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1939-2021

Morreu Jorge Sampaio, o Presidente dos direitos humanos

10 set, 2021 - 08:59 • Hélio Carvalho , Eunice Lourenço

A informação foi confirmada à agência Lusa por fonte da família. Desde as lutas estudantis dos anos 60 aos alertas humanitários dos últimos anos, Jorge Sampaio destacou-se na vida política portuguesa ao longo de 60 anos.

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Jorge Sampaio. Da luta política à defesa dos direitos humanos
Jorge Sampaio. Da luta política à defesa dos direitos humanos

“Há mais vida para além do Orçamento. A economia é mais do que finanças públicas”. A frase de Jorge Sampaio, Presidente da República, na sessão solene do 25 de Abril de 2003, ainda hoje é lembrada. E muitas vezes mais citada, com défice em vez de Orçamento. Na altura, Sampaio deixava o alerta para um Governo liderado por Durão Barroso e com Manuela Ferreira Leite como ministra das Finanças, que tinha a consolidação orçamental como objetivo da sua política económica.

A vida de Jorge Sampaio – que morreu esta sexta-feira aos 81 anos, vítima de complicações respiratórias e cardíacas – tem mais política e intervenção cívica do que os seus alertas orçamentais e o seu exercício presidencial.

Estava internado desde dia 27 de agosto no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, com dificuldades respiratórias.

São 60 anos de vida pública, com intervenção cívica e política, que o levaram a ocupar vários cargos: deputado, líder do PS, presidente da Câmara de Lisboa e, o pico da sua vida política, Presidente da República, entre 1996 e 2004.

Nascido a 18 de setembro de 1939, Jorge Fernando Branco de Sampaio licenciou-se em Direito em 1961 pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Nos primeiros tempos da faculdade, Sampaio junta-se à luta contra a ditadura, então ainda a tentar gerir o rescaldo das presidenciais de 1958 e da mobilização que a candidatura Humberto Delgado provocou. Ao longo do curso, Jorge Sampaio envolveu-se na vida académica e é eleito presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa, sendo mais tarde designado secretário-geral da Reunião Interassociações Académicas (RIA).


Jorge Sampaio. Uma vida a aproximar-nos do outro
Jorge Sampaio. Uma vida a aproximar-nos do outro

O primeiro grande confronto político de Jorge Sampaio com o regime de Salazar acontece como responsável do RIA, tendo sido um dos líderes da greve académica de 1962, que começou em março e durou até à época de exames. No auge da contestação estudantil, em Lisboa, a polícia reprimiu violentamente uma manifestação da academia, o que conduziu à demissão de Marcelo Caetano de reitor da Universidade de Lisboa, em protesto pela atuação da polícia que invadiu o campus universitário e prendeu dezenas de estudantes.

A contestação estudantil envolveu as academias de Coimbra e Lisboa tendo levado o Governo de Salazar a proibir as celebrações do Dia do Estudante. Para o ex-presidente da República o Governo não percebeu a dimensão da contestação: “O grande erro do Governo nessa altura foi não perceber que quem ocupava as faculdades eram os filhos da classe média-alta. A verdade é que quando prenderam estudantes deram-se conta que tinham prendido muitos filhos do regime”, recordou Sampaio, num testemunho dado à RTP.

O próprio Jorge Sampaio podia ser considerado um “filho do regime”. Era neto de Fernando Branco, um militar e diplomata que tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa na década de 1930 e filho de Arnaldo Sampaio, um conceituado médico de saúde pública, com carreira internacional e que viria a ser diretor-geral da saúde, entre 1972 e 1978. A carreira internacional de Arnaldo Sampaio levou Jorge a viver alguns anos da infância e adolescência nos Estados Unidos e em Inglaterra, o que explicava a sua fluência em inglês. O irmão Daniel, sete anos mais novo e conhecido psiquiatra, ficaria em Portugal.

Terminado o curso de direito, Sampaio inicia uma carreira de advogado que o levaria, nos anos 70, a formar escritório com Vera Jardim e Magalhães e Silva.

O início da sua vida profissional fica marcado pela continuação da atividade cívica e empenho na oposição ao regime. Foi defensor de presos políticos e, em 1969, concorreu à Assembleia Nacional pela Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Nessas eleições, na chamada Primavera Marcelista, a oposição ao regime divide-se. Na outra lista, a da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática em Lisboa (CEUD), estava Mário Soares.

Mais tarde, com João Cravinho e outros chegou a criar o MAR - Movimento de Ação Revolucionário. Mas também de aproximou de figuras como Alçada Batista e Bénard da Costa, conhecidos como católicos progressistas e que iam fazendo oposição na revista “O Tempo e o Modo”, em que Sampaio chegou a colaborar.

Do MES ao PS

Nas eleições fraudulentas de 1969, Jorge Sampaio não foi eleito e a CDE foi brutalmente reprimida pelas suas mensagens contra a Guerra Colonial, o colonialismo e o regime. Mas as raízes socialistas, democráticas e europeias já se notavam em Sampaio, que ainda assim só chegaria ao PS quatro anos depois da revolução de 1974.

