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"Laudate Deum"

Papa Francisco. Ações de grupos climáticos radicais "preenchem um vazio de falta de pressão da sociedade"

06 out, 2023 - 07:00 • José Pedro Frazão

É apenas um parágrafo, mas um sinal da atenção do Papa a toda a realidade em torno das alterações climáticas. Na Exortação Apostólica "Laudate Deum", Francisco diz que toda a sociedade deveria exercer uma "sã pressão", pelo que as ações destes grupos apenas decorrem desse vazio. A convite da Renascença, os ambientalistas Francisco Ferreira e Viriato Soromenho-Marques comentam este parágrafo do documento publicado esta semana.

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O Papa Francisco considera que há um vazio na sociedade que está a ser preenchido por grupos que promovem ações consideradas "radicais", no contexto das conferências climáticas.

A referência faz parte de um parágrafo enquadrado na reflexão do Papa intitulada "O que se espera da COP28, no DUBAI", que, por sua vez, ocupa 8 dos 73 parágrafos da Exortação Apostólica "Laudate Deum", divulgada esta semana pela Santa Sé.

No parágrafo 58, o Papa começa por apela a que se acabe "duma vez por todas" com uma atitude de classifica de "irresponsável" quando se apresenta a questão climática "apenas como ambiental, 'verde', romântica", que, sublinha Francisco é muitas vezes ridicularizada por interesses económicos.

Por contraponto, Francisco apela a que se admita que este é um "problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis". Neste sentido, continua o Papa, trata-se de um assunto que requer o envolvimento de todos, dando entrada ao segmento breve que dedica aos protestos climáticos.

"Por ocasião das Conferências sobre o Clima, chamam frequentemente a atenção as ações de grupos ditos 'radicalizados'; mas na realidade eles preenchem um vazio da sociedade inteira que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos", escreve Francisco na sua Exortação.

Protestos "não têm sido violentos"

Viriato Soromenho-Marques reconhece que o Papa não faz neste trecho uma crítica direta aos protestos. O filósofo que presidiu à Quercus nos anos 80 do século passado encontra no texto de Francisco "uma censura da inação a que esses protestos procuram, de certa forma, responder e colmatar".

" Evidentemente, mesmo os jovens ativistas que os fazem têm perfeita consciência que só uma ação coletiva institucional, no plano político e económico, a nível nacional e internacional, é que poderemos avançar no sentido de combater os danos maiores", ressalva Soromenho-Marques que lembra que o Papa não entra em grandes detalhes sobre o tema.

Soromenho-Marques concorda com as aspas dedicadas por Francisco à qualificação "radicais" das ações visadas no parágrafo e, observando também o contexto dos últimos episódios em Portugal e no estrangeiro, defende que as referidas ações não têm sido violentas.

" Tivemos há pouco tempo aqui em Portugal um caso em que penso que essa barreira foi ultrapassada, com um objeto que foi atirado contra um ministro. Não sei se foi voluntário ou involuntário, pode ter acontecido no contexto do calor do momento, do próprio nervosismo das ativistas que fizeram. Mas na verdade, aí há uma agressão física que é de todo em todo de evitar. As ações radicais que têm acontecido na Europa e nos Estados Unidos e noutros países, são ações que perturbam a vida das pessoas, nomeadamente, por exemplo, a limitação da circulação rodoviária, mas não atingem a sua integridade física. Pelo contrário, tem acontecido que muitos desses jovens ativistas têm sido agredidos fisicamente pela policia e também pelos próprios prejudicados por esses bloqueios", comenta Soromenho-Marques.

Eficácia duvidosa: sim ou não?

Tal como Soromenho-Marques, também Francisco Ferreira presidiu à Quercus tendo este mais tarde transitado para a ONG ZERO. Em ambos as associações, a estratégia de contestação poucas vezes passou por ações de disrupção da rotina dos cidadãos, apesar do mediatismo de alguns protestos.

"A questão coloca-se quando o tipo de ação, que pode ser mais mais "radical" ou mais mediática, acaba por interferir de forma abusiva na vida dos outros. Por exemplo, quando se pára o trânsito e as pessoas estão, não no carro, mas no transporte público para ir para o trabalho e não conseguem chegar a horas. Ou quando há problemas, até do ponto de vista de uma violência discutível, por exemplo, ao atirar tinta, como foi no caso do Ministro do Ambiente", começa por explicar Francisco Ferreira para quem " há espaço para todos" no movimento ambientalista português.

