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Entrevista

D. José Ornelas diz que não nos podemos habituar à guerra

22 dez, 2023 - 07:00 • Ana Catarina André

Com a aproximação da celebração do Natal, o presidente da CEP diz que “o grito de esperança” transmitido neste tempo “é, antes de mais, de revolta justa perante aquilo que se passa”. “Temos de construir algo diferente”, pede o também bispo de Leiria-Fátima.

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O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, defende que não nos podemos habituar à guerra.

Em entrevista à Renascença, D. José apela a um “grito de esperança e de revolta” para calar as armas e “construir algo novo”.

Noutro plano, o também bispo de Leiria-Fátima diz que não foi ouvido pelo Ministério Público no âmbito dos inquéritos relacionados com situações de abusos sexuais de menores na Igreja.

O prelado garante que “nunca” foi questionado pelas autoridades judiciais sobre alegados encobrimentos por si cometidos, e que se referem a dois casos: um de 2011, que envolve crianças de um orfanato dirigido pelo padre Luciano Cominotti, na província moçambicana da Zambézia, e outro de 2003, relativo a um padre da paróquia de Fafe. “Acho estranho que, de facto, eles saibam o que não sei, se sou parte interessada nisso”, diz.

Nesta entrevista à Renascença, D. José Ornelasadianta que não foram feitos quaisquer cálculos sobre o valor da reparação económica a pagar às vítimas de abusos e defende que “é preciso desenvolver a consciência de cidadania”, para aumentar os níveis de participação política em Portugal.


Este Natal fica marcado pela crise económica, pela guerra em vários pontos do globo. Que papel pode ter a esperança neste contexto?

A esperança do tipo daquela que nos é transmitida pelo Natal é fundamental, quando queremos mudar, sobretudo as situações problemáticas e cruéis, como aquelas que vivemos hoje. Aquilo que tantas pessoas, mesmo nos serviços televisivos provenientes destas zonas de combate, [questionam é]: porquê? Porquê é que pessoas inocentes são assim trucidadas? Porquê é que tantas casas, famílias que não têm nada a ver com o conflito são destruídas?

É muito importante que a tal esperança que pensa no mundo e que é capaz, não de se refugiar de forma alienatória no seu mundo e na sua fé, mas que encontra um caminho para dizer: ‘Isto não é o fim de tudo’. Infelizmente, esta é uma situação dramática, pungente e dolorosa, mas há mais mundo, há mais esperança e há um mundo que vai continuar. Por isso, é necessário ultrapassar também a crise e a dor. Aquilo que nos dizem os textos do Natal é precisamente isso. Um povo vivia nas trevas, na escuridão da morte, uma situação muito semelhante àquela que encontramos hoje, também na Faixa de Gaza, na Ucrânia e em tantos lugares do mundo.

É preciso dizer que não nos podemos habituar a isto. O grito da esperança é, antes de mais, um grito de revolta justa perante aquilo que se passa. É dizer "temos de construir algo diferente". A esperança levou tanta gente a mudar o sistema, levou concretamente, e está levando poderes públicos, instituições e Igrejas - com o Papa Francisco insistentemente a dizer que é preciso encontrar outro tipo de soluções, que é preciso chegar à paz. Isso um dia vai dar o seu fruto. Esperamos que seja o mais cedo possível.

"Não nos podemos habituar a isto. O grito da esperança é, antes de mais, um grito de revolta justa perante aquilo que se passa"

Na sua Mensagem de Natal enquanto bispo de Leiria-Fátima, fala num cenário de descrédito das instituições públicas a nível nacional e internacional e em atitudes de resignação e de apatia individualista. Do seu ponto de vista, o que é mais urgente para que este cenário se inverta?

Acho que é importante ter noções claras de que há justiça, de onde se quer chegar. As questões graves de corrupção, de falta de clareza, de facto, levam a que as instituições percam a sua credibilidade, e isso pode levar à revolta política, emocional, até mesmo violenta. [É preciso] ter um sistema de justiça que funcione, que seja rápido e que possa, de facto, chegar a conclusões para que os cidadãos possam entender que não estamos na mão simplesmente daqueles que estão no poder ou têm poder – e tem-se manifestado que não estão pela atuação da justiça, mas é preciso que depois esses processos sejam compreensivelmente rápidos.

