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Entrevista

Cristãos aprenderam "com o erro" na Terra Santa e "podem ajudar outros a ter uma visão diferente"

29 nov, 2023 - 17:34 • Ana Catarina André

O jesuíta Francisco Martins, autor do recente livro “A Bíblia tinha mesmo razão? As histórias de Israel e o Israel da História”, considera que há um problema de iliteracia na interpretação bíblica e defende que os cristãos podem contribuir para a construção de uma visão diferente sobre o modo como se pode habitar a Terra Santa.

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“A Bíblia tinha mesmo razão? As histórias de Israel e o Israel da História” é o título do mais recente livro do sacerdote jesuíta Francisco Martins. A obra centra-se na relação entre a História e a Bíblia, através da análise dos textos do Antigo Testamento, propondo um percurso pela História de Israel.

Em entrevista à Renascença, o autor questiona o que significa hoje habitar a Terra Santa, a propósito do atual conflito na Faixa de Gaza. “Se olharmos para os cristãos, as cruzadas foram uma forma de compreender a posse da terra, onde se dizia: ‘Na Terra Santa, só pode estar o povo cristão, todos os que são infiéis têm de desaparecer’. Graças a Deus, aprendemos com o erro e, se calhar hoje, podemos ajudar outros a ter uma visão diferente.”

Ao longo do livro, Francisco Martins aborda também as não-coincidências entre os relatos bíblicos e os achados arqueológicos, o que segundo o sacerdote “reclama dos crentes uma hermenêutica do texto bíblico, uma forma mais adulta de interpretar o texto bíblico”.

“Se leio a Arca de Noé como se fosse uma notícia histórica, e me ponho à procura dos restos da Arca de Noé, o erro é meu. Não é da Bíblia”, sublinha. E acrescenta: “Os escritores bíblicos não são uma espécie de contabilistas ou engenheiros dos acontecimentos da revelação de Deus na História. São escritores. Isto é literatura e a literatura tem uma forma muito própria de contar os acontecimentos e as experiências”.

Deus podia escolher revelar-se numa poesia? "Creio que sim e acontece na Bíblia", afirma Francisco Martins.

Transformou numa pergunta o título de um livro com mais de 70 anos, escrito pelo ensaísta alemão Werner Keller, dando assim nome ao seu livro. Qual foi o objetivo quando escreveu a “A Bíblia tinha mesmo razão? As histórias de Israel e o Israel da História”?

O título quer ser um bocadinho provocatório, e ao mesmo tempo retoma a discussão que o livro de Werner Keller criou, isto é, qual é a relação entre a Bíblia e a História? Daquelas histórias que nós conhecemos da Bíblia, Abraão, Isaac, Jacob, o Êxodo, o rei David, o rei Salomão, o que é que um historiador hoje consegue perceber? Estas histórias têm alguma correspondência direta à História ou essa relação com a História é mais indireta ou oblíqua? Os episódios que são relatados dizem respeito a acontecimentos de há dois ou três milénios ou, pelo contrário, refletem um acontecimento histórico mais recente e mais comunitário?

Uma pergunta que mantém no final do livro…

É uma pergunta que permanece, porque não merece uma resposta fácil, de sim ou não. A Bíblia relaciona-se com a História da mesma forma que, para quem crê, a Bíblia diz respeito à revelação de Deus que acontece na História. Mas a Bíblia é também literatura e a literatura tem uma forma de se relacionar com a História, que é muito própria. Gosto de dar este exemplo muito simples: Abraão, de acordo com o livro do Genesis, no capítulo 12, partiu da Terra de Ur dos Caldeus, hoje sul do Iraque, para a Terra de Canaã, a Terra Prometida, a zona de Israel e da Palestina.

Esta é uma história que é atribuída a Abraão, mas provavelmente o acontecimento histórico que está por trás é o regresso do povo do exílio no século VI a.C. Não é um acontecimento do terceiro milénio antes de Cristo. É um acontecimento do primeiro milénio. Significa, então, que o episódio não tem nenhuma verdade histórica? Não tem nenhuma relação com a História? Tem, mas é uma história diferente.

Ao longo do livro, recorre à Bíblia e aos achados arqueológicos para falar sobre a história de Israel. Em muitos casos não há coincidência entre ambos, como acabou de exemplificar. O que é que esta não coincidência diz sobre o texto bíblico, em especial para os crentes?

