20 nov, 2023 - 15:11 • Susana Madureira Martins
Em entrevista à Renascença, Adelino Cunha defende que o PCP está a interpretar o mundo tendo como base as antigas ferramentas - "o proletariado industrial, a forma como as fábricas estavam organizadas". Mas "o mundo mudou" e o dilema dos comunistas é como é que se "pode mobilizar uma sociedade que está fragmentada" e "pouco recetiva às meta-narrativas?"
No meio da crise política e com eleições legislativas em março, o PCP "não pode deixar de estar preocupado" com o resultado eleitoral, "mas não pode fazer depender a sua existência disso", avisa o investigador. "Se o PCP se reduzir a si próprio aos votos que tem, aos votos que perde, vai acabar por ter uma dificuldade existencial".
Que fácil que é fazer a primeira pergunta, porque é o título do livro. Afinal, para que é que serve o Partido Comunista Português?
É muito mais interessante fazer as perguntas do que ter as respostas. E para ser completamente honesto, foi essa a pergunta de partida que tentei responder com o livro. E chegando ao fim, eu próprio não sei responder. O livro tenta estabelecer um pouco qual é a identidade do PCP, explicando como é que o PCP surge nestes 100 anos e depois estabelece talvez três ou quatro desafios que o partido tem pela frente. Mas eu acho que o livro não consegue responder a essa pergunta.
Dá pistas?
Tenta abrir um debate. Como investigador, o livro tenta fazer isso. Parte de um ponto de partida que as pessoas perguntam muito. O PCP é o último partido comunista à moda antiga que existe na Europa. São 100 anos de História. O PCP é um partido muito diferente dentro do panorama político contemporâneo. Tentei perceber isso, saber como é que o PCP nasceu, o que é que o define, as raízes anarco-sindicalistas.
E como é que chega, 100 anos depois, como partido com representação parlamentar.
Exatamente. A minha ideia tem a ver com a maneira como o PCP nasce. Já tinha essa perceção e depois fui desenvolvendo. O PCP é uma singularidade. A maior parte dos partidos comunistas nascem de divisões dentro dos partidos socialistas e em Portugal o Partido Socialista era demasiado débil. E onde é que estava a força do operariado? Estava nos sindicatos, que eram dominados pelos anarco- sindicalistas.
E o PCP impôs-se ao anarco-sindicalismo?
Exatamente. Primeiro nasce dentro do anarco-sindicalismo, depois acaba por superar o anarco-sindicalismo. E esta é uma marca com a qual o PCP viveu durante todo o século XX. Depois tem mais algumas características importantes. A sua fidelização a Moscovo, à União Soviética, o PCP manteve sempre uma postura inquestionavelmente alinhada com Moscovo por dois motivos essenciais. Foi sempre um partido pequeno, devido às circunstâncias do próprio país e periférico.
A única forma que o PCP tinha de sobreviver dentro do movimento comunista era ter esta noção que tinha de estar integrado. E, de facto, o movimento comunista deu-lhe isto, deu ao PCP uma capacidade de interpretar o mundo. Para um partido pequeno e periférico isto foi fundamental.
Quando cai a União Soviética o PCP fica sem chão?
Exatamente. A guerra na Ucrânia tem mostrado um bocadinho isso. O PCP, de certa forma, perdeu o quadro interpretativo. O marxismo-leninismo, sendo a raiz do PCP, que ajuda a explicar o mundo, neste contexto, não é suficiente. Penso que o PCP sofre um pouco essa dificuldade. A dificuldade de interpretar o mundo para depois o descrever. Um partido que é revolucionário, quando não consegue interpretar o mundo para depois o descrever, fica um pouco refém desta mudança.
O facto de o tecido industrial e de o operariado terem diminuído, também contribuiu para esta orfandade do Partido Comunista Português, até em termos de ideologia?
