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Entrevista ao Padre João Lourenço

Guerra Israel-Hamas. “O futuro não são as armas. O futuro não é matar o outro”

04 dez, 2023 - 20:55 • Ângela Roque

Conferência no Centro Cultural Franciscano quer ajudar a perceber as raízes históricas do conflito. O orador será o padre João Lourenço. Em entrevista à Renascença, o editor da revista Terra Santa diz que manifestações a favor de um lado ou do outro não promovem a paz e até revelam desconhecimento. E não poupa criticas à atuação da ONU.

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"O futuro não são as armas. O futuro não é matar o outro"
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O padre João Lourenço lamenta o grau de violência a que assistimos entre israelitas e palestinianos. Em entrevista à Renascença, o sacerdote franciscano diz que há muito “desconhecimento” sobre as raízes do conflito, a começar pela própria ONU que tem “um exército de funcionários em Gaza”, incapaz de denunciar a escravidão em que vivem os seus habitantes. De uma coisa não tem dúvidas: a paz não se promove com manifestações “anti”, partidárias, que instigam ao “ódio” do outro.

O editor da revista internacional Terra Santa será o orador da conferência ‘Israel /Palestina: as origens históricas de um conflito sem fim à vista’. Doutorado em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Antonianum, de Jerusalém, é professor catedrático emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, que dirigiu, tendo sido também vice-reitor da UCP.

A conferência está marcada para terça-feira, às 21h15, no Centro Cultural Franciscano, no Largo da Luz, em Lisboa, e a entrada é livre.

Tem de haver um empenho global para dar futuro às pessoas da Faixa de Gaza

A guerra entre israelitas e palestinianos polariza muito a opinião pública, mas não se pode entender onde se está sem se perceber como se chegou até aqui. É isso que que propõe fazer?

O meu objetivo é dar um pequeno contributo a partir das marcas e raízes históricas que estão na génese de toda esta problemática. E as raízes históricas são profundas, longas e perduram de há séculos, para não dizer de milénios. Mas, a realidade histórica é que ela condiciona, em muito, um problema que se vem sistematicamente repetindo, e que julgo que a nossa sociedade, em grande parte - e não digo só a sociedade ocidental europeia, mas a sociedade no geral - desconhece o que está nas origens e na base de todo este conflito. Que nos toca muito, porque é um conflito que, primeiro, tem a ver com um espaço geográfico que nos é caro: segundo, tem a ver com as raízes históricas que dão solidez e identidade à nossa cultura.

Depois, é também um drama assistir a todo este sofrimento. Portanto, o que procurarei fazer, a partir de dados concretos históricos, é visitar essas raízes.

A primeira realidade que é necessário visitar para perceber a génese do problema, é exatamente o tempo antes da nossa cultura, ou seja, do período que designamos genericamente como do Antigo Testamento e das origens bíblicas. Estão aí muitos dos traços que hoje perduram, e se não nos ajudam - porventura não ajudam todos a compreender o que sucede -, podem pelo menos descarregar em boa parte uma certa emotividade, muitas vezes bem superficial, no que diz respeito à forma como tomamos parte daqui ou dali. E, mais do que isso, procurar dar-nos algum fundamento para, seguindo a génese de toda esta problemática, poder chegar aos dias de hoje e compreender, de facto, o que está aqui na base, sermos mais racionais nas nossas empatias e, acima de tudo, sentirmo-nos motivados - porque também é uma questão importante - para buscar razoabilidade nas opções que devem ser tomadas.

Parece-me que neste momento falta muito isso, desde os órgãos transuniversais, como as Nações Unidas - de que duvido que uma boa parte dos agentes que tomam parte nas discussões e nas propostas tenham a mínima informação, o mínimo esclarecimento do que está na base.

Falta conhecimento também a nível político?

Vamos ver: há uma questão política aqui a resolver, mas só se chega a definir uma plataforma de atuação política se tivermos em conta as questões de natureza social e histórica que estão na base.

As razões de natureza histórica é o que tentarei fazer. As questões de natureza social… é, de facto, vislumbrar um horizonte, uma perspetiva de futuro para estes espaços e para os habitantes que neles residem. Diria, em relação à Faixa de Gaza, que tem de haver um empenho global para dar futuro àquelas pessoas, para que elas não continuem a ser escravas, vendidas a bandos que não têm mais objetivos do que a destruição e a morte do outro. Isto não pode acontecer.

Os países que contribuem para esse espaço - e são muitos, incluindo nós portugueses - dão centenas, senão milhões de milhões de euros para manter uma situação, um status quo não é digno, não é justo e não é razoável. É preciso abrir horizontes a estes povos, que se deixaram enredar numa teia de ódios e vinganças que, como dizia há tempos alguém, 'não caíram do nada'. Claro que não, mas a obrigação prévia é apresentar soluções que sejam soluções, e não deixar que as coisas resvalem para soluções que não são soluções.

E sobretudo com este grau de violência a que assistimos?

Este grau de violência é incomportável, é injustificável, e as situações que servem de base para o manter não são nem humanas, nem dignas, nem justificadas. Eu não posso pretender construir um clima de paz estando continuamente a tentar destruir o outro. O clima de paz é para construir com o outro e é para abrir horizontes ao outro. Não é o que aqui se passa.