Creio que reclama dos crentes uma hermenêutica do texto bíblico, uma forma mais adulta de interpretar o texto bíblico. Os escritores bíblicos não são uma espécie de contabilistas ou engenheiros dos acontecimentos da revelação de Deus na História. São escritores. É literatura e a literatura tem uma forma muito própria de contar os acontecimentos e as experiências.

A maior parte dos sionistas que chega à criação do Estado de Israel em 1948 não tinha propriamente uma relação religiosa, mas cultural com a Bíblia.

Quando falamos do texto bíblico em contextos mais comuns, até catequéticos, muitas vezes é apresentado de forma cronológica.

Eu creio que esse é o erro. Não se pode ler um mito como se fosse uma notícia histórica, da mesma forma que não se deve ler uma notícia histórica na Bíblia como se fosse um mito. Se leio a Arca de Noé como se fosse uma notícia histórica, e me ponho à procura dos restos da Arca de Noé, o erro é meu. Não é da Bíblia. Da mesma forma, se há uma referência concreta a um rei assírio ou israelita ou um judeu de Judá, etc., e eu acho que é só uma referência mitológica e não é uma referência histórica, também cometo um erro, porque ali, naquele caso, concretamente está a fazer-se uma referência a um género literário que é descrição histórica. A questão dos géneros literários é aqui essencial. Respeitar os diferentes géneros literários da Bíblia: mito, saga, lenda, notícia histórica, etc.

Como é que esses géneros se relacionam com a fé?

Vou fazer uma pergunta absurda. Deus podia escolher revelar-se numa poesia ou não? Eu creio que sim e acontece isso na Bíblia. Uma grande parte da Bíblia é poesia. Os profetas são poesia, e Deus escolheu esta forma de se revelar para quem crê. Quem crê, acredita que também, assim, Deus se está a revelar.

Na relação com a História e na forma como a Bíblia relata os acontecimentos históricos, e na forma como reelabora literariamente esses acontecimentos, o que se está a dar também é a experiência comunitária da revelação de Deus, a forma como o povo percebeu que Deus intervém na História e a forma como conta essa intervenção.

O grande ponto e a grande dificuldade é [o modo] como somos formados em Portugal para ler a nossa tradição literária. Não se dá a uma criança de cinco anos “Os Lusíadas” e guardamos Fernando Pessoa para uma fase mais avançada da escolaridade, porque seria difícil. Falta a mesma coisa com a Bíblia.

A Bíblia tem textos que são altíssima literatura, e muitas vezes para perceber como é que esses textos contam ou reelaboram a história que o povo viveu e as experiências de Deus nessa História, usa-se um estilo literário extremamente elevado e complexo. Nós não somos treinados para essa leitura, mas devíamos sê-lo. No fundo, é um problema mais de iliteracia bíblica do que propriamente um problema da Bíblia não ter nenhuma relação com a História. Não é um problema de fé. Aqui, até é mesmo mais um problema de conhecimento.

Para Ben Gurion, fundador do Estado de Israel e primeiro presidente, era muito mais relevante ter o acesso ao Mediterrâneo do que ter os lugares bíblicos da Cisjordânia.

Depois deste trabalho, em que questiona a investigação científica que procurou na arqueologia provas para legitimar os relatos bíblicos, como é que olha para o sionismo e para a procura na Bíblia de legitimidade da criação do Estado de Israel?

Essa é uma questão muito complexa. Toda a questão da relação entre os povos da Antiguidade e os povos do presente é complexa. Os portugueses do Viriato, por assim dizer, são os portugueses de hoje? Não. Há aqui uma série de História pelo meio que cria uma consciência de povo e de nação e de Estado-nação muito diferente e, portanto, é preciso ter cuidado no caso de Israel e dos outros povos em geral.

Agora, evidentemente a Bíblia, sobretudo no movimento sionista, antes da criação do Estado de Israel e depois também com a criação do Estado de Israel, desempenhava um papel, sobretudo cultural. A maior parte dos sionistas que chega à criação do Estado de Israel em 1948 não tinha propriamente uma relação religiosa, mas cultural com a Bíblia. Este é um detalhe, talvez interessante de saber: a maior parte dos sítios bíblicos mais importantes estão na zona da Cisjordânia que, de acordo com a resolução da ONU de 1947, será o lugar do futuro Estado Palestiniano. Ora para Ben Gurion, fundador do Estado de Israel e primeiro presidente, era muito mais relevante ter o acesso ao Mediterrâneo do que ter os lugares bíblicos da Cisjordânia.