Sim, o PCP, numa certa medida, está a ter essa dificuldade. No fundo, está a usar categorias antigas, da sua fundação - o proletariado industrial, a forma como as fábricas estavam organizadas - para quase que reconfigurar-se em relação ao mundo contemporâneo. E o mundo mudou. Não é só o mundo que muda, é também como é que muda.
O PCP tem que resolver esta questão ideológica, que é não olhar para o movimento operário contemporâneo, para os problemas globais contemporâneos, com as categorias que são as categorias da sua identidade primordial, da sua fundação. Isto não é fácil de resolver, até porque o mundo, a forma como ele está a mudar, cria sempre dificuldades e as próprias ideologias perderam o valor narrativo.
A forma como os grupos sociais estão desagregados em bolhas sociais, em causas esporádicas, fragmentadas, não aceitam uma ideologia explicativa do mundo e o PCP vai ter essa dificuldade. Aliás, a maior parte dos partidos políticos terá essa dificuldade para se adaptarem à forma como os movimentos sociais estão a fragmentar.
A realidade é demasiado rápida para um partido como o PCP?
É rápida e tem uma forma que acho que dificulta muito os partidos que têm meta-narrativas. O PCP tem, não só uma interpretação da história, como um sentido histórico. O PCP sabe para onde é que vai a História. Como é que isto se adapta ao mundo onde as pessoas estão enclausuradas em bolhas herméticas? O debate político está a ser feito quase todo ele nas redes sociais e nós criámos umas bolhas herméticas que, no fundo, estabelecem uma certa interpretação da verdade e depois combatem-se umas com as outras pelo monopólio. As redes sociais, com todas as imensas vantagens que trouxeram, fecharam o debate. O debate é muito menos plural, é mais fechado, mais tóxico, mais intolerante. Como é que o PCP pode mobilizar uma sociedade que está fragmentada e que está pouco recetiva às meta-narrativas?
E o PCP não aprendeu a mexer nessas ferramentas?
Acho que tem essa dificuldade. Não é a adaptação à tecnologia, é a dificuldade de ter uma interpretação do mundo que depois não tem acolhimento com a realidade. Vou dizer isto com uma certa crueldade: é como se a realidade não se adaptasse à forma como o PCP está a interpretar o mundo, para depois conseguir descrevê-lo.
O livro termina com uma pergunta. Poderá o PCP adaptar-se "à coisificação do debate político e propor uma nova análise do mundo, sem deixar de ser aquilo que é?" É difícil mesmo de responder a esta pergunta?
Sim. No fundo, o livro faz um desafio. Se o livro estiver correto, ou seja, se o livro conseguir, não sei se consegue, identificar qual é que é a identidade do PCP, que é uma abordagem conceptual, isto significa que o PCP se construiu em cima de cinco vetores durante 100 anos que permitiram a sua sobrevivência. Se o PCP perder alguma dessas características, perderá certamente também a sua capacidade de intervir no mundo. Se o PCP também não se adaptar, terá a mesma dificuldade. É, no fundo, um dilema de difícil resolução. Como é que o PCP se pode adaptar sem perder a sua identidade, que manteve o PCP vivo durante mais de 100 anos?
O PCP precisa de regressar a uma espécie de clandestinidade para voltar a ter expressão e a influência inicial?
Vou ser sincero, não sei responder. A transição para a democracia, o aceleramento dos tempos modernos, as bolhas herméticas, esta fragmentação dos movimentos sociais, o PCP não está a conseguir interpretá-los. E a sua herança, todo o peso histórico, vem desses anos.
O PCP é o único partido em Portugal que, de forma organizada, ultrapassa os 48 anos de ditadura. Há ali uma geração de revolucionários que é forjada na luta clandestina. Há pessoas que vivem, nascem e morrem na clandestinidade. E esta mentalidade, e diria que ainda bem, o PCP nunca a perdeu. Mas depois faltou-lhe fazer este diálogo com o mundo contemporâneo.
E é curioso que o PCP, apesar disso, acabou por sobreviver a todas as narrativas de catástrofe: à ditadura, depois ao refluxo revolucionário, à queda de União Soviética e à morte do Álvaro Cunhal.
