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Eleições europeias

Mitos e factos sobre migração

06 jun, 2024 - 06:30 • Catarina Santos

Os muros funcionam? A Europa está realmente a viver uma nova "crise" de chegadas irregulares? O novo pacto entre os 27 vai ser mesmo aplicado? Oito mitos e factos sobre migração – um dos temas que mais tem aquecido os debates e a campanha destas eleições europeias.

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A migração tem sido um dos temas mais quentes na campanha para as eleições europeias que se avizinham – em Portugal e nos restantes estados-membros. Com o aumento de entradas irregulares dos últimos anos, e depois de aprovado o novo pacto migratório – mesmo no fim da legislatura do Parlamento Europeu –, os holofotes voltaram novamente a incidir sobre a migração.

Mas será que as perceções mais comuns, exploradas politicamente, correspondem a factos? Façamos um ponto de situação do fenómeno, na União Europeia (UE) e no mundo, em oito pontos.

1. Há uma nova "crise" migratória?

O fenómeno migratório é particularmente complexo e inclui um leque de situações diversas – desde migrantes económicos (qualificados ou não) a requerentes de proteção internacional – que nem sempre corresponde ao retrato que se extrai das chegadas irregulares.

Vamos por partes.

De acordo com a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex), registaram-se 380 mil entradas irregulares na UE em 2023 – o número mais elevado desde 2016 e um incremento de 17% face a 2022, cimentando a tendência de crescimento verificada nos últimos três anos.

Estas entradas fizeram-se maioritariamente por mar – mais de 270 mil (um aumento de 64% face a 2022). Por terra chegaram cerca de 115 mil pessoas (um decréscimo de 29% face a 2022).

A este propósito, note-se que a contagem de entradas irregulares diz respeito a número de passagens, não de pessoas. De acordo com a Frontex, se uma pessoa entrar ilegalmente várias vezes, ou tentar entrar em mais do que um ponto, vai representar várias entradas irregulares nas estatísticas.

Mas as entradas irregulares representam apenas uma pequena fração do total de imigrantes que vêm para a UE. Em 2022, registaram-se 5,1 milhões de entradas totais de pessoas vindas de países terceiros para a Europa, de acordo com o Eurostat.

No início de 2023, havia um total de 448.8 milhões de residentes na UE, dos quais 6% eram nacionais de países que não pertencem à UE (27.3 milhões). Se somarmos os que já têm cidadania europeia mas nasceram fora da UE, a percentagem sobe para 8.5% (42.2 milhões).

Números muito abaixo da taxa de população estrangeira de países como a Suíça, Austrália, Islândia ou Israel.

Investigações sobre o fenómeno mostram que o discurso sobre um grande aumento da migração irregular europeia é “desproporcional em termos de volume” e não tem em conta o enquadramento mundial.

2. As rotas mudam, o fenómeno migratório não

O pico de entradas (e mortes) deu-se em 2015-2016, quando se ultrapassou os 65 milhões de deslocados em todo o mundo. Além da guerra na Síria, que provocou uma das maiores crises humanitárias das últimas décadas, países como a Líbia, Sudão, Nigéria ou Afeganistão foram palco de conflitos e instabilidade que levaram milhares de pessoas a fugir. A Europa foi o destino de uma parte destes movimentos e o Mediterrâneo Central a principal via de entrada.

Depois desses anos de chamada “crise” migratória, os números de chegadas diminuíram consideravelmente e as rotas europeias mais usadas foram oscilando. Em 2018, a rota do Mediterrâneo Ocidental tornou-se a principal via de entrada irregular na Europa, com milhares de migrantes a atravessarem a Argélia e Marrocos, com destino a Espanha. Nos anos seguintes o fluxo diminuiu, após a implementação de medidas como o reforço de cooperação entre as autoridades de Espanha, Marrocos e da UE, mas também devido à pandemia de Covid-19.

Em 2023, o Mediterrâneo Central voltou a ser a rota mais usada. De acordo com a Frontex, 41% dos migrantes irregulares atravessaram o perigoso percurso marítimo entre o norte de África e o sul de Itália. Pelos Balcãs Ocidentais chegaram 26% e pelo Mediterrâneo Oriental vieram 16%.