Há muito tempo - e volto a dizer isto, que tenho dito muitas vezes - que as Nações Unidas, que têm um exército de funcionários em Gaza, conheciam esta situação indigna, em que quase 2 milhões e meio de pessoas ali estão escravizadas por um bando - que não é mais do que um bando, sejamos claros, usemos linguagem, não andemos com um eufemismos. Os contributos que nós damos é para dar horizonte às pessoas e não é para manter o status quo, nem é para o perpetuar, como vem acontecendo.

As declarações do secretário-Geral das Nações Unidas - já nem recorro à classificação que lhe tem sido dada - em nome da ONU, não são comportáveis. São declarações místico-gasosas que não contribuem nada para a solução. A obrigação das Nações Unidas como órgão de coordenação, de vigilância e de promoção da paz é, antes de mais, denunciar as situações anti paz, anti humanas e indignas em que estes grupos caem e se situam. Isto toca a um lado e toca a outro. De um dos lados há mais razão de ser para haver esta denúncia, e do outro há mais obrigação de levar aqueles que têm poder a atender aqueles que o não tem. Mas, não é ignorando as situações permanentemente, fazendo ouvidos moucos e olhos cegos, que se chega a um processo de entendimento.

As pessoas não são livres de opção em todo o mundo árabe, ou melhor dizendo em todo o mundo Islâmico

O Papa Francisco tem apelado com insistência à paz, já convocou uma jornada de oração e jejum. Aqui em Portugal os Franciscanos já promoveram uma vigília. Mas, também assistimos - em Portugal e por todo o mundo - a diversas manifestações a favor de um lado ou do outro. Numa questão tão polarizadora como esta, faz sentido estar de um lado ou do outro? Que utilidade têm estas manifestações?

Estas manifestações teriam algum interesse e fariam algum sentido se fossem em ordem a promover a paz e a abrir os grupos ao diálogo. Como elas vêm sendo feitas são manifestações partidárias 'anti'. E a maioria desses manifestantes são levados ou por um sintoma de vingança face a um lado ou ao outro, ou então por grande desconhecimento. É para isso que é necessário dar alguma informação.

Eu atrevo-me a dizer que a realidade palestiniana é uma realidade construída no passado, mas que hoje, verdadeiramente, de palestinianos é pouco… o que lá está são grupos, movimentos que ao longo dos séculos se acomodaram ali para dar continuidade e perpetuar uma situação que vive - a realidade é esta - da caridade Internacional. Não pode ser! A caridade internacional é para ajudar e promover, não é para manter situações. Compete iluminar isso, porque as emoções, as emotividades que presidem a estas manifestações não trazem qualquer tipo de solução, são apenas argumentos para manter a situação nos Status Quo atual.

São posições ideológicas?

São posições ideológicas que não contribuem para a resposta aos problemas que as pessoas sentem. É preciso que os órgãos internacionais deixem de estar paralisados sobre esta situação, como acontece ao nível do Conselho de Segurança (da ONU) por razões ideológicas, decidam dar as mãos e dizer: 'há aqui um problema grave, vamos tentar resolvê-lo'. Mas, resolvê-lo dando futuro a esta gente, criando um ambiente de valorização a este mundo de gente jovem.

Em Gaza há mais de 40% de pessoas abaixo dos 20, 19, 18 anos, que precisa de ter futuro. Mas, o futuro não são as armas, não são os túneis. O futuro não é matar o outro. O futuro é valorizar-se, construir um horizonte, trabalhar em ordem a uma dignidade que se venha alcançar, e não viver eternamente à custa de ajudas interesseiras e calamitosas que são dadas com interesses e fins políticos.

Há também aqui uma questão religiosa nisto tudo, ou não?

Há um pouco. Não tenho dados absolutos sobre isso, mas é preciso saber que esta população foi durante o século VII islamizada também pela força, e nunca conseguiram libertar-se. As pessoas não são livres de opção em todo o mundo árabe, ou melhor dizendo em todo o mundo Islâmico. As pessoas não são livres de fazer as suas opções.

Não importa que sejam 100%, mas sejam livres. Haja dignidade na liberdade da pessoa, na sua escolha, na sua fundamentação. Haja liberdade naquilo que são os seus direitos pessoais de escolher, sem estar sujeito à perseguição, à exclusão, ao ostracismo. Isso é uma realidade do mundo moderno. Quem não olha para esta realidade assim, perde todos os argumentos das suas opções. Se não está num clima para poder fazer as suas opções, não venham querer depois impô-las como dignas e como humanas.

Esta conferência tem o objetivo de esclarecer, ajudar as pessoas a terem mais dados?

O objetivo é esclarecer. Não sei se esclareço, mas o objetivo é apresentar uma visão histórica secular - no sentido de percorrer os séculos - sobre a chegada à situação atual, principalmente agravada a partir dos finais do século XIX. Foi desde aí e do início do século XX, e depois com a criação do Estado de Israel, que toda esta situação se despoletou. E porque é que não existia antes? Por que o Império Otomano sempre tratou as populações locais como carne para canhão, e é isso que muitas vezes as pessoas desconhecem.

Basta olhar para o exemplo que veio de Lawrence da Arábia, um Lord a dar e partilhar com estas populações um testemunho, para despoletar nelas o brio pela sua dignidade. Isto pode ser um caso considerado muito pontual, mas não é pontual, mostra muito bem a situação em que todo aquele mundo ali estava sujeito durante um longo Império Otomano.

Isto faz com que agora alguns governos, como costuma dizer a gíria popular, venham "verter lágrimas de crocodilo" sobre as responsabilidades que tiveram no passado, contribuindo ir para esta situação.

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