Entrevista Renascença

Ferro aconselha "cuidado" a Santos Silva sobre candidatura a PR. "Não faz muito sentido" criar "expectativas"

27 out, 2023 - 07:00 • Susana Madureira Martins

O ex-secretário-geral do PS deixa o recado ao "amigo" Augusto Santos Silva: enquanto estiver a exercer funções como presidente da Assembleia da República deve "cortar" com a a imagem de que quer ser candidato a Belém. Mesmo que seja "empurrado" para isso, "só depende" da segunda figura do Estado acabar com essa "projeção"

A+ / A-
Ferro aconselha "cuidado" a Santos Silva sobre candidatura a PR. "Não faz muito sentido" criar "expectativas"

Eduardo Ferro Rodrigues acaba de lançar o livro "Assim vejo a minha vida" e em entrevista à Renascença afasta qualquer regresso à vida política ativa, porque quer dedicar a vida à família, mas avisa que estas memórias "ainda" não são um "testamento político".

Ressalvando sempre que já não tem cargos de direção no PS e que "neste momento conhece bastante mal" o partido, o antigo presidente do Parlamento vai dizendo que conhece bastante bem o primeiro-ministro e até deixa em aberto que António Costa possa continuar em funções após 2026. "Ele nunca deixará o PS se sentir que o PS pode estar à mercê de aventuras".

Questionado se acha que Costa vai ou não para um cargo em Bruxelas após as eleições europeias de junho, Ferro diz que "nem todos os primeiros-ministros são iguais ao Dr. Durão Barroso".

Sobre Pedro Nuno Santos, sempre dado como potencial sucessor de António Costa à frente do PS, o ex-líder socialista diz que não o conhece "suficientemente", que no partido sempre houve tradição de "alternativa" e que "isso é uma coisa absolutamente normal".

Esta entrevista acontece a pretexto do lançamento do seu livro "Assim vejo a minha Vida". É um livro de memórias, porque encerrou a sua vida política e se esse é um capítulo completamente encerrado?

A minha vida política institucional, como membro muito ativo do PS, que fui nos últimos 30 ou 40 anos, como membro de órgãos do poder executivo e legislativo, está encerrada. Não tenho nenhuma espécie de ambição nem vontade de voltar à política. Estas memórias são apenas um testemunho que quero deixar de muitos factos que testemunhei e de que fui participante ao longo de uma vida muito ativa desde os anos 60 do século passado até agora. Quis deixar como testemunho, embora sem ser ainda um testamento político, porque quem esteve na política nunca deixou de estar, embora não em funções institucionais. Eu não me demito de er uma intervenção ativa sempre que achar necessário na vida do país.

Ou seja, não há desafio político que o tire da sua casa em Almoçageme, por exemplo. Nem um desafio presidencial?

Não, não, isso não faz muito sentido, porque tenho muito respeito pelas pessoas que consideram e bem, que não deve haver uma questão de idadismo na vida profissional e mesmo na vida política. Consideram e bem, que não devem ser obrigadas a reformar-se à aos 70 anos. Tive 50 e muitos anos de vida política tão ativa, que para mim estou convencido de que se fossem transmitidos em verdadeiros anos, eram muitíssimo mais. Vou fazer agora 74 anos. Não é preciso ser pessimista para dizer que mais de 80% da minha vida já passou e quero, sendo otimista e considerando que ainda tenho 20% de vida à frente, o que não é nada certo, é aproveitar essa vida para poder ler, para poder ouvir música, para poder estar com os meus netos, para poder também intervir na política portuguesa quando for necessário, mas sem nenhum cargo.

Essa intervenção, acredita que será cada vez mais necessária? Vê com preocupação aquilo que se vai passando, até politicamente, com o seu partido?

Hoje em dia toda a gente vê com preocupação o que se passa no mundo. Nunca tivemos, ao mesmo tempo, dois conflitos tão graves com ações militares como temos neste momento aqui na Europa e no Médio Oriente, nunca tivemos tantos problemas em ter uma unidade verdadeira do ponto de vista político em matéria europeia. Basta ver o cumprimento que o senhor Orban, a mais importante figura da Hungria, fez ao senhor Putin. Nunca tivemos uma situação tão difícil em Portugal. Felizmente, com a Covid-19, que teve muitas coisas péssimas, morreu muita gente, mas também houve a possibilidade de negociar uma série de apoios que vão perdurar durante mais alguns anos. Penso que o horizonte, apesar de tudo, é melhor do que da maior parte dos outros países da Europa e, portanto, encaro com muita preocupação, mas com alguma confiança estes próximos anos.