E isso dá lastro para o que aí vem no futuro?
O PCP está numa situação bastante conservadora. Está numa posição que o PCP classifica como uma certa concentração de forças. Não diria um refluxo, mas está no fundo a conjugar forças para o que vier a seguir. Porque se perguntarmos a um dirigente do PCP, alguém do setor intelectual como é que eles vêem o futuro, como é que o PCP pode ser marxista leninista, como é que a revolução vai aparecer em Portugal, porque o PCP é um partido revolucionário, eles não têm uma resposta e não se preocupam com isso. Estão numa situação de esperar um pouco para ver como é que o mundo se vai reconfigurando. O PCP poderá pagar um pouco esse preço pela passividade.
Falta aqui, parece me a mim, um certo assumir que é: há uma situação nova para a qual o PCP não tem solução. É quase como assumir a sua própria ignorância em relação à situação.
Esse é o caminho para o desastre, para a não sobrevivência?
Exatamente. Como é que o PCP pode dizer que há dificuldades para interpretar o mundo sem deixar de ter o monopólio, porque tem, de interpretar a realidade? O desafio é muito delicado. O PCP tem de perceber como é que os movimentos sociais estão a mudar e a mudar muito, não interpretá-los como uma reinvenção do século XX, porque não é. Ao mesmo tempo, como é que o PCP convence as pessoas que tem uma meta-narrativa quando as pessoas estão despolitizadas e estão à procura de respostas fora do sistema político tradicional? Isto para um partido como o PCP, que está bastante consolidado na sua própria identidade, é uma dificuldade de difícil resolução.
Num cenário de crise política em que estamos neste momento a viver, em que águas é que o Partido Comunista Português se move?
O PCP tem tido essa dificuldade desde a 'Geringonça'. O PCP tem essa dificuldade de saber como é que pode influenciar o Partido Socialista, criando uma barreira para que a direita não tome o poder. Em relação à crise que se está desenrolar é difícil e é isso que é espetacular, assistir a esta dinâmica e à volatilidade de o mundo estar a mudar permanentemente. O PCP terá uma atitude não muito diferente da que teve em relação à 'Geringonça', ou seja, a prioridade do PCP será consolidar a sua posição do ponto de vista eleitoral, travar um Governo que seja um Governo de direita ou de centro direita e continuar a influenciar o Partido Socialista.
Nesta sua atitude, o PCP não pode ir muito além disto, de consolidar aquilo que tem e de tentar influenciar o Partido Socialista. No fundo, chamar a ala esquerda do PS para aquilo que é a sua conceção do mundo. Mas o PCP terá cada vez mais esta dificuldade de saber como se situar no espectro político que está em mudança permanente.
E a tendência eleitoral do do PCP qual é que poderá ser, tendo em conta as perdas eleitorais consecutivas dos últimos anos?
Acho que a tragédia para o PCP será reduzir a sua existência em função das eleições, ou seja, o PCP, sendo o partido marxista leninista está ligado à classe operária, está ligado à causa dos trabalhadores e tem que ter, evidentemente, uma representação parlamentar, nas câmaras, etc. Mas se o PCP se reduzir a si próprio aos votos que tem, aos votos que perde, vai acabar por ter uma dificuldade existencial.
Portanto, o PCP tem que ter essa cautela. Não pode deixar de ter reresentação no Parlamento, não pode deixar de estar preocupado com o refluxo das votações, mas não pode fazer depender a sua existência disso. O PCP nasce como uma necessidade. Antes de haver PCP, já havia uma necessidade de haver PCP, porque o movimento operário, as dificuldades daquilo que resultava do capitalismo, justificavam que houvesse um partido que defendesse a classe operária. O PCP quando perder essa ligação aos sindicatos, à classe operária, à sociedade das massas, perder-se-á, também, para sempre. O PCP tem que estar atento às eleições, ao número de deputados, aos vereadores, deputados municipais, não pode é fazer depender a sua existência dessas circunstâncias.