​Hora da Verdade

"Não há dúvidas" que padres suspeitos de abusos serão afastados. Incluindo nas dioceses de Lisboa e Porto

14 mar, 2023 - 21:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Helena Pereira (Público)

Perante os abusos sexuais cometidos por sacerdotes, D. Américo Aguiar assume-se como "herdeiro duma culpa", que não é "direta", mas existe e obriga a Igreja a "amar, cuidar, defender e acompanhar" as vítimas que "viveram um horror indescritível na sua vida". Em entrevista ao programa "Hora da Verdade", da Renascença e jornal Público, o bispo auxiliar de Lisboa explica que a diocese que integra ainda não afastou nenhum dos "cinco, seis" sacerdotes que estão no ativo e que constam da lista da Comissão Independente porque está à espera de "mais dados". Depois disso admite que estes padres "podem ser sujeitos à tal proibição do exercício público do ministério"

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"Não há dúvidas" que padres suspeitos de abusos serão afastados. Incluindo nas dioceses de Lisboa e Porto
"Não há dúvidas" que padres suspeitos de abusos serão afastados. Incluindo nas dioceses de Lisboa e Porto

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O bispo auxiliar de Lisboa admite, em entrevista ao Hora da Verdade da Renascença e do Público, indemnizações às vítimas de abusos sexuais em casos, por exemplo de padres sem meios de o fazer.

"Não tenho dúvida nenhuma que a diocese imediatamente concretiza o pagamento de indemnização à vítima sem pestanejar, sem dúvida e sem hesitação", garante D. Américo Aguiar, que considera ainda que, no caso de haver bispos que tenham encoberto casos de abusos, "têm que ter consequências"

Questionado sobre se a Igreja Católica em Portugal é conservadora ou progressista, D. Américo Aguiar responde que "depende, às vezes, do assunto", assumindo-se como "o homem que está sempre no meio da ponte". Nesta entrevista à Renascença e ao jornal Público, o bispo auxiliar de Lisboa assume que nas 21 dioceses do país há "sensibilidades diferentes", mas que "no fim", em relação aos abusos, os bispos estarão "todos certíssimos na resposta que é devida a cada"

A Diocese de Lisboa não afasta, para já, cinco padres que estão no ativo, que foram sinalizados pela Comissão Independente, pedindo mais dados. Por que é que não é já tomada uma medida preventiva para os afastar?

A Diocese de Lisboa, tal como as outras dioceses portuguesas, recebeu no passado dia 3 de março a famosa lista, infelizmente, daquilo que seriam os nomes das pessoas que apareceram referidas em testemunhos, em denúncias à comissão independente. A lista de Lisboa tem 24 nomes. Oito são sacerdotes já falecidos. Quatro nomes são pessoas que não conseguimos identificar. Não encontrámos no rol daquilo que possam ter sido sacerdotes e não encontrámos referências de que possam ser leigos. Depois temos alguns sacerdotes que já estão, por idade ou por doença, fora do exercício. E depois temos então os cinco, seis sacerdotes que são referidos nessa lista e que podem ser sujeitos à tal proibição do exercício público do ministério. É a chamada suspensão, embora na terminologia formal não se deva utilizar a palavra suspensão.

O senhor Patriarca entregou à comissão diocesana, na passada quinta-feira - dia em que eu deixei, aliás, de ser membro da comissão diocesana, porque uma das decisões da Conferência Episcopal foi a de que os eclesiásticos não fizessem parte das comissões -, a lista que também solicitou de imediato à Comissão Independente dados que pudessem dizer alguma coisa sobre estes sacerdotes. Depois de mais de um ano em que demos voz ao silêncio, agora é a fase da ação, da verdade e da justiça e nós temos que fazer tudo “by the book”. Nos próximos dias, terminará este trabalho e recomendará ao senhor Patriarca aquilo que serão os próximos passos a dar. E nos passos a dar está o afastamento do exercício público do ministério, como é óbvio.

As dioceses funcionam a diferentes velocidades?

São diferentes realidades. Não vou comentar nenhum bispo ou nenhuma diocese. O mínimo que se deve fazer para não tomar decisões erradas, e no respeito pelas vítimas, é demorar mais um dia, mais uma semana, mais 15 dias. Quando ouço o Presidente da República e o presidente da Comissão Episcopal Portuguesa, compreendo os dois e não estou aqui a gaguejar sequer. Entendo que quem está fora deseje que as coisas sejam feitas o mais rapidamente possível. A partir do momento que a comissão diocesana esteja munida das informações mínimas necessárias, as decisões serão tomadas imediatamente.

Algum dos 24 nomes coincide com casos que estavam nos arquivos?

