27 mar, 2023 - 16:40 • Diogo Camilo
Depois de ter estado com as Três da Manhã na Renascença e antes de mais um treino de ténis para chegar ao nível de Carlos Alcaraz, Miguel Góis, o mais tímido dos Gato Fedorento, confessou ser o "polícia" do Isto É Gozar Com Quem Trabalha, na SIC, onde acompanha Ricardo Araújo Pereira e José Diogo Quintela. Duas décadas depois dos primeiros sketches, considera-se mais guionista e diz que se sente mais confortável neste papel nos bastidores.
O Expresso perguntava há uns meses se o Ricardo Araújo Pereira era o líder da oposição. Isso faz de ti um ministro sombra, uma espécie de ministro da propaganda?
O meu papel é mais como guionista e por isso, sim, estou na sombra. Mas sobre essa ideia de um humorista ser o líder da oposição, penso que isso não pode ser levado a sério. É uma piada, no sentido em que os humoristas têm de usar o material que está disponível na atualidade. A nossa profissão funciona à base de irmos buscar coisas que correm mal, não podemos fazer humor com aquilo que corre bem. Nesse sentido, um texto humorístico, um programa humorístico será sempre sobre a performance de um governo nos aspetos que correram de forma inesperadamente mal e, portanto, pode criar essa ideia de que o humorista está a fazer oposição ao governo. Não está, está só a fazer o seu trabalho.
Passados 20 anos, consideras-te hoje mais guionista que humorista?
Sim, sim. Sempre. Sempre me considerei um guionista. Também me considero um humorista, mas não um ator cómico, no sentido em que a performance não é aquilo que eu quero fazer. Ser guionista é, acima de tudo, ter a tarefa de fazer brilhar o ator. Ou seja, não é suposto o guionista aparecer. O guionista é alguém que trabalha na sombra.
És talvez o membro do Isto é Gozar com Quem Trabalha que aparece menos. Sentes-te confortável com esta posição? É um formato mais prazeroso também nesse sentido?
Sim, eu sempre planeei só escrever. No início do Gato Fedorento eles tiveram de me convencer a entrar. Primeiro, eu pus uma condição: ‘Ok, eu entro mas sempre com óculos, para não ser reconhecido na rua’. Porque eu achei que, se funciona com o Clark Kent, também ia funcionar comigo. Fiz durante alguns anos, mas agora sinto-me mais confortável neste papel nos bastidores do que antigamente.
E qual é a tua função agora no Isto é Gozar com Quem Trabalha? És um bombeiro ou um educador de infância?
O que os meus colegas dizem é que eu sou mais um polícia. No sentido em que, às vezes, os oito estamos a escrever, temos de fazer os outros rir e, às vezes, algum de nós tem de ter outro lado em que está a pensar mais nos prazos, naquilo que precisamos de fazer em termos de vídeos que aparecem no programa. Faço o lado mais criativo, mas estou mais encarregado de não me esquecer de várias coisas que têm que ser feitas para o programa ir para o ar.
No início eles tiveram de me convencer a entrar. E pus uma condição: ‘Ok, eu entro. Mas sempre com óculos, para não ser reconhecido na rua'.
Como mudou o teu papel nos Gato Fedorento ao longo do tempo? Precisaste de alguma adaptação, como guionista?
Foi algo que aconteceu com os quatro. Primeiro só escrevíamos e depois, necessariamente, tivemos de começar a perceber o resto do processo. Depois de escrever há que perceber como é que vamos executar o sketch e por isso começámos a interessar-nos muito sobre qual é o melhor plano, o plano mais engraçado, que não é necessariamente o plano mais bonito. Trabalhámos sempre com o nosso realizador, Teotónio Bernardo, no sentido de tentar conjugar ao máximo esses dois vetores. E como é um programa de humor, o plano mais engraçado, em princípio, vence sempre.
Há poucos dias, falando noutro podcast sobre humoristas nos Estados Unidos, como o John Stewart e o Stephen Colbert, disseste que o fenómeno Trump poderá tê-los levado para um tom mais político e mais panfletário. Tens medo que isso aconteça em Portugal, com vocês?
