos fazer spoilers).

Com a história "da cocaína a chegar" à vila "bem presente no imaginário", tentou ser fiel ao que se sente na ilha, mas admite as suas limitações.

"A minha visão de Rabo de Peixe é, obviamente, uma visão influenciada de um rapaz que viveu e cresceu em Ponta Delgada, mas não exclui que não tivesse bem presente toda a história real", reitera. "Eu sou aquilo que um rapexim chamaria de menino da cidade de Ponta Delgada. Não vou dizer que tudo o que contribuí para a série vem dos meus dias a amanhar redes", admite.

Ajudou os guionistas a criar a trama e a dar um toque açoriano a uma narrativa que se queria globalizante. "Mais do que contar a história específica de Rabo de Peixe, tentamos contar a história açoriana. Queríamos que fosse uma coisa geograficamente mais alargada. Rabo de Peixe é o epicentro onde a história real aconteceu", explica. Nesse sentido, fala-se dos pescadores, "do estigma negativo que a freguesia tem como uma das zonas mais pobres da Europa", mas também de fenómenos que são universais para todos os habitantes da ilha.

"Acho que qualquer pessoa de São Miguel, em alguma altura da sua vida, nem que seja por influência dos seus titios que fugiram para a América... já lhe passou pela cabeça a ambição de ir viver para os Estados Unidos. É daqueles pontos universais que qualquer pessoa da ilha tem em comum com uma pessoa de Rabo de Peixe."

Com a comparação viria a "desconstrução do estigma", esperavam. Mas os bons intuitos falharam inicialmente... Um esboço de um primeiro guião, com coisas "que podiam ser consideradas estigmatizantes" foi parar à mão da população local. "Eu e o Augusto Fraga estavamos proibidos de meter os pés em São Miguel", diz Francisco. "Eram 250 comentários de pessoas a chamarem-nos o anticristo, basicamente". Tudo mudou com a divulgação das primeiras imagens.

"Quando saiu o primeiro trailer as pessoas perceberam. No primeiro trailer aparece aquela fala do narrador: 'baseado em factos reais...muito vagamente'. Aí, as pessoas perceberam que isto tem tanto de real como a Guerra das Estrelas ou o Game of Thrones. Nada disto é real e não é suposto ser visto como real."

As "pinceladas de cultura pop açoriana" ajudaram a fazer o resto.

"Aparece uma procissão, aparece uma camisa do Santa Clara... E o pessoal dos Açores deve ter dito: deve ter havido o mínimo de preocupação. Não foi o Chatgpt que criou esses guiões e meteu lá Açores e pronto. Há aqui uma preocupação em manter um espírito açoriano na série", diz.

Dica para conseguir a aprovação local? Convencer o Sandro G.

Mas nem só de Kimas e camisas do Santa Clara se faz uma mudança tão drástica de apoio. A "culpa" também pode ser atribuída a Romeu Bairos, que deu vida a Sandro G na série. O músico, que sofre de "açorianite aguda", tornou-se ator um pouco por acaso, depois de servir de "intermediário" entre o criador e realizador Augusto Fraga e o famoso rapper, um dos nomes mais icónicos da ilha.

"O Augusto, quando começou a escrever o guião, queria falar com o Sandro. Tentaram contactar o Sandro mas ele não queria falar com eles. Achava que era treta", explica. Foi aí que Romeu entrou. "Sou amigo dele. Falei com o Sandro e percebeu que era mesmo verdade, que era uma coisa grande".

Meses depois, numa festa onde estava o realizador, tocou uma música do amigo, "numa de paródia". Não demorou muito até ser chamado para encarnar Sandro G mais a sério, com "selo de aprovação" do próprio.

"Estava receoso, porque não sabia o que ele ia achar. Mas ele disse-me: 'Tu fizeste muito parecido comigo'. Tive a indicação de que o trabalho foi bem entregue", diz, vaidoso. E não é para menos: foi o seu primeiro papel a sério. Antes disse, tinha sido "a árvore de Natal na festa da escola, no terceiro ano", brinca.

Agora quer outros voos. "Adorava fazer uma novela para a minha avó me ver todos os dias na televisão. Isto é um apelo, vou fazer um apelo agora: por favor, contactem-me para fazer uma novela, porque a minha avó ia gostar de me ver todos os dias na televisão", pede.

A brincar ou não, Romeu Bairos não é só ator em "Rabo de Peixe" e também empresta a voz a canções na série. A versão que fez de "Eu Não Vou Chorar", precisamente de Sandro G, corre sérios riscos de se tornar um "hit" ao estilo de "My Life is Going On", da série espanhola "Casa de Papel". Romeu, no entanto, prefere não alimentar demasiadas expectativas.

"As coisas estão lá, as pessoas ouvem... se gostarem, ouvem mais. Eu gostava era de tocar mais vezes. Quando me deixarem tocar, o povo que apareça e que cante e dance, que é isso que é preciso... que a gente sinta alguma coisa."

E é a falar do que sente que pede para que a série sirva não só para entreter, mas também para ajudar Rabo de Peixe.

"Eles foram marginalizados estes anos todos, foram desprezados estes anos todos. Espero que isto mude alguma coisa. A série está no mundo, tudo bem. Incrível. Já se esperava. Agora é tempo de ajudar as pessoas de Rabo de Peixe, as pessoas que precisam."

