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As memórias de Balsemão, o político que escolheu o jornalismo

04 set, 2021 - 18:58 • Eunice Lourenço

Ex-primeiro-ministro revela que recusou ser representante na ONU e que foi sondado por António Guterres para concorrer às presidenciais de 1996 contra Jorge Sampaio. No livro de memórias, que percorre os últimos 60 anos da vida política portuguesa, Balsemão conta como venceu Joe Berardo e Ricardo Salgado, como lidou com as traições de Marcelo e como perde tempo com Rui Rio.

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É fundador de um dos partidos centrais da democracia portuguesa, foi ministro e primeiro-ministro, é conselheiro de Estado. Podia ter sido representante de Portugal nas Nações Unidas e candidato a Presidente da República. Mas Francisco Pinto Balsemão escolheu ser jornalista e empresário da comunicação social. Opções que conta no seu livro de Memórias, que chega este mês às livrarias.

No livro, que tem quase mil páginas, Balsemão conta o seu percurso pessoal, profissional e político. E acerta as suas contas com muitas das personalidades da vida política e social portuguesa. A começar por Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República, que, através de vários episódios contados no livro e passados tanto no Expresso, onde foi diretor, como no PSD e no Governo, aparece como um intriguista que trai Balsemão várias vezes, sendo uma delas considerada “imperdoável”.

São as memórias de um homem que se considera injustiçado e assume-o. “Senti-me muitas vezes injustiçado. Todos nós, exceto talvez os santos (mesmo esses …), gostamos, precisamos, já não digo de gratidão, mas pelo menos de reconhecimento das diversas comunidades profissionais, culturais, sociais onde, ao longo da vida, nos inserimos. (…) Quem escreve umas memórias procura também assinalar o que os outros que, por natureza são ingratos, esqueceram ou fingiram esquecer ou mesmo escondem, por inveja, por despeito, por medo que isso prejudique o que pretendem que deles próprios permaneça”, escreve quase a terminar o livro.

“Foi nítido o esquecimento a que fui votado durante largos anos, durante quase todo o chamado cavaquismo”, lamenta Balsemão quando escreve sobre os anos em que Cavaco Silva liderou o PSD e chefiou o Governo. Foi nessa altura que se colocou uma das hipóteses de mudar de vida: Cavaco oferece-lhe o lugar de representante de Portugal nas Nações Unidas. “Recusei com muita pena”, recorda Balsemão, explicando as razões: “Sabia que, se aceitasse, a minha vida profissional ficava arrumada, como jornalista e como empresário na área da comunicação social, pois teria de vender o Expresso e desistir dos planos de expansão para o que viria a ser o Grupo Imprensa.”

Era para o Expresso que tinha voltado depois de ser primeiro-ministro por duas vezes: primeiro, no VII Governo Constitucional, na sequência da morte de Sá Carneiro; depois, no VIII Governo, que tomou posse há 40 anos, a 4 de setembro de 1981. Esses 40 anos foram o pretexto para a homenagem organizada pelo atual primeiro-ministro, António Costa, que destacou o papel de Balsemão na libertação da sociedade civil.

“Tudo visto e considerado, penso que tenho conseguido equilibrar a minha vida pessoal e profissional com a atração que, desde os anos 60, sinto pela política”, escreve o antigo-primeiro-ministro nas suas memórias, onde conta que, desde 1986, só uma vez não resistiu “à tentação de voltar a apostar em pleno na política”. Foi em 1995, já depois de Jorge Sampaio ter anunciado, numa jogada de antecipação ao PS, a sua candidatura às presidenciais de 1996.

“Fui sondado por várias pessoas sobre a hipótese de me candidatar. As vozes de apoio, quase todas em surdina, não vinha apenas de dentro do PSD, mas também de pessoas ligadas ao PS, sobretudo da ala de António Guterres (com o qual, aliás, cheguei a ter uma conversa, num almoço no Gambrinus, a convite dele, sobre o assunto)”, recorda Balsemão.

“Os argumentos eram que Jorge Sampaio se situava demasiado à esquerda, que eu cobria melhor o centro, quer o centro-direita, quer o centro-esquerda, e que, como sempre, era no centrão que se ganhavam as eleições”, acrescenta. E assume: “Na altura, ponderei seriamente candidatar-me.”

Contudo, uma conversa com Fernando Nogueira, então líder do PSD, terminou com a tenção. Francisco Pinto Balsemão percebeu que Nogueira já tinha prometido apoio a Cavaco Silva que ainda não tinha assumido a candidatura e por quem na altura “no PSD não havia um entusiasmo transbordante quanto a essa possibilidade, porque a imagem do até então primeiro-ministro estava muito desgastada pelos insucessos da parte final da sua chefia do Governo”.

Cinco anos depois, Durão Barroso ainda o convidou para concorrer às presidenciais de 2001 contra Sampaio. “A minha resposta, obviamente, foi não”, escreve o antigo primeiro-ministro, para quem Jorge Sampaio “fez duas presidências com um balanço geral positivo”. Anos depois, Balsemão teve um programa com Jorge Sampaio na Renascença: o A Três Dimensões, moderado por Francisco Sarsfield Cabral, e que contava também com a participação de D. José Policarpo.


