Hora da Verdade

Cotrim Figueiredo admite "saneamento político" de Ana Jorge. Exoneração está "mal explicada"

02 mai, 2024 - 07:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Joana Mesquita (Público)

Cabeça de lista da Iniciativa Liberal alerta que “pode vir a confirmar-se” que o PSD se prepara para colocar no aparelho de Estado “os seus boys and girls”, à semelhança do que considera que aconteceu nos oito anos de governação socialista.

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Cotrim Figueiredo contra apoio do Governo a eventual corrida de Costa ao Conselho Europeu. "Não é a pessoa indicada”
Cotrim Figueiredo contra apoio do Governo a eventual corrida de Costa ao Conselho Europeu. "Não é a pessoa indicada”

Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, o ex-líder da Iniciativa Liberal (IL), João Cotrim Figueiredo, considera que “está mal explicada” a exoneração de Ana Jorge como provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e fala mesmo da possibilidade de o Governo ter feito um “saneamento político”.

Aos 62 anos, Cotrim Figueiredo é o cabeça de lista da IL às eleições europeias de 9 de junho e lamenta o que considera ser a “gafe” do ministro da Defesa, depois tornada “farsa” do Governo, em torno da possibilidade de abrir o serviço militar a jovens delinquentes.

Em relação à duração da legislatura, o ex-líder liberal admite que o Governo da AD possa durar para lá da discussão e votação da proposta de Orçamento do Estado para 2025. Cotrim Figueiredo não vê “confiança suficiente de quem puder ser alternativa a este Governo para o deitar abaixo”.

Quanto ao recente manifesto de Mayan Gonçalves – “Unidos pelo liberalismo” – e sobre uma eventual vontade do antigo candidato presidencial avançar numa corrida à liderança da IL, Cotrim Figueiredo responde com um “ótimo”, acrescentando que Mayan é “livre” para o fazer.


Pode ler aqui a segunda parte desta entrevista a João Cotrim Figueiredo, em que o cabeça de lista da IL às europeias considera que António Costa "não é a pessoas indicada" para ser presidente do Conselho Europeu.


O que é que acha desta ideia de o Governo abrir o serviço militar a jovens delinquentes para colmatar as lacunas nas Forças Armadas?

Teria sido apenas uma gafe numa universidade de verão do PSD, se a senhora ministra da Administração Interna não tivesse vindo tentar salvar o seu colega de Governo e confirmar que, sim, senhor, era algo que se podia discutir. Entretanto, depois, para que a farsa não ficasse ainda sem mais um episódio, já houve o comunicado da Ministério da Defesa, a dizer que não era nada, foi só uma hipótese lançada para o ar.

Foi uma gafe?

Acho que foi. E não foi apenas uma gafe, porque depois houve estas sucessões de tentativas de correção que dão razão ao ditado - foi “pior a emenda do que o soneto”.

Tem dito que estas eleições europeias não podem ser vistas como uma segunda volta das legislativas. Mas um mau resultado da AD pode fragilizar o Governo e pode fragilizar Luís Montenegro?

Mas isso é sempre a verdade. Uma má intervenção do primeiro-ministro a propósito do IRS pode fragilizar a AD. Uma gafe do ministro da Defesa pode fragilizar a AD. Tudo é possível de fragilizar ou fortalecer quem está no poder ou quem está na oposição. Tudo. Incluindo resultados eleitorais.

Mas os resultados eleitorais podem servir de trampolim para acelerar a crise política?

Podem ou não. Depende não só da maneira como eles são lidos e encarados, mas também da maneira como se entra nas eleições. Portugal está cheio de exemplos, já tem uma história democrática, felizmente, suficientemente longa para ter exemplos de tudo, de eleições autárquicas que conduziram a quedas de governo, de grandes derrotas europeias que não conduziram a mudança nenhuma. Tudo depende do contexto. Não acho positivo para o país que se olhe para as eleições europeias como uma espécie de referendo aos primeiros dois meses do investido do governo. É que isto é uma coisa quase esquizofrénica.

Sim, mas é preciso tirar ilações nessa altura, se o resultado for significativo...

Sim, a ilação pode ser que o governo começou mal, mas isso pode perguntar diretamente. Sim, o Governo começou mal.

E também é daquelas pessoas que acham que este Governo tem poucas condições para completar a legislatura até ao fim?

Boa pergunta. Mais um apelo à minha bola de cristal. Já tive várias visões sobre a duração possível deste governo.

É consoante as gafes que forem sendo cometidas?

Não. Acho que é consoante o interesse de que outros possam ter de deitar o governo abaixo no Orçamento para 2025, alguns em outubro, ou, se for na especialidade, em dezembro.