"Não queremos mais turismo, já temos que chegue. Queremos é mudar o que está mal, ajudar as pessoas que precisam. Não percebo nada de política ou gestão. Sei tocar viola e cantar. Mas acho que era preciso era ajudar as pessoas, dar cultura às pessoas, dar acesso a educação e saúde", pede.

Quanto às criticas, Romeu diz que "há sempre puristas do sotaque". "Há sempre pessoas mais conservadoras....não dá para agradar a toda a gente. Estamos a falar de ficção, estamos a falar de entretenimento. Se as pessoas ficam entretidas, missão cumprida", defende.

Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Ana Lopes entra na série "Rabo de Peixe" Foto: DR

Ana Lopes concorda, mas admite que há um lado seu que fica feliz com esses comentários, porque significa que há vontade de ver mais açorianos nas grandes telas. Por isso, são comentários que, "apesar de negativos, são positivos". "É uma reação, digamos, negativa, que me deixa feliz".

Ana defende a inclusão para "garantir a oportunidade", mas não é de extremismos. Até porque mais importante que tudo o resto é a qualidade.

"Não escolhemos o sítio onde nascemos, mas escolhemos ser atores. É muito importante que sejam usados atores profissionais", entende.

Poderia haver mais sotaque, mais representatividade? Poder, podia, mas era importante encontrar um equilíbrio para garantir que a série chega a toda a gente. Tudo posto na balança, o resultado final é "mais positivo [que negativo] por causa da projeção".

Celebrar o Divino Espírito Santo... e a Netflix

Em Rabo de Peixe, no fim de semana de estreia da série, as atenções centravam-se nas Festas do Divino Espírito Santo, as festas da Bandeira da Beneficência -- uma altura em que a comunidade se junta e celebra a fé e a caridade (e a figura dos mordomos, que organizam as festividades).

No entanto, já se começavam a ouvir os primeiros burburinhos relacionados com a estreia da série, na sexta-feira. O tema não podia escapar à vila.

A população, inicialmente mais reticente, gostou do produto final. “Na sua maioria estão a gostar”, assegura Keven Santos.

Romeu Bairos estava precisamente em Rabo de Peixe a gravar um videoclipe no fim de semana em que a série estreou. "As pessoas estavam mesmo muito contentes. "Estava toda a gente na rua, nas festividades, e estava toda a gente feliz com isso", acrescenta. "Aquele povo é muito feliz, eles são uma tribo", adianta.

Os tempos de crítica já passaram. "É fácil envenenar o povo. Mesmo que tenha sido por uma cena má, vamos aproveitar essa cena má para fazer mil coisas boas", vaticina.

Expectativas em alta, 2.ª temporada à espreita?

Nem uma semana foi precisa para colocar Rabo de Peixe no top da Netflix a nível mundial, com lugares cimeiros garantidos em pelo menos 35 países. O sucesso alcançado em sítios como Argentina, Brasil, Bahamas, Chipre, Finlândia, Maldivas ou Uruguai faz sonhar... Mas ninguém quer tirar os pés da terra ainda.

"Quem viu o último episódio percebe que tem ali umas pontas soltas que todos os guionistas gostariam de fechar. Agora, tudo depende de a série continuar a fazer um bom caminho", defende Francisco Afonso Lopes, antes de adiantar, esperançoso:

"Estamos genuinamente surpreendidos com os países a que tem chegado. As coisas estão bem encaminhadas e espero que tenhamos uma segunda temporada."

Se não for por Rabo de Peixe, que seja pela produção nacional, por "projetos futuros ao mesmo nível". "Se houver uma segunda temporada...que venha a terceira, quarta e quinta e que me metam quinze anos a escrever guiões para esta série. Não me importava de forma nenhuma, bem pelo contrário", admite Francisco.

Antestreia da série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Antestreia da série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Antestreia da série "Rabo de Peixe" Foto: DR
Antestreia da série "Rabo de Peixe" Foto: DR

Seja qual for o desfecho, Ana Lopes foca-se no que a "hype" pode trazer de imediato para a região. "Tenho grandes expectativas para esta série. Vai abrir muitas portas. Foi isso que me aliciou neste projeto, o que vai trazer a longo prazo."

Para além da visibilidade, também a união que se gerou em torno do projeto pode ser um bom sinal para o futuro. "Praticamente toda a gente que está no meio ajudou, houve muita colaboração e isso é muito importante", diz.

Ana Lopes é atriz, mas "nunca teve uma oportunidade mainstream", o que fez crescer a sua empatia para com atores com menos acesso e hipóteses. Criou a Islanders Productions na pandemia para materializar essa vontade de ajudar, coisa que sempre fez de "forma muito casual". Desta forma, ajuda diferentes projetos a encontrar os atores perfeitos para rodar nos Açores.

"Tenho esta intenção de ajudar porque os açorianos são muito esquecidos. Gostava de mudar isso um bocadinho."

Rabo de Peixe foi o ponto de partida. O resto, ficção ou não, só o futuro dirá, mas está dado o pontapé de saída para fazer da região uma zona apetecível para quem filma. “Têm surgido muitas produções aqui, principalmente nos dois últimos anos”. “Acho que tem tudo para dar certo”, vaticina Keven Santos.

"Foi um grande passo. Estou muito orgulhosa", remata Ana.

Comentários
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  • Miguel
    08 jun, 2023 lisboa 14:06
    Rabo de Peixe vai tornar-se local de culto!

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