Não vê com o pessimismo que a oposição vê o estado da economia e a questão social do país?

O Presidente da República teve ocasião de dizer na sessão de apresentação do meu livro, que eu era exactamente o contrário do primeiro ministro, que era muito pessimista, enquanto eu era um optimista. Não me considero assim tão pessimista como isso, nem que o primeiro-ministro seja tão otimista como isso. Mas, de qualquer maneira, penso que encarando a realidade que podemos olhar para os próximos dois, três anos com muita preocupação, mas com alguns fatores de confiança.

Muita preocupação, porquê? Não confia, por exemplo, nos bons números económicos que o seu camarada António Costa vem referindo?

Os números económicos são bons, os números financeiros são bons. Os económicos, atenção, porque já foram melhores. Neste último semestre a coisa vai começar a ser mais dura na economia e, portanto, na sociedade. Os números financeiros são muito bons. Tiro o chapéu ao ministro Fernando Medina e também à sua capacidade de resistir em relação aos conflitos muitas vezes os corporativos que existem nesta ou naquela classe profissional que sente perder algumas vantagens que tinha, mas é um facto que as pessoas não podem estar também cegamente otimistas perante esta realidade dos factos ao nível global, europeu e mesmo a nível nacional. Há um avanço do populismo e do chamado e iliberalismo em que a própria palavra é em si uma contradição. Mas é um avanço que se vê em todo o lado. Ainda agora, na Argentina, vamos ver o que vai acontecer. Felizmente as coisas correram bem contra essas pessoas na Polónia, mas continua a ter também muitos problemas.

Um pouco por todo o mundo há a ofensiva de uma coisa que antigamente as pessoas se riam quando a esquerda falava dos reaccionários. Os reacionários são aqueles que reagem contra o que a esquerda chama de progresso. Progresso social, desenvolvimento, igualdade de oportunidades. Isso está em risco, porque é à volta desses temas que muito se constrói esta ideologia reacionária que está a marcar pontos. A culpa não é de quem marca os pontos, é de quem deixa os golos entrarem. Os democratas em todo o mundo, aqui na Europa e, sobretudo, em Portugal, devem perceber o que é que é essencial e o que acessório.

Como Presidente da Assembleia da República teve sempre preocupação em relação aos populismos. Da atuação que vê do atual Presidente da Assembleia da República, considera que é uma atuação a mais ou a menos em relação ao Chega?

O Augusto Santos Silva é um amigo de há muitos anos. Quando fui secretário-geral do PS, ele ajudou-me a construir a renovação da declaração de princípios do PS. Isso já foi há 20 anos e, portanto, não o tenho como alguém de conservador, mesmo no plano do chamado politicamente correto. Acho que é uma pessoa avançada, com ideias arejadas e liberal no campo das ideias. Estive como presidente da Assembleia da República com um deputado de extrema direita e agora existem 12. E mais a Iniciativa Liberal que mudou um pouco de natureza nos últimos anos. Percebo que a dificuldade dele seja muito grande. A minha já foi grande e deve ser muito grande e, portanto, apoio no essencial.

Em relação a Augusto Santos Silva, vê aqui algum tipo de posicionamento em relação a uma eventual candidatura às presidenciais?

Acho que as pessoas quando estão numa função, não devem projetar o seu futuro para outra função qualquer. Nunca projetei o meu futuro. Quando era ministro, nunca pensei que fosse secretário-geral do PS, fui empurrado para isso. Depois, nunca pensei que pudesse ser presidente da Assembleia da República, aí não fui empurrado porque eu próprio gostei e achei que era justo e atinado em relação às circunstâncias. Quando se tem a função de presidente da Assembleia da República durante mais dois anos, se as coisas correrem normalmente, não faz muito sentido deixar passar a imagem de que se é candidato a Presidente da República. E acho que isso é uma coisa que só depende dele, cortar com essa imagem e com essa projeção.

A verdade é que não cortou. Em diversas entrevistas abriu a porta a essa possibilidade.

Não quero comentar conjunturas políticas, tenho grande amizade e admiração por ele. Mas acho que as pessoas quando têm funções de Estado, têm que ter muito cuidado com as expetativas que deixam criar à sua volta, mesmo que sejam empurradas para isso.

O partido aceitaria facilmente um nome como Santos Silva para Presidente da República?

Neste momento, conheço bastante mal o partido. Não é por uma questão de estar à margem, mas porque pedi para só fazer parte da Comissão Nacional do PS e só ir a reuniões quando se justificasse, em situações de grande densidade, de grandes problemas para o PS ou para o país e, portanto, felizmente, isso não aconteceu e portanto tenho estado relativamente à margem da vida interna do PS. Não gostaria de fazer comentários sobre isso.