Logo após o 25 de Abril, é um dos fundadores do Movimento de Esquerda Socialista (MES), no qual se juntaram antigos membros da CDE (e um pré-PS Eduardo Ferro Rodrigues). Sampaio abandona o MES em dezembro do mesmo ano, discordando da linha orientadora do partido.

Em março de 1975, depois do falhado golpe da “maioria silenciosa” de Spínola, Jorge Sampaio assume o seu primeiro cargo político: é nomeado secretário de Estado da Cooperação Externa do IV Governo Provisório, liderado então por Vasco Gonçalves e que incluía os ministros sem pasta Álvaro Cunhal e Mário Soares.

Sampaio é escolhido por Ernesto Melo Antunes, ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos membros do “Grupo dos Nove”, um grupo dentro do Movimento das Forças Armadas defendia um projeto socialista alternativo, baseado numa democracia política, pluralista, nas liberdades, direitos e garantias fundamentais.

O Governo de Vasco Gonçalves não durou muito, acabando por cair em agosto e Sampaio continuou a defender o fim do poder militar na vida política, o que só viria a acontecer no inicio da década de 80, em 1982, com a extinção do Conselho da Revolução. Em 1978, adere finalmente ao Partido Socialista, como fizeram vários ex-MES, como João Cravinho e Ferro Rodrigues. Pelo meio ainda estiveram juntos na Intervenção Socialista.


“We love you”. Marcelo condecora inesperadamente Jorge Sampaio
“We love you”. Marcelo condecora inesperadamente Jorge Sampaio

A volta por São Bento, Lisboa e Belém

Conquistou um lugar de deputado nas legislativas de 1979, pelo círculo de Lisboa, e foi eleito mais quatro vezes, em 1980, 1985, 1987 e 1991, tendo sido líder parlamentar entre 1986 e 1987.

Entre 1979 e 1984 foi designado pela Assembleia da República para Comissão Europeia dos Direitos do Homem, no Conselho da Europa, onde desempenhou um papel muito ativo. Os direitos humanos serão uma preocupação constante, ainda mais acentuada nestes últimos anos, depois do seu exercício presidencial.

Com o fim da liderança de Mário Soares, que, entretanto, tinha sido eleito Presidente da República em 1986, o PS entra num período de crise. Sucede-lhe Vítor Constâncio, mas as maiorias absolutas de Cavaco Silva viriam a caminho para derrubar secretários-gerais socialistas.

Constâncio demite-se em 1988 e Jorge Sampaio é eleito no ano seguinte. Contudo, depois das legislativas de 1991 em que Cavaco não só renova como aumenta a maioria absoluta, também Sampaio cai, com António Guterres, então secretário nacional para a organização, a dar o sinal para a sucessão ao dizer que “está chocado” com o resultado do PS.

Quando Sampaio bateu Marcelo e Cavaco

Pelo meio, contudo, Jorge Sampaio consegue um dos seus maiores feitos políticos: é eleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, em 1989, vencendo o candidato do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa.

Para essa eleição e para os mandatos que vai fazer, Sampaio contou com uma até então inusitada união de esquerda. E entre os seus principais estrategas estava um jovem sampaísta: António Costa.

Jorge Sampaio aprende que deve contar mais consigo do que com o PS. É eleito em 1993 para o segundo mandato em Lisboa que não chega a concluir. Deixa o cargo para João Soares, quando decide candidatar-se a Presidente da República.

O anúncio da candidatura em 1995, para as eleições do ano seguinte, é feito sozinho, acompanhado apenas pela mulher, junto à sua Universidade de Lisboa. Enfrentou Cavaco Silva (PSD), com Jerónimo de Sousa (PCP) e Alberto Matos (UDP) a desistirem em seu favor.

A 14 de janeiro de 1996, com 3.035.056 votos, Jorge Sampaio foi eleito Presidente da República na primeira volta, com 53,9%. Cavaco ficou em segundo com 46% e adiou o sonho de chegar a Belém.

A vitória de Timor e a "bomba atómica"

Com Guterres a liderar o Governo e Sampaio em Belém, o PS quase que cumpre o sonho que era do PS: um Presidente, um Governo, uma maioria. Faltava a maioria. Essa só chegaria em 2005, com José Sócrates.

Durante o primeiro mandato, Jorge Sampaio é internado pela primeira vez devido a complicações cardíacas e é submetido a uma cirurgia ao coração. O Presidente com saúde frágil e lágrima fácil vai marcando os dias de um Portugal que vivia o tempo do diálogo, da Expo 98, numa descompressão que parecia prometer tempos melhores.