O Presidente da ZERO acrescenta que "felizmente" existem diferentes associações em Portugal que cobrem um espectro bastante grande de ação, antes de manifestar discordância com os métodos usados por alguns grupos em Portugal e no estrangeiro.

"Este tipo de ação mais radical pode ser contraproducente. Podemos aprender com o Reino Unido e com a Extinction Rebellion, que durante muito tempo fez este tipo de ações e deixou de as fazer desde 1 de Janeiro, porque chegou à conclusão de que era contraproducente em relação à ação climática, que havia outras formas onde a sociedade se sentiria mais unida para trabalhar nesta ação", afirma Francisco Ferreira.

Um dos rostos históricos do movimento ambientalista português diz ter "seríssimas dúvidas" se estas estratégias não criam mais obstáculos e "uma perceção mais negativa" em relação à luta climática, "por muita pressão que nós necessitemos e muito mediatismo que esteja em jogo".

Para Viriato Soromenho-Marques há que distinguir os impactos das ações ditas radicais, considerando que estas acabam por ter eficácia "não atingindo os resultados que são visados - só serão possíveis coletivamente - mas pelo menos mantendo viva esta temática. A comunicação social relata-os". O filósofo considera que este mérito é "extremamente importante" porque vivemos numa sociedade totalmente absorvente.

"Estamos envolvidos num conjunto de sistemas produtivos e laborais que ocupam a nossa agenda diária, de tal maneira que é muito fácil adiarmos coisas fundamentais em favor de coisas imediatas. O que acontece com estes protestos "radicais" é utilizar a realidade da sociedade mediática em que nós vivemos e, de certa forma, também do espetáculo. Mais depressa se atende a um protesto que bloqueia uma estrada do que um protesto que é feito numa conferência de imprensa em que um conjunto de jovens elaboram e apresentam um texto muito bem escrito e pensado, mas que efetivamente não ocupa a atenção mediática de um gesto um pouco mais musculado, mas não violento", argumenta o professor da Universidade de Lisboa.

O peso das palavras e dos atos

Apesar das reservas sobre os métodos, Francisco Ferreira reconhece validade nas razões de muitos desses protestos. "Não há dúvida que estamos muito atrasados. Aquilo que está em jogo nestes alertas tem essa justificação e tem a compreensão do próprio Papa Francisco", acrescenta o Presidente da ZERO que se coloca numa posição em que o importante é "apelar à discussão" tendo em conta a necessidade de união face à "emergência climática".

"Às tantas, estamos mais a discutir a forma do que a discutir o conteúdo e o próprio uso de determinadas palavras - como o "estarmos em guerra" - é algo que tem que ser devidamente ponderado e medido pela própria violência das palavras que exige um esforço de compreensão. Se estamos a pôr a humanidade em perigo, sem dúvida alguma, com a emissão de gases com efeito de estufa e as suas consequências, por outro lado, temos situações de verdadeira guerra em que, aí sim, a violência e o uso destas palavras se justifica melhor. Penso que o Papa mostra essa compreensão em relação a atuações mais "agressivas", mas, no caso particular de cada um dos países, temos que perceber se realmente são úteis e se se justificam".

Para Soromenho-Marques importa sublinhar que o Papa está a chamar a atenção para a total indiferença pelos direitos das gerações futuras. "Não são gerações que ainda não nasceram, são as gerações que hoje têm entre 16 e 25 anos e que estão a ver o seu futuro comprometido desde já", insiste o professor da Universidade de Lisboa.

"O mundo não é horizontal, é profundamente vertical, poliédrico. Temos que ter bem a noção daquilo que a que damos atenção. E aquilo que realmente nestes protestos deve ser sublinhado é a razão desses protestos. Não há medidas miraculosas. Estamos a falar de processos civilizacionais que vão durar muitos anos. O problema é que tarda o momento em que percebemos que há uma estratégia que há uma coordenação e que estamos a ter pequenas vitórias com pequenos passos. Isso não está a acontecer. Isso é que é revoltante na medida em que estamos a comprometer o futuro dos mais frágeis, daqueles que são neste momento crianças e jovens que não têm ainda poder e daqueles que ainda não ainda não nasceram", remata o filósofo.

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