12 jan, 2024 - 06:30 • Redação
Que imagem lhe ocorre quando pensa numa pessoa com mais de 65 anos? Será a de alguém sentado em casa a ver televisão? Rosa Carvalho, de 69 anos, não podia contrariar mais essa perceção. Enquanto borda uma mulher mais velha a fazer a espargata, explica que “a velhice não é um problema”. Considera até que envelhecer é um “privilégio”.
Rosa frequenta o ateliê do projeto “A Avó Veio Trabalhar”, em Arroios, Lisboa, pelo menos uma vez por semana e não gosta de deixar trabalhos a meio. Este hub criativo para pessoas com mais de 60 anos quer mostrar que as “avós” também podem ser “cool”. O grande objetivo é desmistificar o que é uma pessoa mais velha e o que consegue ou não fazer.
“São mulheres que abocanham a vida, que têm todo o direito de estar aqui, que são bonitas, que são sexys, que podem namorar, pôr um batom, viajar e aprender coisas novas”, afirma Susana António, uma das criadoras do projeto.
Para Susana António, o envelhecimento ainda é um “grandíssimo tabu”, já que “as pessoas têm muito medo de envelhecer e de deixarem de ser as mesmas”. Para isso, é necessário mudar a forma como se pensa nesta fase da vida.
A co-criadora do “A Avó Veio Trabalhar" já viu esta mudança acontecer quando as “avós” interagem com pessoas mais novas e partilham vivências e experiências. “Eu acho que, no fundo, a geração mais nova olha para a velhice com um pouco de medo e, se calhar, ao ver estas pessoas, consegue não ter tanto medo do que está para a frente”.
Promover o diálogo intergeracional é algo que Olga Dias, de 76 anos, também coloca em prática. Está na Academia Sénior da Proteção Civil da Amadora desde 2016. Teve formação e agora transmite esse conhecimento também a outros, incluindo em visitas a jardins de infância. Para Olga, sempre que possível os lares deveriam ficar "perto de creches".
A investigadora e professora Stella Bettencourt da Câmara vai mais longe e defende que lares e creches funcionem num só local. Esta sim é uma “prática intergeracional", defende a docente do Instituto Social de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa.
Além desta partilha com as crianças, o trabalho dos agentes séniores de proteção civil chega invariavelmente às famílias e pretende reduzir, desde logo, o risco de catástrofes — e, no caso de elas ocorrerem, dá ferramentas para se saber como agir.
Para a investigadora, esta partilha intergeracional é essencial para desmistificar preconceitos entre ambas as faixas etárias. “Os mais velhos trazem experiência e os mais jovens inovação”, o que permite uma troca de competências.
António Pina, de 73 anos, conta que já vai passando os ensinamentos que aprende na Academia Sénior ao seu neto. Tímido, mas com sorriso no olhar, explica às crianças do jardim de infância, com o auxílio de fotografias, o porquê de ser perigoso mexer em fichas elétricas. Numa apresentação dinâmica, os mais pequenos interagem e fazem perguntas.
Importante também é ter amizades de várias idades, o que não só promove esta partilha entre gerações, como também “uma vida comunitária ativa”, afirma Susana António. “Vivemos mais de 20 anos após a reforma, não pode ser o fim, uma pessoa pode criar uma nova vida”. Há que mudar a visão de que “uma pessoa idosa não tem vontade de fazer nada, vê demasiada televisão, fica por casa de chinelos e não surpreende os outros”, defende Susana.
A designer considera até que “ser idoso, sénior ou velho aos 60 ou 65 anos já não faz sentido”. E cita a “avó” Celeste para sustentar o argumento: “Nós somos a mesma pessoa, a carne envelhece por fora, mas o espírito é o mesmo”.
Luís Carvalho, coordenador do Serviço Municipal de Proteção Civil da Amadora, admite ter mudado a sua perspetiva sobre envelhecimento quando conheceu os voluntários da Academia Sénior.