No ano passado, a maioria destes migrantes veio da Síria (mais de 100 mil), Guiné, Afeganistão e Senegal. Estas quatro nacionalidades preenchem mais de um terço do total de entradas irregulares detetadas (380 mil).

Mas, apesar já não ser a rota mais usada, Espanha continua a registar números elevados de chegadas – foram quase 57 mil em 2023, 82% mais do que em 2022. A maioria segue a perigosa rota do Atlântico em direção às ilhas Canárias.

As sete ilhas ficam a cerca de 100 km da costa noroeste africana e tornaram-se o principal destino de migrantes vindos do Senegal e de outros países africanos, que fogem de conflitos ou vêm em busca de melhores condições de vida.

3. A Europa continua a ter a travessia marítima mais mortal do mundo

O Mar Mediterrâneo é, de facto, o maior cemitério da Europa – mesmo que a expressão produza já pouco efeito, de tanto se repetir. As travessias irregulares – e mais mortíferas – em direção à Europa foram aumentando na primeira metade da década de 2010. Até 2015, o fenómeno cresceu em direção a Itália, chegando sobretudo à ilha de Lampedusa e à Sicília.

Entre 2014 e 2023, cerca de 35 mil pessoas perderam a vida e mais de 26 mil desapareceram naquelas águas, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

Desde que há registos, 2016 foi o ano mais mortífero, com mais de 5.300 pessoas que morreram ou desapareceram a tentar chegar à Europa (mais de 4.500 das quais no Mediterrâneo Central, entre o norte de África e Itália).

Nos anos seguintes, os registos situaram-se entre os dois e os três mil, mas no ano passado voltaram a subir, chegando a mais de 4.100 mortos e desaparecidos (mais de 2.500 no Mediterrâneo Central, mais de 950 no Oceano Atlântico, entre África e as Canárias, mais de 450 no Mediterrâneo Ocidental e mais de 170 no Mediterrâneo Oriental).

Na última década, a OIM tem documentado detalhadamente o número de migrantes mortos e desaparecidos em todo o mundo. O projeto “Missing Migrants” (Migrantes Desaparecidos”) registou um total de 63.285 mortos ou desaparecidos nas rotas migratórias globais, entre 2014 e março de 2024.

O relatório de março deste ano conclui o seguinte:

  • Perto de 60% das mortes documentadas foram por afogamento. As capacidades de busca e salvamento são insuficientes e deveriam ser melhoradas, afirma a organização.
  • Mais de dois terços desses mortos não puderam ser identificados – os familiares não têm como saber o que lhes aconteceu.
  • Entre os que puderam ser identificados, mais de um terço eram provenientes de zonas de conflito – o que significa, diz a IOM, que não dispunham de vias seguras para fugir da guerra e procurar refúgio.

O Mediterrâneo Central continua a ser a rota mais mortífera. Segue-se África, Ásia, Américas e o continente europeu.

4. Muros nas fronteiras funcionam?

A preocupação com o tema trouxe de volta a defesa do reforço de fronteiras, com alguns estados-membros a apostar mesmo na construção de barreiras físicas. Há 13 países que supervisionam as fronteiras terrestres do espaço europeu (cobrindo uma linha de cerca de 9.640 km): Bulgária, Croácia, Estónia, Finlândia, Grécia, Hungria, Letónia, Lituânia, Noruega, Polónia, Roménia, Eslováquia e Espanha. Destes, 10 estão a construir vedações (só Roménia, Croácia e Eslováquia não construíram). A maioria começou depois de 2015 e no final de 2023 cobriam já 1.522 km (16% das fronteiras terrestres da UE).

E não é só nas fronteiras externas que se verifica um reforço de barreiras. Áustria, Alemanha, Itália, França e Eslovénia têm atualmente agendados períodos de controlo de fronteiras dentro do espaço Schengen por causa dos fluxos migratórios.

Mas os números da última década mostram que construir muros e vedações terrestres não tem contribuído, por agora, para reduzir as entradas irregulares, sublinha um relatório de Costica Dumbrava, analista político do Serviço de Estudos do Parlamento Europeu.