Alguns, sim. Alguns são casos conhecidos.

E há leigos?

Um, apenas. Identificámos um nome como um potencial agente pastoral.

Não está preocupado com o facto de a resposta da Igreja ter contribuído para afastar ou alienar algumas pessoas?

Acredito e aceito que aquilo de que estamos a falar afasta pessoas e aproxima outras. Algumas entendem que é um momento difícil e doloroso para as vítimas. Nada se compara com aquilo que é o sofrimento de uma pessoa que viveu uma situação destas, alguém que tinha numa figura confiança, proteção, cuidado e de um momento para o outro passa a ser testemunha de um acto de violência inimaginável. Isto é, nós temos de fazer tudo para evitar que volte a acontecer. É a tal “tolerância zero” de que o Papa Francisco nos fala. A “tolerância zero” ainda não está conquistada na nossa sociedade e nós [Igreja] temos muitíssimo para fazer.

Os sacerdotes identificados já foram, entretanto, contactados pela própria diocese?

Não. Nós aguardamos dados para poder dizer mais qualquer coisa do que dizer à pessoa que está numa lista.

Achou insultuoso o pagamento de indemnização às vítimas, como dizia o cardeal patriarca de Lisboa?

Compreendo o que o senhor Patriarca disse. Nós temos conversado. Nos contactos com as vítimas que acolhemos em Lisboa, nunca nenhuma delas colocou até hoje na mesa qualquer necessidade, desejo ou vontade de indemnização. A interpretação que faço [das palavras] do Patriarca não é dizer que “não” ou a dizer que “qualquer possibilidade de indemnização é insultuosa”. Entendo que estava a dizer que, quando no conhecimento direto dos casos e das pessoas e como isso nunca foi colocado e até foi negado por alguns, nós estarmos a colocar a questão podia soar a isso.

Qual a minha leitura daquilo que significa o dossiê das indemnizações? Eu sou sacerdote e penso: “O que é que Cristo quer que se faça?” Acho que Cristo quer que não abandonemos ninguém que tenha vivido uma situação destas e isso passa por a acompanhar e também passa por um gesto de indemnização que signifique algum conforto, algum paliativo naquilo que foi o horror da sua vivência. A dor não prescreve. O Papa Francisco disse-nos há dias que não basta pedir perdão. Temos que ir para além disso. Temos que ser capazes de acompanhar cada um.

Se um sacerdote é condenado em razão de uma situação destas a uma pena e a uma indemnização e, porventura, não tem meios, não tenho dúvida nenhuma que a diocese imediatamente concretiza o pagamento de indemnização à vítima sem pestanejar, sem dúvida e sem hesitação. Também o mesmo se ficar provado que a Igreja ocultou, que a Igreja transferiu, que a Igreja criou um contexto que facilitou o acontecimento. Existem 21 dioceses portuguesas, cada uma independente e que depende do Santo Padre. A Conferência Episcopal Portuguesa tenta concertar um caminho conjunto.

As pessoas, católicas ou não, ouvem o Papa Francisco e percebem que é claro que tem que haver essa indemnização...

Para mim, também é claríssimo.

E, ouvindo declarações de altos responsáveis da Igreja portuguesa, não percebem por que razão é que há dúvidas sequer...

Conhecendo os meus irmãos bispos, acredito profundamente que no fim vamos todos estar sincronizados em relação aos procedimentos, em relação às indemnizações e em relação ao acolhimento e acompanhamento de cada uma das vítimas.

Neste momento, o passo está um bocadinho desacertado nas 21 dioceses?

Dou-vos um exemplo daquilo que nós em Lisboa fizemos. Pedimos à APAV que nos ajudasse. A APAV tem um programa específico chamado 'Programa Care', que existe desde 2016, mais focado para o abuso de menores. Pedimos-lhes que sejam a entidade que acompanhe as vítimas que venham fazer denúncias à comissão diocesana ou mesmo à APAV. Qualquer pessoa que faça uma denúncia, faça um testemunho vivo, pode ir à APAV, ter o acompanhamento psicológico e a responsabilidade material é do Patriarcado.

Para além disso, está previsto que a APAV nos possa referenciar pessoas que queiram ter um acompanhamento espiritual ou queiram ter um contacto mais direto com a Igreja. Outra parte do protocolo prevê um trabalho de formação e prevenção junto dos agentes pastorais, das paróquias, das comunidades para que todos estejam atentos àquilo que possam ser sinais da parte de potenciais vítimas.

Há pouco, quando falou das indemnizações, disse que seriam calculadas também em função de quem poderá ter ocultado casos ou transferido padres. O que é que vai acontecer às pessoas, aos responsáveis, que ocultaram e que transferiram padres?

