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Solenidade do Corpo de Deus surge "para combater heresias medievais", diz professor de História da Igreja

04 jun, 2023 - 15:00 • Henrique Cunha

A solenidade do Corpo de Deus foi instituída pelo Papa Urbano IV, em 1264. E Portugal foi um dos primeiros países a aderir à solenidade. Em Lisboa, já se fazia a procissão do Corpo de Deus no reinado de D. João I (1385-1433).

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O Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, vai presidir, na Sé, às celebrações na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, no dia 8 de junho, quinta-feira.

A tradicional procissão do Corpo de Deus, pelas ruas da Baixa da cidade, começa pelas 17h00, no Largo da Sé, onde está prevista a sua chegada pelas 18h30, com a bênção final.

No Porto, D. Manuel Linda preside às 11h00 na Sé Catedral à Missa do Corpo de Deus. Pelas 16h00 tem início a Oração de Vésperas na Igreja da Trindade de onde parte a procissão do Corpo de Deus em direção ao largo da Sé.

De acordo com o Cónego Adélio Abreu, professor de História da Igreja na Universidade Católica e Presidente do Cabido Portucalense, a origem da devoção está ligada “a muitas heresias medievais” e em particular aquelas que “punham em questão a presença real de Cristo na Eucaristia”. “É neste quadro que começam a aparecer iniciativas eucarísticas que no fundo exprimem o valor do Sacramento da Eucaristia”, adianta o professor.

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A solenidade do Corpo de Deus surge na Idade Média em que contexto?

Muitas das heresias medievais põem em causa, por exemplo, os sacramentos.

E algumas delas de facto punham em questão, por exemplo, a presença real de Cristo na Eucaristia. Nesse quadro começam a aparecer iniciativas eucarísticas que no fundo exprimem o valor do Sacramento da Eucaristia e afirmam a presença real de Cristo. E é neste quadro de facto que aparece a festa do Corpo de Deus. Ela, concretamente aparece em meados do século XIII, em Liége na Bélgica, diríamos hoje.

Na raiz do aparecimento está um conjunto de visões místicas de uma monja agostiniana, Juliana de Liege E a partir daí, então o bispo da diocese avança com um conjunto de iniciativas de cariz eucarístico que levaram à criação da festa.

Da criação da festa nesse contexto, até depois, ao estender à Igreja universal não vai, de facto, muito tempo. A festa é criada umas décadas depois em Roma, em 1264. E a criação é devida ao Papa Urbano IV que vem precisamente do cabido de Liége. E certamente que esta ligação acaba por estar na base também a da criação da festa na Santa Sé. É também provável que a criação aí da festa esteja vinculada também a um milagre Eucarístico e a um milagre Eucarístico medieval que se deu nas proximidades de Bolsena. É preciso ter em conta que Bolsena era próximo de Orvieto, que foi uma das cidades onde o Papa residiu de facto por um período significativo. Isto também terá tido, certamente importância.

E já estamos a falar de uma festa com procissão ou no início, ainda sem essa vertente mais popular?

Desde cedo a realização da festa do Corpo de Deus tem uma componente visível muito forte. A festa do Corpo de Deus é uma Festa da Eucaristia, mas não quer dizer que o assento esteja colocado na dimensão celebrativa, na dimensão refeição da Eucaristia, mas está muito presente na dimensão, contemplação na dimensão visiva, na dimensão de adoração da própria Eucaristia. Por isso, uma forma de exprimir a tal presença real, e exprimi-la no quadro público é precisamente essa de trazer a Eucaristia para a rua, e de realizar uma procissão com a solenidade devida.

Outras formas de afirmar, digamos, essa dimensão visível, por exemplo, é no quadro da celebração eucarística. É neste quadro medieval que aparece a questão da chamada elevação. Elevação para que se veja. Por isso é neste quadro que se privilegia o elemento visível, o elemento da adoração que de facto aparece a procissão do Corpo de Deus. E a procissão do Corpo de Deus aparece neste contexto medieval. O trazer propriamente a Eucaristia para a rua será até anterior à própria criação da solenidade do Corpo de Deus. Uma coisa e a outra vão-se ligar muito. A festa com esta dimensão visível do expor a Eucaristia na Custódia, no Ostensório. Tudo isto se situa neste mesmo quadro neste mesmo contexto.

E a Constituição da solenidade, a criação da Solenidade é, portanto, originária dos finais do século XIII?

A celebração da festa em primeiro lugar, é de facto de meados 1246. Depois, a tal instituição da festa em Roma acontece com Urbano IV, em 1264, com uma Bula; a Bula Transiturus de Hoc Mundo. É uma Bula de 8 de setembro de 1264. A celebração depois vai fixar-se no início do século XIV, no contexto do Papa Clemente V, que é o primeiro Papa do período do Papado em Avinhão. E, obviamente, a instituição da festa é para o papado uma ocasião de afirmar a doutrina eucaristia e também progressivamente afirmar o seu próprio papel de hegemonia no quadro celebrativo da afirmação litúrgica. Obviamente que a parte teológica da eucaristia anda também ligada a essa afirmação do Papado que neste contexto em que se caminha um pouco para final da Idade Média também interessa ao papado afirmar. São tempos já de uma progressiva perda da autoridade do papado e, simultaneamente, de uma necessidade da sua reafirmação própria.

Esta questão relacionada com a visibilidade da Eucaristia é impossível praticamente de a dissociar da manifestação através das procissões, daí elas terem, ao longo da história, ganho bastante importância, não é?

Sim ganharam muita importância. A difusão da procissão do Corpo de Deus é uma realidade. A Procissão realiza-se em tantos sítios em tantas cidades. Foi lugar de convergência e de colaboração dos poderes religiosos e dos poderes cívicos e públicos. Se calhar nalguns momentos pode ter sido também o lugar de uma afirmação da Igreja no espaço Público, quando eventualmente já o tinha menos. Mas ainda hoje, apesar de vivermos num quadro completamente diverso, num quadro de sadia laicidade; a procissão do Corpo de Deus faz de fato algum sentido. A celebração com uma dimensão publica faz algum sentido. Ela aparece no fundo como testemunho publico de fé. Não propriamente no sentido de imposição da fé ao espaço Público, mas como testemunho público de fé no espaço público. Como trazer a presença de Jesus Cristo no Sacramento da Eucaristia para as ruas do mundo, para as ruas do viver quotidiano, para os lugares da vivência quotidiana, enquanto o amor de Jesus Cristo por nós se vivência aí, e enquanto as vicissitudes da vida também podem convergir em oferecimento para a Eucaristia. É necessário provavelmente nos dias de hoje recolocar o modo como se propõe estas formas de devoção eucaristia que devidamente recolocadas continuam certamente a fazer sentido.

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