De acordo com os dados compilados por Dumbrava, se olharmos para a evolução das entradas pelas rotas terrestres, não se nota um decréscimo depois da construção destes obstáculos. Há, aliás, uma subida paralela das entradas e das barreiras físicas. Isto poderia significar que as vedações proporcionam maior capacidade de deteção de entradas ilegais, mas dois terços dessas chegadas acontecem por mar – o que deita por terra essa leitura.

Já em 2016, uma porta-voz da Frontex dizia, numa sessão com jornalistas onde estava a Renascença, que fechar uma fronteira é como "apertar um balão": o ar não desaparece; pressiona-se num ponto e ele expande-se noutro.

Numa "perspectiva europeia global", dizia Izabella Cooper, "fechar uma fronteira não é suficiente. O que tem de ser feito é lidar com a causa dos problemas. Enquanto houver uma guerra na Síria, uma situação instável no Afeganistão, no Iraque, no Sudão do Sul, haverá migrantes e refugiados a chegar e haverá traficantes".

5. Alargando a lupa: a Europa está assim tão pressionada?

A UE tem cerca de 10.000 km de fronteiras terrestres, tal como os Estados Unidos. Como já vimos, em 2023 a Frontex registou cerca de 380.000 entradas ilegais no território europeu.

Do outro lado do Atlântico, registaram-se 3.3 milhões no mesmo ano, de acordo com as autoridades norte-americanas (os registos incluem apreensões nas fronteiras, entradas recusadas e expulsões por razões de saúde pública).

São quase oito vezes mais.

Na Europa havia cerca de 680 mil migrantes irregulares em 2021 e quase 1.300.000 em 2023 (dados do Eurostat). Nos Estados Unidos havia perto de 10.5 milhões de migrantes irregulares em 2021 (dados do Pew Research Center).


Se nos focarmos em quem procura proteção internacional, percebemos que menos de 10% do total mundial de refugiados vivia na UE, no final de 2021. No final de 2022, em consequência da guerra na Ucrânia, este número aumentou para 20%.

Os refugiados representam 1.5% do total de população que vive no espaço europeu.

A migração é um fenómeno global e que tem crescido de forma estável nas últimas décadas. Entre 1990 e 2020, as Nações Unidas registaram um crescimento de 153 milhões para 281 milhões.

No mesmo período, a população global cresceu de 5.3 biliões para 7.8 biliões. O que significa que, em 30 anos, a quantidade de migrantes face ao total de população cresceu ligeiramente, de 2.9% para 3.6%.

6. A lição ucraniana: conseguimos acolher seis milhões de pessoas de repente

A invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, obrigou milhares de pessoas a procurar refúgio noutros países. Desde o início do conflito, registaram-se mais de 30 milhões de travessias a partir da fronteira da Ucrânia. A ONU estiva que quase 6 milhões de refugiados ucranianos estejam na UE – a maioria na Polónia e na Alemanha.

Logo em março de 2022, a UE ativou a Diretiva Proteção Temporária, um regime de emergência utilizado em circunstâncias excecionais de afluxo maciço, que garante proteção imediata e coletiva a pessoas deslocadas e que permite aliviar a pressão sobre os sistemas nacionais de asilo dos estados-membros.

Esta proteção inclui autorização de residência, acesso ao mercado de trabalho e à habitação, assistência médica e acesso das crianças a educação. Até novembro de 2023, mais de 4,2 milhões de pessoas vindas da Ucrânia beneficiavam deste mecanismo.

Esta resposta imediata e eficaz mostrou a capacidade da UE para assegurar um rápido acolhimento a um número significativo de pessoas vulneráveis.

7. O que tem feito a Europa para manter migrantes fora das suas fronteiras?

As travessias irregulares bateram recordes em 2015, em plena guerra na Síria, com 1.83 milhões de registos – sendo que 1.3 milhões pediram asilo.

Estes valores começaram a descer consideravelmente no ano seguinte, depois do acordo entre UE e Turquia para travar a passagem de migrantes – a maioria sírios, a fugir do conflito – para a Europa. Mais de 50 mil ficaram presos na Grécia. Um ano depois do acordo, havia mais de quatro milhões de refugiados na Turquia. Foram pagos seis mil milhões de euros para os manter ali.