Se isso aconteceu, e acredito que possa ter acontecido naquilo que é o historial até dos outros países, essas situações têm que ter consequências.

Que consequências são essas? Se for um bispo, haverá abertura de um processo pela Santa Sé a essa pessoa?

Obrigatoriamente.

Tem conhecimento de bispos em funções que possam ter colaborado em encobrimentos?

Se tivesse conhecimento, tinha a obrigação moral de o dizer. Não tenho.

A perceção que existe de facto é que há divisões dentro da própria Igreja sobre como lidar com este assunto. O arcebispo de Évora falava em "opiniões diferentes".

No final, vamos ter uma resposta linear. Peço que se respeitem os 'timings' de cada realidade eclesiástica. Compreendo a pressão, mas peço que aceitem que nós temos que ter o tempo para fazer as coisas certas. Não está em causa não afastar do exercício público do ministério qualquer pessoa que esteja suspeita de ter abusado sexual de um menor ou de uma pessoa vulnerável. Não há dúvida absolutamente nenhuma que um sacerdote que tenha sido denunciado, e sobre o qual nós tenhamos os dados mínimos, seja afastado do exercício do ministério. Não há dúvidas quanto a isso. Todos farão, e o Porto fará. Todos vão chegar ao mesmo resultado e ao mesmo respeito por aquilo que é a expectativa das vítimas e da sociedade em geral.

Há bispos progressistas e conservadores em todo o lado. Em Portugal, estamos a assistir a um processo de fricção entre os bispos mais conservadores e os mais progressistas?

Não ouso fazer classificações dos meus irmãos bispos, a não ser etária.

Mas essa divisão não existe?

Existe na nossa casa, na nossa família, no nosso grupo de amigos e existe em todas as realidades da sociedade.

Pelo que conhece da Igreja portuguesa, é mais conservadora?

Não sei, nunca fiz a contagem. Depende, às vezes, do assunto. Agora posso aceitar que há pronunciamentos que podem ser entendidos como mais progressistas ou mais conservadores.

O senhor onde se coloca?

Eu sou o homem que está sempre no meio da ponte. Estou entre a extrema-direita, de um lado, e a extrema-esquerda. A Igreja não é uma “instituição-ponto”. Se fosse uma “instituição-ponto”, era uma organização não-governamental, em que tinha corpos gerentes. A Igreja é muito mais do que uma ONG. Nós temos que ser pastores e pastores significa amar, cuidar, defender e acompanhar estes homens e estas mulheres que viveram um horror indescritível na sua vida. E nós somos herdeiros de uma culpa. Eu não tenho culpa direta, mas sou herdeiro duma culpa. Assumo essa culpa, assumo o sofrimento e assumo essa vergonha. Mas quero fazer tudo e farei tudo para que ninguém se sinta uma vítima outra vez. Temos que evitar que estas vítimas porventura se sintam vítimas outra vez. Quando eu vejo discussões sobre se paga, se não paga, se faz, se não se faz, acho que estamos a torná-las vítimas de novo.

Nesta fase, que linha está a conseguir vingar em relação a este caso dos abusos? Uma linha mais progressista ou uma linha mais conservadora?

Pedia que na vossa reflexão encontrassem outras chaves de leitura em vez de progressistas e conservadores.

Qual?

Não sei, mas aqui temos homens e homens de Deus que têm maior ou menor capacidade, maior ou menor rapidez, maior ou menor leitura, maior ou menor sensibilidade, a acolher, a encaixar e a agir em conformidade na realidade das suas dioceses em relação a estes problemas. E estou convencido que nós vamos chegar ao ponto de caramelo, ou seja, vamos chegar àquele momento certo em que, mesmo sendo 21, mesmo tendo sensibilidades diferentes, mesmo tendo realidades territoriais diocesanas diferentes, estaremos todos certíssimos na resposta que é devida a cada uma das vítimas que teve a coragem de abrir o seu coração e abrir estes episódios negros da sua vida. A Igreja tem que ser farol, tem que ser timoneira, tem que ser exemplar. E todas estas nuvens, todos estes nevoeiros, todas estas hesitações, tudo isto tem que ser rapidamente ultrapassado. Temos que ser farol e sinal desta transparência total e desta “tolerância zero”. Não há outro caminho. Absolutamente.

Tem conhecimento de alguma ameaça, algum tipo de recomendação aos sacerdotes para que tenham cuidado na sequência de toda esta polémica?

Não tenho nenhuma informação, absolutamente.

Recomenda algum tipo de cuidado em relação eventuais ameaças aos bispos, aos sacerdotes?

Eu não tenho qualquer informação em relação a isso.

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