“Às vezes, temos aquela mentalidade de, como são pessoas com mais de 65, já estão no fim da linha, mas isso aqui não se passa. Aqui, as pessoas têm uma dinâmica, uma vivacidade tão grande… Eu nem os chamo de séniores. São pessoas que têm uma garra e uma vontade muito maior do que aquilo que eu pensei que era possível”.
O aluno mais velho da Academia tem 93 anos.
O envelhecimento ativo é definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o “processo de otimização de oportunidades para a saúde, participação e segurança, de forma a melhorar a qualidade de vida, à medida que se envelhece”.
É exatamente o que promove a Academia Sénior da Proteção Civil da Amadora, nascida em 2014. Trata-se de um projeto inovador, que pretende disseminar conhecimentos junto dos mais velhos, como primeiros socorros, o que fazer em caso de incêndios, como se proteger em caso de ondas de calor e de frio, entre outros.
Os alunos, todos com mais de 65 anos, têm formação teórica e prática. Chegam mesmo a participar em ações como observadores em simulacros nas escolas.
O projeto está associado a uma campanha internacional das Nações Unidas, o "Making Cities Resilient", que começou em 2010. A sensibilização, previsão e preparação dos grupos mais vulneráveis para eventuais riscos são essenciais para reduzir a dimensão de catástrofes.
Em novembro de 2022 a cidade da Amadora foi reconhecida como uma cidade resiliente e a Academia Sénior é um exemplo de como envolver a população no processo pode ajudar a prevenir maiores riscos. Olga não tem dificuldade em dar exemplos concretos: “No inverno, costumava pôr coisas em cima do aquecedor, mas agora não o faço e tenho muito cuidado com o gás.”
Luís Carvalho caracteriza o projeto como de “serviço público”. Admite que havia dificuldade em chegar às pessoas mais velhas e transmitir cuidados importantes para o dia a dia, como a sensibilização para o tempo frio. Com a criação da Academia tornou-se mais fácil, porque agora “os ensinamentos são transmitidos entre pares” e isso tem “mais impacto e entra melhor no ouvido, mesmo na conversa de café ou no banco de jardim”.
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António Pina viveu no Alentejo até ao 7.º ano de escolaridade. Depois, foi para Lisboa e aí fez vida. Trabalhou na área da informática e admite ter passado por um período difícil quando se reformou, há 16 anos: “A coisa começou a ficar feia e extremamente fechada.” António isolou-se e demorou até se adaptar à nova vida, sem trabalho.
“Muitas vezes, as pessoas trabalham uma vida inteira, depois ficam reformadas, sem grandes motivações e estão à espera que a morte venha”, afirma Stella Bettencourt da Câmara. Também Susana António partilha da mesma opinião, lembrando que “parte da identidade de uma pessoa está também ligada à sua profissão” e que tudo muda quando esse período da vida termina.
Motivo pelo qual a designer sublinha a importância de se “fazer atividades, aprender coisas novas e ter objetivos que nos mantenham com vontade de viver”.
Também Luís Carvalho considera que a capacitação dos séniores lhes traz “valorização social”. Descreve o grupo da Academia como muito dinâmico, com ideias e vontade de participar ativamente nas atividades. “O facto de os obrigar a sair de casa e estar em contacto permanente com os outros é fundamental”, explica.
Rosa Carvalho é um exemplo disso. Aos 69 anos, não gosta de estar parada e considera-se uma pessoa ativa e participativa. Estar no sofá e ver televisão não é para ela. “Tenho uma atividade por dia, mais ou menos. Há um dia em que fico livre, mas sempre arranjo coisas para fazer”, conta.
O convívio no ateliê do “A Avó Veio Trabalhar” permite ganhar novas amizades e até contactar com pessoas de diferentes nacionalidades, já que neste projeto não há quaisquer requisitos — a não ser ter mais de 60 anos. Há desafios todos os dias, novos bordados, workshops de cerâmica ou até mesmo encomendas vindas do estrangeiro que são costuradas pelas mãos das "avós”.