Isso desvaloriza o papel da tradição bíblica na atual conjuntura?

O que aconteceu a partir de 1967 alterou esta situação. A partir dessa altura, quando Israel, na Guerra dos Seis Dias, acaba por conquistar a Cisjordânia, estes lugares bíblicos ganharam nova relevância. Para uma determinada direita religiosa israelita, muitos destes lugares bíblicos são reclamados como fazendo parte do grande Israel. Não é por acaso que há um colonato em Hebron, há ouro junto a Anatote, a cidade onde nasceu o profeta Jeremias, ou em Tecoa onde nasceu o profeta Amós, ou em Siquém que é hoje Nablus. Porquê? Porque estes lugares bíblicos tornaram-se muito importantes para um determinado público israelita. Portanto, o conflito também tem, de alguma forma, uma dimensão religiosa, mas também uma dimensão bíblica muito concreta, que aqui se revela nisto, como se revela também na discussão sobre as fronteiras da Terra Santa.

Falando concretamente do atual conflito na Faixa de Gaza, de que maneira é que a temática do regresso a Israel e da relação de Israel com outros povos, tão presente na Bíblia, permite compreender e explicar os ataques do Hamas e a consequente resposta de Israel?

Este conflito é antes de mais político, com razões políticas na atualidade. É um conflito que infelizmente é alimentado por uma dimensão religiosa – as religiões às vezes podiam ter um papel de maior ajuda à paz, em vez de a dificultar. Este conflito, tal como os anteriores, tem a ver um bocadinho com esta compreensão da relação entre a vontade divina ou a promessa divina, e a ocupação ou a posse de uma terra.

O que é significa [dizer] que Deus promete a um povo uma terra, para ser a sua terra? Significa, e essa é uma forma que também está presente na Bíblia, mas não é uma voz única, que todos aqueles que não pertencem a esse povo estão excluídos? Todos aqueles que são infiéis não podem habitar na Terra que é Santa? Todos aqueles que não são santos não podem habitar a Terra que é Santa? Essa é uma voz possível. Se lermos o livro de Josué, há ideia de que o povo chegou à Terra, conquistou tudo e exterminou os povos.

Mas há outra visão…

É muito curioso ver também na Bíblia e nas outras tradições, islâmica e cristã, outras maneiras de compreender o que significa habitar e possuir uma terra prometida. Olhemos, por exemplo, para Abraão e para os patriarcas. Abraão e os patriarcas chegam à Terra Santa, chegam à Terra prometida por Deus. São eles que recebem a promessa de Deus de que vão estar naquela Terra. Não chegam e começam a criar problemas com os habitantes que lá existiam. Negoceiam a sua presença. Falam com os outros, compram terrenos, encontram maneiras de viver com os outros, e esta é uma forma diferente [de ver a questão]. É uma voz diferente de compreender a coabitação.

Estou a falar da Bíblia e aqui, concretamente do povo judeu, mas isso é verdade também para os muçulmanos e para os cristãos. Se olharmos para os cristãos, as cruzadas foram uma forma de compreender a posse da terra, onde se dizia: "na Terra Santa, só pode estar o povo cristão, todos os que são infiéis têm de desaparecer”.

Graças a Deus, aprendemos com o erro e, se calhar hoje, podemos ajudar outros a ter uma visão diferente. Creio que esta é a dimensão do conflito, na qual talvez as religiões têm um papel a jogar. Olhar para as suas próprias tradições e dizer: "Há formas diferentes de entender o que significa habitar numa Terra Santa".

A Igreja insiste muito sobre o próprio dom da terra que Deus faz ao povo de Israel. É um dom que reclama do povo judeu, de acordo com a Bíblia, uma moralidade muito elevada


O seu livro debruça-se sobre o Antigo Testamento, mas gostava de trazer para esta conversa o Novo Testamento, em particular os Evangelhos. O que é que podem trazer para esta questão da identidade de Israel, da própria relação de Israel com outros povos?

Os Evangelhos também são texto que nasce no seio do povo de Israel. As pessoas, às vezes, ficam um bocadinho escandalizadas com esta afirmação muito básica, que é uma afirmação histórica: "Jesus era um judeu do seu tempo". Quer Jesus, quer os próprios primeiros discípulos tiveram que refletir bastante sobre a relação entre Israel e as suas tradições e o seu Deus, e a terra concreta de Israel, por uma razão muito simples.