Tem lamentado que a geringonça tenha terminado. Um entendimento à esquerda para as próximas presidenciais, como existiu com Manuel Alegre, é possível, no seu entender?

Conheci bem o que foi o processo de construção da geringonça, estava a funcionar muito bem, muito melhor do que era pensável e que estava a responder a um conjunto de questões que tinham sido colocadas nos anos anteriores. Quando acabou essa experiência política com o chumbo do orçamento, compreendi que o Bloco de Esquerda e o PCP, depois do que tinha acontecido nas eleições autárquicas anteriores, sentissem que estavam a perder terreno e tivessem rompido. Mas foi uma tragédia política que não nego.

Essa possibilidade de entendimento à esquerda é irrepetível?

Não, nunca acho que haja nada que seja irrepetível. Também, à partida, não digo que tudo é irrepetível. A aliança da esquerda em 2015 serviu para responder a uma hegemonia que havia da direita em Portugal. Depois verificou-se que quando era necessário ir mais longe do que se foi, construir uma alternativa para mais quatro ou oito anos não foi possível. Os princípios, os objetivos e os resultados eleitorais tinham sido muito diferentes. Não quer dizer que não se possa vir a repetir, mas as circunstâncias é que terão demudar.

E os protagonistas?

Os protagonistas, julgo que não são, neste momento, a questão essencial. Se houver outra vez, como se viu, aliás, em vésperas das últimas eleições legislativas, um grande perigo e uma grande ameaça de um governo que envolva a extrema-direita política, penso que haverá condições para restabelecer uma unidade mínima necessária para responder a essa ameaça. Se isso é só conjuntural ou pode ter uma dinâmica estrutural isso depende da vontade dos protagonistas.

Em 2026, o cenário pode ser de tal maneira que torna necessário um entendimento desse género?

Vamos ver quais são os resultados. Neste momento é muito cedo para antecipar. Nem sequer sabemos muito bem quem vão ser os protagonistas do lado da direita nas eleições de 2026, não gosto de fazer especulações sobre o que se pode passar até 2026. O que os estudos de opinião indicam é que,a haver problemas graves de direção será mais do lado da direita do que à esquerda.

Depois da maioria absoluta que o PS teve em 2022, receia que o partido entre numa espécie de crise interna de liderança, com tensões entre fações ou entre os vários nomes de que se vai falando para suceder a António Costa? Ou a transição no pós-costismo tenderá a ser suave?

Mas quando é que vai ser o pós-costismo? O pós-costismo pode ser em 2026 ou não. Conheço muito bem o primeiro-ministro e secretário-geral, António Costa, há muitos anos, e sei perfeitamente que uma das grandes paixões dele é o PS. Ele nunca deixará o PS se sentir que o PS pode estar à mercê de aventuras ou de situações que possam levá-lo à derrota ou mesmo à aniquilação, como aconteceu com os partidos socialistas congéneres em França, na Itália, na Grécia.

O que seria uma aventura?

Seria conduzir o PS para um beco sem perspetivas estratégicas tentando cortar com o passado. Houve sempre aqui um grande cuidado no Partido Socialista de todos os secretários-gerais, mesmo dos que tinham divergências com o secretário-geral anterior. Por exemplo, o caso do Vítor Constâncio com o Mário Soares, era o caso de António Costa com António José Seguro. Era o caso, nalguns pequenos aspetos, com António Guterres, de deixar sempre o essencial como linha do PS. Isso é que me parece que todos aqueles que queiram um dia ser secretário geral do PS têm que ter em atenção.

Há um que quer muito ser que é Pedro Nuno Santos, não o tem escondido. Isso seria uma aventura?

Não estou a dizer isso, não o conheço suficientemente.Tive um contacto com o Pedro Nuno Santos quando era secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, que fez uma boa função em termos de defesa dos interesses do Estado e da democracia e do Parlamento.Tenho acompanhado, como qualquer bom ouvinte, o que foi, o que tem sido o percurso dele no Parlamento e agora na televisão.

Não considera que ele possa ser um fator de tensão e de clima de facção dentro do PS?

Dentro do PS houve sempre situações de contradição e de alternativa. Quando fui secretário-geral do PS houve outros que se perfilavam para isso. Quando António Guterres foi secretário-geral do PS foi depois de um congresso muito grave em que bateu o Jorge Sampaio. O Jorge Sampaio avançou, antes disso, também, para se precaver de qualquer iniciativa de António Guterres. António José Seguro ganhou depois de se ter posicionado perante uma crítica muito forte que fez sempre a José Sócrates. Isso é uma coisa absolutamente normal na vida democrática. Se nós olharmos para o PS e para o PSD, verificamos esta coisa extraordinária: o PS ao longo destes anos de democracia, em 50 anos, teve oito secretários gerais e o PSD teve mais de 12.