Connosco, não tenho medo. Eu penso que nós estamos conscientes desse perigo que os humoristas correm, não só nos Estados Unidos. Também no Brasil aconteceu o mesmo: aquele fenómeno Bolsonaro levou muitos humoristas a ter um tom mais panfletário, o que é uma reação de alguma forma natural, é uma reação mais emocional. É o país deles e esse tipo de governantes afeta muito as pessoas que acreditam na democracia e que acreditam que um país pode melhorar. Penso que não corremos esse perigo, até porque não é previsível que esse tipo de governante, esse tipo de político, ganhe eleições.
Sentes que o humor mudou muito nos últimos 20 anos?
Não sinto que haja mais preocupação, porque não vejo assim tantos programas humorísticos sobre política. O que eu sinto é que há 20 anos não se encarava a hipótese de haver um programa humorístico sobre política no horário nobre. Ou seja, havia uma ideia feita segundo a qual as pessoas não se interessavam por política. Logo, o humor político não seria um produto muito visto na televisão. Julgo que essa ideia desapareceu e considero que isso é positivo.
Há mais ou menos limites ao humor do que havia há 20 anos? Sentes uma maior abertura ou achas que as pessoas estão mais sensíveis?
Sinto que estão mais sensíveis. Sinto que houve um retrocesso. No outro dia fiquei um pouco deprimido porque estava a ver uma entrevista do Tom Stoppard, um dramaturgo inglês de origem checa, e ele dizia que quando começou a escrever havia mais liberdade. É particularmente grave que alguém com 80 e tal anos tenha a sensação de que na sua juventude havia mais liberdade criativa. Nesse sentido, parece-me que houve um retrocesso. Aquilo que eu espero é que seja uma situação temporária.
Sentes que as pessoas se ofendem mais facilmente?
Sim, nós temos a sensação de que alguns sketches nossos não seriam bem recebidos hoje. E na altura não me lembro de nenhuma situação dessas. E hoje em dia, olhando para alguns sketches nossos, pensamos: “Este hoje ia ter alguma…”
Aqui entra também o papel das redes sociais?
Talvez, sim. Eu não tenho redes sociais, aquilo que eu sei que acontece por lá é uma pequena amostra, mas penso que têm um papel, no sentido em que amplificam algumas reações mais extremistas. Há esse efeito de amplificação, que na altura como não havia redes sociais, recebíamos uns emails só e ninguém sabia que os recebíamos. Neste momento há essas partilhas de reações e parece que estamos a falar de uma reação de centenas ou milhões de pessoas, quando na verdade foi uma pessoa que disse uma coisa e que está a ser retuitado.
Temos a sensação de que alguns sketches nossos não seriam bem recebidos. Olhando para alguns, pensamos: “Este hoje…”
Já fizeram sketches, já cobriram atualidade, já esmiuçaram políticos. Alguma vez pensaram num formato mais como o do John Oliver, em que aprofundam um tema ou o investigam?
Nunca pensámos nesse formato, por uma razão: pareceu-nos correto ter um formato o mais aberto possível. Nesse caso nós teríamos uma regra, de num programa falar sobre só um tema. O que nos agrada é abrir estas possibilidades imensas de, a cada semana, fazer aquilo que nos apetece, esta abertura do formato é muito confortável. Por exemplo, a sitcom do Seinfeld foi vendida - e bem vendida - por ser uma série sobre nada. O que, na verdade, significa que é uma série sobre tudo. O facto de ter sido vendido dessa maneira é muito adequado, no sentido em que podem fazer o que quiserem com cada episódio. Essa liberdade criativa é essencial para ter mais graça. Se tivéssemos essa regra e só um tema, presumo que não teria tanto potencial de humor.
Há cinco anos, pelos 15 anos dos Gato Fedorento, vocês lançaram um canal de YouTube. Agora, pelos 20 anos, podemos esperar um canal do TikTok?
Já me disseram que há quem ponha os nossos sketches no TikTok. Portanto, em princípio, já está alguém a tratar disso. Vamos deixar esses curadores continuar com o seu trabalho. Para já, podem trabalhar que estão a fazer um bom trabalho não remunerado.