PS ou Chega?

Que são quem tem feito mais ameaças, com moções de rejeição ou de posições mais de força. Portanto, depende muito disso. Quem achar que tiver mais a ganhar e, nesse sentido, um muito mau resultado nas europeias pode encher o PS de ânimo. Mas eu não creio que o PS precise, porque o PS foi para a manifestação do 25 de Abril, a dizer que aquilo era uma evidência que o governo já não tinha maioria. O PS fará da leitura de eleições ou de outros fenómenos sociais o que quiser, não precisa disso. Não creio que estejamos perante um governo particularmente efémero.

Portanto, acha que vai durar mais do que o Orçamento?

[Mais] do que o que eu próprio acharia há uns tempos.

Acha que o Orçamento não é o limite?

É um momento charneira. E, se me pergunta qual é a minha perspetiva, aqui estou a fazer de comentador político, coisa que não gostaria muito, mas, neste momento, não vejo confiança suficiente de quem puder ser alternativa a este governo para o deitar abaixo.

A exoneração da provedora da Santa Casa acha que deu início à caça da AD aos nomeados políticos socialistas?

A premissa da pergunta é que há nomeados políticos socialistas. A máquina do PS tentou fazer do caso de Fernando Araújo, na direção executiva da SNS, e do caso de Ana Jorge, na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o início da caça às bruxas, e já avisou que a seguir vem a AIMA e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Há centenas de cargos destes e o que nós estamos agora a confirmar é que eles estavam absolutamente dominados pelo aparelho do PS. Coisa que nós durante anos tentámos chamar a atenção. Nos cargos de confiança política percebe-se que possa ter que haver proximidade. Não é disso que estamos a falar nestes casos. São posições, são postos, funções, essencialmente de execução técnica. Não se percebe que todos estes lugares estivessem pejados de militantes socialistas, no caso de Ana Jorge, inclusivamente ministra de vários governos de José Sócrates.

E se os substitutos ou as substitutas tiverem ligações políticas aos partidos da AD?

Confirmar-se-ia outra coisa que a Iniciativa Liberal também está farta de dizer - que a partidarização do aparelho de Estado, seja pelo PS, seja pelo PSD, tem causado enormes danos ao país. O que é que nós gostaríamos de ver? Que o processo de substituição destes responsáveis fosse enormemente transparente e fosse desejavelmente precedido de processos competitivos.

Da CReSAP [Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública]?

Não necessariamente da CReSAP, de processos que pudessem ser competitivos. Voltando o fio à meada, primeiro ponto: comprova-se agora que o aparelho de Estado estava pejado de militantes boys and girls do PS. Segundo, ainda a ver, pode vir a confirmar-se que o PSD se prepara para fazer o inverso, que é colocar lá os seus boys and girls. Relativamente à Santa Casa da Misericórdia, está por esclarecer exatamente o que é que se passou. Mas foi no mandato desta presidente, Ana Jorge, que se encomendou a auditoria e que se denunciaram as graves decisões, com os graves impactos, à volta do projeto da Santa Casa Global e da internacionalização dos jogos. E, portanto, não gosto de ver as pessoas que foram aquelas que acabaram por denunciar situações a serem as primeiras vítimas dessas mesmas situações. Isto só mostra que...

A exoneração está mal explicada?

Exatamente. Isto só mostra que, até agora, sabemos insuficientemente o que esteve em causa que justifica esta exoneração. E se foi apenas por falta de confiança política, estamos perante aquilo que já alguém chamou um saneamento, acho a palavra um pouco excessiva, mas percebo, um saneamento político com o qual a Iniciativa Liberal nunca estará de acordo.

E sobre uma eventual audição à Procuradora-Geral da República, qual é que é a sua opinião? Acha que se justifica?

Dois planos. Sou daqueles portugueses que gostaria de ter uma muito maior visibilidade sobre o funcionamento da justiça. Defendo que pudéssemos saber, junto do Conselho Superior de Magistratura, exatamente que consequências teve a apreciação da conduta daquele juiz. E a mesma coisa para procuradores do Ministério Público.

Mas isso não é uma ingerência num órgão de soberania? Por parte de outro órgão de soberania?

Não, pelo contrário. Qual é a forma de escrutinar o funcionamento, quer do Ministério Público, quer da Magistratura Judicial? Pouca ou nenhuma. Mais, quando se tenta, a reação é um bocadinho essa: “Ah, estão a interferir, estão a condicionar politicamente”.

Mas a Procuradora tem de responder no Parlamento sobre o processo?