Já percebi que considera que António Costa até pode ter uma vida como secretário-geral do partido para lá de 2026.

Nunca falei com ele sobre isso e não posso estar abusivamente a dizer aquilo que ele poderá sentir ou pensar. Agora, a minha convicção profunda é que, se ele tiver alguma vez dúvidas sobre o caminho que o PS pode vir a seguir, se ele não estiver como secretário- geral, ele continuará.

Acredita na tese de que António Costa pode optar por ir para um cargo europeu após as eleições europeias?

Não faço a menor ideia. Não conheço as intrigas ao nível da Europa e de Bruxelas e do Conselho Europeu. Nem sequer as do Rato ou do Conselho de Ministros. Mas acredito numa coisa, é que ele tem um grande prestígio nas instituições europeias e será certamente pressionado para poder ir para outras funções à escala europeia e não à escala nacional. Agora, nem todos são iguais. Nem todos os primeiros-ministros são iguais ao Dr. Durão Barroso.

Não acredita que António Costa possa dar esse salto e abandonar o mandato a meio?

Não é uma questão de fé, é uma questão de conhecer as pessoas e de conhecer a ideia que as pessoas têm sobre as suas responsabilidades, sobre o país e sobre o partido de que são líderes.

Sobre a proposta de Orçamento do Estado. Compreende esta insistência por parte do Governo sobre o aumento do Imposto Único de Circulação (IUC)?

Quando o Orçamento de Estado vale milhares de milhões de euros e a oposição e alguns comentadores se focam sobre um aumento de um imposto muito específico, é evidente que tem que haver uma perplexidade geral da opinião pública.Mas é só isto que interessa ao país? Não interessa o IRS, não interessa o IRC, não interessa o crescimento, não interessa a inflação, o salário mínimo, as pensões? Mas também há que pensar e ver se há alguma razão do lado de quem argumenta contra esse aumento. E eu acho que há alguma razão e que, certamente, haverá uma revisão dos termos em que vai ser feito.

Não acha que valha a pena esta insistência?

Acho é que em Portugal há muita tendência para, quando não há questões de fundo a separar as forças políticas ou as pessoas, para se irem buscar questões que são, embora importantes para uma minoria de pessoas, são marginais em relação a um Orçamento de milhares de milhões.

No seu partido também tem sido debatido o mantra do excedente orçamental. Como usá-lo ou como guardá-lo. Para si um bom resultado orçamental é ter um excedente orçamental?

Não se pode ser ter uma visão ortodoxa, maximalista em matéria macroeconómica. Nunca tive, não era agora que que assimila. Fico contente de cada vez que vejo que há bons resultados orçamentais. Antigamente falava-se do défice que era muito grande, agora fala- se do excedente que é demasiado. É melhor esta discussão do que a anterior. Penso que é possível encontrar um equilíbrio e perceber que é necessário revitalizar os serviços públicos, responder aos problemas que existem em várias áreas, nomeadamente na saúde. Não responder necessariamente a todas as reivindicações corporativas, mas pelo menos tentar entendê-las e responder ao essencial.

Dos professores, por exemplo?

O argumento do Governo é um argumento muito forte, porque é o argumento de de dizer "porque é que o vamos resolver o problema desta corporação, desta classe profissional e nos vamos estar nas tintas para os outros todos que também tiveram este problema ao longo dos últimos anos"? Tem que haver também um máximo de equidade e a equidade aí é o termo fundamental para responder aos problemas que tenham que ver com profissionais da educação, da saúde, segurança social. Agora há uma questão de base, que é o funcionamento dos serviços públicos e essa é a questão que mais me preocupa.

No livro fala sobre o caso Casa Pia. Passados 20 anos como é que tem visto o comportamento da Justiça para com os partidos e aquele mote do primeiro-ministro 'à justiça o que é da justiça, à política o que é da política'? Isso tem sido respeitado, quer por um lado, quer por outro?

Julgo que há muito para fazer. Algumas coisas foram mudadas, mas, no essencial, a promiscuidade que existia entre as chamadas fontes do Ministério Público, fossem elas de magistrados do Ministério Público ou judiciais, e a comunicação social têm um impacto absolutamente devastador sobre o comportamento e a vida política em Portugal. Continua a ter.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • ze
    28 out, 2023 aldeia 15:25
    Mas teria alguma hipotese?

Destaques V+