Em segundo lugar, acho que é importante também que os agentes políticos tenham metas claras. Passa-se muito tempo em grandes discussões, sempre idênticas, de acusações mútuas, mas o conteúdo programático dos grupos, dos partidos, etc., não é compreensível. Não é tão explícito na maioria dos casos. Isso levaria a que o discurso se elevasse a um nível de projetos – o que é bom, o que é mau – para que, depois, à última hora, não se fizessem projetos que não são discutidos, que não passam para a praça pública convenientemente, para motivar a participação de todos. Isso gera realmente a apatia que é a pior de todas as atitudes na vida pública.

O próximo ano ficará marcado pelas eleições legislativas. O que é espera que os partidos contemplem nos seus programas?

Propostas claras, que não podem ser tão vagas [como] aumentar os salários. [É preciso] elevar o discurso verdadeiramente ao nível nacional. Infelizmente, em grande parte das campanhas não se passa isso e devia ser fundamental: discutir projetos, soluções. Assim, a diversidade pode ser entendida e pode encontrar-se também e validar realmente os projetos dos partidos e o voto de quem sente que tem de participar ativamente no ato eleitoral. Infelizmente temos um nível de participação bastante baixo e uma abstenção a subir. Isso preocupa-me muito. É preciso desenvolver esta consciência de cidadania e de participação.

Na sua Mensagem, aponta Maria e José como uma família de refugiados que moveu a solidariedade dos habitantes de Belém e contagiou os pastores mais próximos. Considera que a sociedade portuguesa tem estado à altura do acolhimento de refugiados e dos migrantes que nos procuram?

Generosidade temos tido, também no acolhimento inicial de migrantes. Acho que a lei é justa e até mais aberta do que outras na Europa. Agora, o problema é assumir as consequências disso e integrar bem. É não permitir que aqueles que buscam o nosso país com a intenção de conseguir uma vida melhor, para si e para as suas famílias, sejam explorados. São graves as injustiças que se passam e não preciso de elencá-las – estão nos jornais e até na atuação das autoridades. Não é justo que assumindo uma atitude de acolhimento destas pessoas, depois acabem por ser exploradas por gente sem escrúpulos e sem nenhum sentido de justiça. Isto é a primeira coisa.

A segunda é que, de facto, se verifique uma integração autêntica na comunidade, desde logo pelo aumento da capacidade linguística dos nos procuram. [Muitos] são pessoas de educação básica que têm mais dificuldade em aprender uma língua estrangeira. Era preciso que houvesse programas realisticamente preparados para responder a estas situações. Isto faz-se noutros países. Entre nós, há coisas interessantes e iniciativas, mesmo das escolas locais, mas é preciso ver como é que, depois, estas pessoas têm condições para chegar a participar nelas.

O Governo deveria ter outro papel nesta matéria?

Em algumas iniciativas tem. Algumas coisas não estão mal, mas não é fácil. Não queremos chegar ao que existe noutros países [em termos] de violência, de sentimentos interesseiros e injustos, [que atribuem] as culpas aos migrantes, quando sabemos que sem os migrantes a nossa sociedade não funcionaria.

Temos de investir realmente em criar um sistema e processos de integração efetivos, que levem as pessoas a viverem e a inserirem-se no nosso próprio caminho de vida como sociedade. Isso significa também que é evidente que quem chega vai ter um influxo na própria ordenação da sociedade. Nós próprios somos fruto de integrações desse tipo.

"Não podemos permitir que aqueles que buscam o nosso país com a intenção de conseguir uma vida melhor sejam explorados"

A par dos problemas de integração de migrantes e refugiados, temos também a taxa de pobreza a subir para 17%, de acordo com dados de 2022 divulgados recentemente pelo INE. Neste contexto, as instituições sociais, que desempenham um papel fundamental nesta área, dizem estar cada vez mais asfixiadas na sua capacidade de resposta. Teme que se chegue a um limite e que o setor tenha de recuar no apoio aos mais necessitados?