Não. Sou dos portugueses que acham que deve haver mais escrutínio, mas acho mal que o poder judicial responda na sede do poder legislativo.

Então devia responder onde?

Devia haver uma maneira de poder pedir explicações ao Conselho Superior.

Mas não por parte do Parlamento?

Não por parte do Parlamento. Seja por relatórios regulares, seja por informações que possam ser solicitadas por quem de direito, que o escrutínio existisse. Porque é uma caixa negra. Nós não sabemos se a qualidade, ou a falta dela, de magistrados ou de procuradores está a ter as consequências devidas e merecidas relativamente à sua progressão profissional e à sua progressão de responsabilidades. Isto é grave. A maneira de defender a separação de poderes é não deixar que nenhum deles se torne autocrático, entre em autogestão. E isso é uma forma de autocracia.

Em relação ao Presidente da República já percebeu o que é que se passa com a insistência sobre a necessidade de reparação histórica às antigas colónias?

Não percebi. Acho que ninguém percebeu. Até porque cada vez que o Sr. Presidente da República falou sobre o assunto, e já foram talvez três vezes, diz coisas diferentes.

Não vê aqui uma pressão por parte dos PALOP e do Brasil?

Acho que o Sr. Presidente da República é um daqueles casos em que teria feito melhor em ficar em silêncio e, até hoje, não percebi muito bem como é que um jantar de correspondentes da imprensa estrangeira consegue produzir tantos factos políticos com alguma gravidade e com alguma seriedade. Porque vocês não vão perguntar sobre os comentários étnico-sociológicos sobre titulares de cargos públicos mas é uma coisa absolutamente intolerável num Presidente da República. Seja sozinho ao espelho, seja em jantares privados, e este nem sequer era privado, seja em qualquer circunstância, não é aceitável.

E acha que estas declarações dizem alguma coisa sobre o segundo mandato do Presidente da República?

Acho que é um dos momentos baixos dos dois mandatos do Presidente da República.

E acha que isto também pode estar aqui a servir para criar factos políticos paralelos ao caso das gémeas brasileiras, para desviar atenções?

Também já ouvi essa interpretação. Não sou um grande adepto de teorias da conspiração e acho que o Sr. Presidente da República também é suficientemente experiente e hábil, especialmente em matérias de comunicação, para saber que isso não ia funcionar.

André Ventura, o líder do Chega, falava há dias de que isto podia ser, caso fosse possível, motivo para a destituição do Presidente da República. Qual é a posição da Iniciativa Liberal? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra?

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Não creio que seja caso disso. É caso de análise e, neste caso, de crítica, mas não creio que seja caso de destituição. Mas, enfim, o Chega faz vida da hipérbole e do exagero. É mais um exemplo.

Diria que, se é para isto, mais valia não haver um Presidente com origem no centro-direita? Que mais vale não contar com Marcelo Rebelo de Sousa?

Mas isso é uma daquelas expressões que parece que vem daquelas pessoas que acham que a origem partidária de um Presidente da República...

Não, eu estou a perguntar.

Não, mas já ouvi também essa... Mas é de pessoas que acham que os Presidentes da República são eleitos para fazer uma espécie de...

Favor.

De favor, não, é mais que favor. É uma espécie de facilitador dos objetivos políticos da sua área política de origem. É uma visão um bocadinho redutora da função.

A liderança de Rui Rocha não tem sido propriamente fácil. A saída de Carla Castro, o manifesto promovido por Mayan Gonçalves. Acha que a sua saída penalizou o partido?

Acho mesmo que é uma maneira de desviar atenções do tema europeu e quero estar muito concentrado nisso. Mas permita-me discordar da análise que faz de que a liderança do Rui Rocha não teve vida fácil. Isso, em parte, é verdade, mas acho que nenhum líder partidário tem propriamente vida fácil. Todos eles têm questões internas com as quais têm de confrontar-se. Todos têm pessoas que gostam mais e menos da forma como dirigem os respetivos partidos. E eu tenho enorme orgulho no trabalho que o Rui Rocha tem desenvolvido e exatamente porque as condições estavam longe de serem as ideais. E a forma como ele tem conseguido afirmar-se na cena política portuguesa, e hoje lhe reconhecem qualidades que demoraram demasiado tempo a reconhecer, na minha opinião, é exatamente testemunho de que as renovações dos partidos têm que acontecer.

Mas, pelos vistos, Mayan Gonçalves está ali à espreita para questionar a liderança de Rui Rocha e as europeias podem até ser esse gatilho.

Óptimo. Óptimo. É livre. Era o que mais faltava num Partido Liberal não haver pessoas com ideias diferentes e com vontade de propor soluções diferentes.

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