Com a Líbia não foi feito um acordo tão formal, mas, desde 2015, a UE consagrou um total de 700 milhões de euros de apoio àquele país. Em 2016 começou a dar instrumentos e formação à Guarda Costeira para impedir barcos com migrantes de se lançarem ao Mediterrâneo ou conseguirem alcançar águas internacionais. Foi também atribuída à Líbia a responsabilidade por coordenar as missões de busca e salvamento.

Recorde-se que a Líbia era então – e continua a ser – um país fragmentado politicamente. Entre 2014 e 2020 esteve mergulhado numa guerra civil. Desde 2021, existe um governo de transição apoiado pela ONU, com o objetivo de realizar eleições presidenciais e parlamentares, suspensas indefinidamente. O adiamento levou a uma nova divisão administrativa do país em 2022, com a nomeação de um governo paralelo, baseado no leste do país.

Em 2017, a parceria com a UE foi reforçada, com a adoção de um memorando de entendimento entre Itália e Líbia e com a Declaração de Malta, assinada pelo Conselho Europeu.

Em 2021, a Guarda Costeira líbia, com o apoio de Itália e da UE, capturou no mar 32.425 refugiados e migrantes, que foram devolvidos a território líbio. Relatórios consecutivos de organizações humanitárias a operar no terreno foram dando conta, ao longo de anos, de graves abusos de direitos humanos praticados nas prisões líbias.

Num relatório de janeiro de 2022, as Nações Unidas referiam casos de violência sexual, tráfico e expulsões coletivas, sublinhando que a “Líbia não é um porto seguro de desembarque para refugiados e migrantes”.

Até 2022, mais de 80 mil pessoas foram intercetadas no mar e devolvidas à Líbia. Em 2023, a OIM estimava que mais de 700 mil migrantes de cerca de 40 nacionalidades residam neste país do norte de África.

Já em 2023, a UE anunciou outros controversos acordos, com a Tunísia (700 milhões de euros), a Mauritânia (210 milhões de euros) e o Egipto (7,4 mil milhões de euros).

Mais uma vez se levantaram dúvidas quanto às garantias de respeito pelos direitos humanos que poderão ser dadas por estes países. A Tunísia tem sido acusada de cometer abusos e expulsões coletivas de migrantes da África subsaariana e há relatos de abandonos de pessoas no meio do deserto, perto da fronteira com a Líbia.

No Egipto também são apontados atropelos de direitos fundamentais e fracas condições para os requerentes de asilo, no contexto do regime autoritário atualmente no poder.

8. O novo pacto migratório vai mesmo ser aplicado?

Essa é ainda uma questão sem resposta. Depois de anos de negociações, um acordo entre o Conselho da UE e o Parlamento Europeu tinha sido alcançado em dezembro de 2023 e, em abril deste ano, os eurodeputados aprovaram um conjunto de princípios para lidar com a entrada ilegal de requerentes de asilo e migrantes – mesmo na reta final da legislatura.

O objetivo principal do Pacto Europeu de Migração e Asilo é baixar os níveis de migração ilegal, acelerar a avaliação dos processos à entrada e distribuir de forma mais equilibrada o número de migrantes pelos vários países. Os estados-membros que não quiserem receber migrantes poderão compensar os que acolhem com dinheiro (pelo menos 20 mil euros por pessoa, por ano), equipamento ou apoio humano.

O documento recebeu várias críticas de organizações humanitárias, que temem uma repetição dos cenários de campos sobrelotados nos países de entrada e que acusam os 27 de estarem mais focados em empurrar o problema para fora das fronteiras do que em prestar auxílio a quem precisa, tratando os migrantes "como criminosos".

No extremo oposto, Hungria e Polónia estão também entre as vozes mais críticas do pacto, recusando receber migrantes vindos do Médio Oriente e de África.

O pacto deverá começar a ser implementado este ano, mas pode demorar dois anos a ser aplicado plenamente. E o resultado das eleições europeias pode ainda significar alterações ao que foi acordado – é, pelo menos, o que vários partidos (à esquerda e à direita, em Portugal e nos restantes países) dão a entender aos seus eleitorados.

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