O gosto pelos jornais e a rivalidade das estrelas

A ligação de Pinto Balsemão ao jornalismo começa no Diário Popular, onde o Conselho de Administração era presidido pelos eu tio Francisco e onde entrou como secretário de redação. Na Força Aérea tinha sido chefe de redação de uma revista mensal.

Conta como foi conquistando a redação, como se inscreveu como estagiário no Sindicato dos Jornalistas, como organizou um curso de iniciação jornalística e como fez entrevistas e reportagens em Portugal e no estrangeiro.

“Gostei muito daqueles sete anos (…) e até tenho uma certa pena quando verifico, nos perfis que se escrevem sobre mim, que esses anos do Diário Popular tendem a ficar esquecidos, pois parece que a minha vida adulta só começou no Ala Liberal e no Expresso”, lamenta no livro onde também conta a fundação do Expresso, o lançamento da SIC e da SIC Noticias, os problemas económicos do grupo de comunicação social e a sua relação que ainda hoje mantem próxima tanto com os jornalistas dos vários órgãos, como com as estrelas do entretenimento das televisões.

Dedica, por exemplos vários parágrafos a Catarina Furtado e Bárbara Guimarães. “Nos primeiros anos, era interessante observar a rivalidade entre Catarina Furtado e Bárbara Guimarães”, escreve, contando vários episódios dessa rivalidade. Também Cristina Ferreira, a apresentadora que a SIC foi buscar à TVI e que já voltou para a TVI, aparece em várias páginas do livro, com Balsemão a escrever que a sua “sofreguidão por protagonismo” acabará por prejudicá-la.

Berardo e Salgado e como a ERC salvou a SIC

No seu percurso como empresário de comunicação social, Balsemão foi-se cruzando com vários poderes económicos, que chegaram a ameaçar a estabilidade económica do grupo e o próprio poder do patrão da Imprensa.

Conta vários episódios com a participação de Joe Berardo na Impresa, considerando um “raider”, que aproveitou um momento de fragilidade na SIC, como fez com outras empresas. “Compra uma posição acionista numa empresa e que, apesar de inicialmente minoritário, tenta influir e complicar de tal modo o funcionamento do negócio que os acionistas maioritários acabam, para se verem livres dele, por preferir pagar-lhe uma soma bem superior à que ele gastou para entrar ou, em alternativa, vender-lhe a preço mais baixo o controlo da empresa.”

Outra tentativa de controlo da SIC foi feita por Nuno Vasconcelos, da Ongoing, filho de um grande amigo e parceiro de negócios de Balsemão, e que foi travada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). “Se não tivesse havido a sábia decisão da ERC, que impediu a Ongoing de ser, ao mesmo tempo, grande acionista da TVI e da SIC, o panorama dos media em Portugal teria mudado para pior, para muito pior”, acredita Balsemão, que também não perdoa a Ricardo Salgado o seu apoio a Vasconcelos.

“As minhas desavenças com Ricardo Salgado, para além do confronto grave que tivemos quando ele cortou a publicidade em todos os meios da Impresa, incidiram, aliás, sempre sobre o apoio por ele dado à Ongoing, mesmo nas fases mais agudas do conflito que tivemos”, escreve o patrão da Impresa, que, noutras páginas, conta como ultrapassou o corte da publicidade do grupo Espírito Santo, que deixou de colocar publicidade nos órgãos do grupo devido a noticias e opiniões publicadas no Expresso.

O “escorpião” Marcelo e o “tempo perdido” com Rui Rio

Ao longo das quase mil páginas e centenas de episódios, divididas em 23 capítulos, Balsemão conta a sua vida política que começa na ala liberal e vai cruzando todos os protagonistas a história recente de Portugal. De todos vai tecendo apreciações e comentários.

Sá Carneiro, Ramalho Eanes, Mário Soares e Marcelo Rebelo de Sousa são, como é possível perceber no índice onomástico, os políticos com mais referências. Maioritariamente positivas no caso de Sá Carneiro e Mário Soares; críticas no caso de Eanes, sobretudo na forma como Balsemão conta o clima de desconfiança entre ambos quando era primeiro-ministro e o general era Presidente da República e impôs a gravação das conversas entre ambos; corrosivas no que diz respeito a Marcelo.

O atual chefe de Estado é retratado como um “escorpião” que comete a “maior traição” quando pede a demissão de ministro dos Assuntos Parlamentares a três dias das eleições autárquicas e conta à comunicação social a sua saída do VIII Governo antes do prazo acordado com o então primeiro-ministro.

Quanto aos líderes atuais, António Costa só é referido em episódios ocasionais, nomeadamente relacionados com o seu irmão, Ricardo Costa, que colocou os cargos na Impresa à disposição em duas ocasiões: quando António chegou à liderança do PS e quando tomou posse como primeiro-ministro.

De Rui Rio, diz que tem procurado apoiá-lo porque entende que o atual presidente do PSD tem capacidade para “reposicionar o PSD no lugar que lhe pertence desde maio de 1974: o centro/centro-esquerda do espectro político”. Mas Balsemão dá algum do seu tempo como perdido: “Com alguma espaçada regularidade, falo por telefone, durante horas, com o líder, embora consciente que uma parte desse tempo é perdido, porque, há muitos anos, não estamos de acordo sobre o papel dos media em democracia."

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