"É preciso mais Europa para ir ao encontro desta crise". Jorge Sampaio no programa "A Três Dimensões" da Renascença, em junho de 2009
"É preciso mais Europa para ir ao encontro desta crise". Jorge Sampaio no programa "A Três Dimensões" da Renascença, em junho de 2009

O primeiro mandato é ainda marcado pelo que foi uma vitória do povo timorense, da persistência e da diplomacia portuguesas, mas também de Sampaio e de Guterres: o referendo que dará a independência a Timor Leste. Foi nesses dias de ferro e fogo em Díli que Sampaio dormiu uma das poucos noites no Palácio de Belém, ele que, como Soares, tinha preferido não ir viver para a residência oficial.

Em 2001, é reeleito com 55% dos votos, numa corrida em que o social-democrata Ferreira do Amaral ficou em segundo, com 34%. Mas, no fim desse ano, as eleições autárquicas trouxeram a derrota do PS e Guterres demitiu-se com medo do “pântano”.

Começam os anos politicamente mais difíceis para o Presidente Sampaio. Durão Barroso vence as eleições e forma Governo com Paulo Portas. Durão cultiva uma boa relação com o Presidente, a quem vai sempre pondo a par das opções do Governo e Portas tem em Sampaio uma espécie de tio, devido à longa amizade do chefe de Estado com o seu pai, o arquiteto Nuno Portas.

As boas relações com os membros do Governo de direita não inibem o Presidente de ir deixando avisos sobre as suas preocupações com os problemas económicos e sociais. Nos jornais da altura, sucediam títulos do género “Presidente preocupado com…” ou “Sampaio avisa que…”.

Dias mais difíceis vão ainda chegar, em 2004, quando Durão Barroso sai do Governo e do cargo de primeiro-ministro para a Comissão Europeia.


O país ficou num limbo político, o Presidente decide ouvir toda a gente – partidos, ex-governantes, parceiros sociais –, até que, num longo discurso a 9 de julho de 2004, assumiu que o PSD continuava a ter condições para governar e permitiu que o lugar vago fosse ocupado por Pedro Santana Lopes.

Ferro Rodrigues, então líder do PS, não lhe perdoa. Considera uma traição e demite-se, abrindo o caminho a José Sócrates.

Cinco meses depois, Jorge Sampaio detonou a chamada "bomba atómica”: dissolve o Parlamento e convoca eleições. Numa biografia publicada em 2017, assumiu que se "fartou" de Santana Lopes como primeiro-ministro.

"Eu não fiz em julho de 2004 aquilo que a minha gente [o PS] queria que fizesse e houve mesmo quem me acusasse de traição ao meu eleitorado. Mas não há, de todo, nenhuma ligação entre a nomeação de julho e a dissolução de dezembro, que foi a hecatombe", disse no livro de José Pedro Castanheira, jornalista do Expresso.


Recorde o discurso de Jorge Sampaio quando dissolveu o Parlamento.
Recorde o discurso de Jorge Sampaio quando dissolveu o Parlamento.

Santana vitimiza-se. Em 2004, faz o discurso da criança na incubadora e avança para uma campanha eleitoral em que teve “Menino Guerreiro” como a sua banda sonora. Em 2017, continua sem perdoar e até ameaça responder em livro.

Será ainda Jorge Sampaio a dar posse, em março de 2005, a José Sócrates, que nesse conquistou a primeira e até agora única maioria absoluta do PS. Passado um ano sai do Palácio de Belém, dando lugar ao anterior derrotado Cavaco Silva.

Continua pela vida política ainda que com outro tipo de intervenção. Como todos os ex-Presidentes é conselheiro de Estado e tem um gabinete próprio ao seu dispor, que passa a usar para uma nova fase intervenção cívica, agora com pendor internacional: em 2006, como enviado especial do secretário-geral das Nações Unidas para a Luta contra a Tuberculose, e, em 2007, como alto representante para a Aliança das Civilizações.

A luta por oportunidades para estudantes sírios que se esforçou por trazer para Portugal foi a sua batalha dos últimos anos, que agora queria replicar para estudantes afegãs.

A sua última intervenção foi um apelo à solidariedade feito a 26 de agosto, depois do regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão.

Sampaio na Renascença “A Três dimensões”

Em 2007, Jorge Sampaio manteve um programa na Renascença com D. José Policarpo e Francisco Pinto Balsemão. Um espaço de informação com a visão destas três personalidades sobre as grandes questões da sociedade, do país e do mundo, num debate moderado pelo diretor de informação da Renascença, da altura, Francisco Sarsfield Cabral.

O debate mensal "A Três Dimensões" centrava-se em questões de fundo, onde nem sempre os temas da atualidade foram o centro da discussão.

O primeiro debate entre Jorge Sampaio, D. José Policarpo e Pinto Balsemão foi emitido em janeiro de 2007 e centrou-se na discussão sobre os aspetos positivos e negativos da globalização.

Na altura, Jorge Sampaio defendeu a reestruturação urgente das organizações internacionais, referindo que existe uma deficiente adequação do quadro jurídico às necessidades que se colocam pela globalização, numa posição defendida também por D. José Policarpo e Pinto Balsemão.

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