Se se chegar a isso, não é simplesmente uma pessoa ou outra que vai sofrer. Vamos ter uma sociedade disforme. O problema de hoje não é tanto o desemprego, [mas sim] as pessoas que têm emprego e que, com isso, não conseguem resolver a sua vida. Não é porque levem uma vida faustosa, mas porque o que ganham não dá para os encargos básicos. A situação energética causada pela guerra, com as suas consequências na economia, levou a aumentos de inflação que não são fáceis de resolver.

Agora, o que tem de haver é uma solidariedade nacional. Não são simplesmente os extremos da pobreza que estão mal – e esses estão pior –, mas é também a classe média que não consegue fazer face aos empenhos que tinham programado, e bem, para as suas vidas. Este é um problema grave e que não vai lá com discursos populistas.

Em relação ao tema dos abusos sexuais de menores na Igreja, recentemente, o jornal Expresso noticiou que as reparações às vítimas poderiam rondar entre 20 mil e 50 mil euros. Foi este o intervalo ponderado pela Conferência Episcopal?

Não. Não fizemos nenhum cálculo desses, porque acho que não é isso que está em causa, nem é isso que responde. A reparação que se pode dar do ponto de vista económico não é uma questão de tabelas. Nunca, nunca falámos em valores, [de] quem pode esperar mais ou menos. Nunca, nunca fizemos cálculos desses, porque também do ponto de vista jurídico tem de se ter em conta muitas coisas. Mas nem sequer estamos a falar disso.

O discurso que fazemos sobre a reparação das pessoas começa, antes de mais, por lhes proporcionar os meios necessários para uma reparação a nível médico, psicológico. Isto estamos a fazer. Já está a acontecer em muitos casos, como tem sido noticiado. Outro tipo de compensações e de ajuda às pessoas não está excluído, mas tem de ser visto caso a caso, porque só assim se tem uma noção de mínima justiça e das necessidades às quais é preciso acudir.

As vítimas têm manifestado o desejo de que haja pedidos de desculpa?

Esse pedido de desculpa tem sido repetido constantemente. O pedido de desculpa significa o seguinte, a meu ver: posso não ser responsável direto por um abuso, mas passando-se na minha igreja, eu sinto-me envergonhado pelo mal que causou. Basta ver os nossos comunicados e a afirmação clara dessa atitude. O que me move e me dá força é realmente evitar e ir ao encontro das pessoas que sofreram e evitar que outras venham a sofrer. É tolerância zero no que diz respeito a qualquer caso de abuso sexual de crianças ou de pessoas vulneráveis.

Em segundo lugar, tudo fazer para que aquilo que a Igreja é, um lugar seguro, não só seja realmente, mas que [isso] também realmente transpareça, essa segurança nas atitudes, na formação das pessoas. Tudo aquilo que possa acontecer de errado contradiz totalmente aquilo que é a razão de ser da Igreja.

Foi chamado pelo Ministério Público a prestar declarações em algum dos inquéritos em curso ligados aos abusos sexuais de menores?

Não, nem diretamente, nem indiretamente.

Nunca foi ouvido?

Não. Estamos a fazer o nosso trabalho, ao qual presido e pelo qual me sinto responsável e corresponsável, de conhecer a realidade e de tentar agir em conformidade. É isso que estamos a fazer. Temos tido uma relação com o Ministério Público a todos os níveis, mas é feita pelas instituições que criámos para tal, as comissões diocesanas, a coordenação nacional, a Comissão independente, inicialmente e agora o grupo Vita. Não é necessário que seja o presidente da Conferência Episcopal. Temos canais próprios para resolver isso e é bom que seja assim para garantir a isenção das coisas.

Em relação ao inquérito relacionado com suspeitas de alegado encobrimento da sua parte também não foi ouvido?

Não. Já tive ocasião de dizer isso. Nunca fui questionado. Ouvi dizer pelos meios de comunicação que há uma investigação que já correu, que já foi fechada, que foi reaberta, e agora não sei em que ponto se encontra. São informações que colho de jornalistas. Portanto, acho estranho que, de facto, eles saibam o que não sei, se sou parte interessada nisso.

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