Naquela altura, os romanos destruíram o templo e, logo a seguir, expulsaram os judeus da sua terra. O Imperador Adriano em 135 proibiu os judeus de entrarem em Jerusalém. Creio que o Novo Testamento também reflete um bocadinho sobre o que significa estar presente na terra: no fundo, [é] continuar a acreditar no Deus do Antigo Testamento que se revela também em Jesus Cristo, como Deus Trindade, quando se perdeu o templo e a terra.

O Cristianismo oferece uma resposta que passa seguramente por esta ideia de que Deus, agora, encontra cada homem no lugar onde ele se encontra, no tempo onde se encontra, no sítio onde se encontra, na língua [que fala]. Mas São Paulo, por exemplo, na Carta aos Romanos, continua a insistir sobre um aspeto muito importante: as promessas que Deus fez ao povo do Antigo Testamento permanecem. Os dons que Deus fez ao povo permanecem.

Isso quer dizer que a afirmação de São Paulo pode legitimar as pretensões da criação do Estado de Israel?

Estamos a ir um bocadinho longe no que São Paulo teria diante dos olhos. Mas é verdade que São Paulo, com esta passagem importante da Carta aos Romanos, capítulos 9 a 11, levanta a questão para nós, cristãos: Qual é o significado teológico do facto de Israel, hoje em dia, ter regressado à sua Terra? O que é que isso significa concretamente no contexto das promessas de Deus, sobretudo no contexto das promessas de Deus, em que nós, como Igreja, a partir do Concílio Vaticano, começámos a ter uma relação mais positiva com o povo judeu, com os nossos irmãos judeus?

Acho que aqui o Vaticano tem sido extremamente prudente – e bem. O Vaticano insiste que a questão da partição da terra, dos dois Estados, de Jerusalém requer, antes de mais, uma solução política. Isto não quer dizer que a Igreja não olhe também para este facto histórico, que é o regresso do povo à Terra Santa, com uma certa relevância teológica. É difícil enquadrar isso. Agora, a Igreja insiste muito sobre o próprio dom da terra que Deus faz ao povo de Israel. É um dom que reclama do povo judeu, de acordo com a Bíblia, uma moralidade muito elevada na relação com essa terra e com os povos que ali habitam.

Acredita que sendo também este um conflito religioso, as religiões, sobretudo as três monoteístas (Cristianismo, Judaísmo e islamismo) deveriam ter um papel mais interventivo na sua resolução?

Acho que sobretudo não deviam alimentar o conflito. O primeiro passo é realmente não dar armas, não dar munições. Dizer: “Esta terra é uma Terra Santa, não há espaço aqui para infiéis ou para quem não é igual a nós” é problemático. Foi problemático no seio do Cristianismo até há uns tempos. É problemático em determinadas correntes, quer do Islão, quer do Judaísmo, no presente. Creio que as três tradições, o Islão, o Judaísmo e o Cristianismo têm recursos para imaginar criativamente uma forma diferente de habitar naquela Terra.

O que é preciso, neste momento, neste conflito é também imaginação, imaginação também religiosa. Recebi uma tradição na qual existem várias vozes na relação com aquela terra. Como é que uso os recursos da minha tradição religiosa para imaginar criativamente uma solução para o conflito, em vez de estar a imaginar uma forma de exacerbá-lo? Creio que este é o papel das religiões. Creio que nós, cristãos, temos aqui uma história, da qual podemos aprender alguma coisa.

Podemos ajudar outros a viver a relação com a terra, e com aquela terra em concreto, de forma diferente. [Dou] novamente o exemplo das cruzadas. Acho que os cristãos hoje, pela Graça de Deus, estão numa posição em que dizem: "É preciso encontrar aqui uma forma de coabitar e de habitar esta Terra sagrada para os três, onde há espaço para todos”.

Isto significa respeitar a História desta Terra. Significa, por exemplo, respeitar que os territórios históricos das diferentes confissões e religiões não podem estar à venda no mercado, não podem ser alienados por pressão imobiliária. Significa – e esta é a grande insistência dos líderes religiosos cristãos, em Jerusalém – respeitar o caráter Internacional de Jerusalém e não cobrar impostos aos territórios das comunidades religiosas que ali habitam.

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