A sua rotina é agitada, mas há sempre tempo para tomar um café. Rosa conta que as pessoas até lhe dizem para “andar mais lentamente”, embora admita “não saber o que isso é”. E acrescenta: “não estou para aprender, parece-me”. Esta “avó” explica que quer manter-se ativa, enquanto pode e, por isso, aproveita cada segundo que a vida lhe dá.
Susana António considera essencial mudar mentalidades. A trabalhar bem de perto com as “avós” dos 60 aos 90 anos, não olha para elas nem as define pelas suas idades. Todas têm a capacidade para fazerem tudo e, no projeto, há várias experiências fora do ateliê.
Susana relembra a “avó” Rosário que, com 87 anos, embarcou na aventura de fazer queda livre num túnel de vento. É com um sorriso na cara que a co-criadora de “A Avó Veio Trabalhar” descreve o que aquelas mulheres conseguiram alcançar, sendo destemidas e prontas para o próximo desafio.
“Tem sido incrível”, descreve Susana. “Participar em festivais e concertos, onde, normalmente, não há pessoas mais velhas, e ver o 'feedback' dos outros em relação a elas é maravilhoso”. Recorda a ida ao festival Bons Sons, em Tomar, onde as “avós” estiveram na frente do palco a dançar com pessoas mais jovens, e a "Design Week", nos Países Baixos, onde ficaram dez dias e foi quase como “uma viagem de finalistas”, compara Susana entre risos.
“A idade não deveria ser um critério para definir uma pessoa”, conclui Stella Bettencourt da Câmara. Nos países mais desenvolvidos, as pessoas são consideradas como mais velhas a partir dos 65 anos, mas esta deve ser encarada como uma nova etapa, defende, onde ainda há muito que se pode fazer.
Olga Dias corrobora: “Nesta idade, temos mesmo de estar ocupados — e ocupados, principalmente, com os outros também”. Com 76 anos no cartão do cidadão, mas a sentir-se nos seus 60, gosta de se manter ativa e motiva os seus amigos a fazer o mesmo. Como uma “influencer”, utiliza as redes sociais para ir partilhando as atividades que desenvolve e não se esquece de publicar “uma história todos os dias no Facebook e Instagram”.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, estima-se que o número de séniores, com 60 anos ou mais anos, duplique até 2050 e mais do que triplique até 2100, em todo o mundo. Portugal e Itália estão entre os países que mais aumentaram a sua percentagem de octogenários entre 2002 e 2022 (24%), segundo o Eurostat.
Por isso mesmo é preciso implementar políticas holísticas, defende Stella Bettencourt. “Não temos uma política de envelhecimento. Uma pessoa mais velha não tem direitos por ser mais velha, mas sim por ser pessoa”.
A investigadora relembra que a idade não deveria ser um fator discriminatório ou algo que caracterize alguém, mas reconhece que este problema é comum a todas as faixas etárias, principalmente nos dois extremos — as mais jovens e as mais velhas.
Portugal tem uma Estratégia Nacional para o Envelhecimento Ativo e Saudável 2017-2025. O objetivo é “promover a saúde e o bem-estar, a participação, a não discriminação, a inclusão e a segurança”, indo ao encontro das metas da OMS — isto é, garantir qualidade de vida à medida que se envelhece.
Atualmente, a esperança média de vida de um homem, em Portugal, é de 78 anos e a de uma mulher é de 84 anos. Segundo dados dos últimos Censos (2021), só entre 2001 e 2021 registou-se um aumento de mais 730.146 pessoas residentes em Portugal com mais de 65 anos.
Nesta Estratégia Nacional fala-se também no idadismo — a discriminação com base na idade — e na importância de combater este fenómeno. Rosa Carvalho já o experienciou várias vezes e recorda um episódio: “No outro dia fui ao supermercado e começaram a gritar comigo. Se sou velha, sou surda, lá está”, ironiza. O que lhe vale, diz, é o sentido de humor com que leva a vida.
Há preconceitos e estereótipos que permanecem na sociedade. Não só acerca de características físicas, mas também psicológicas. Tendencialmente, “é associado ao envelhecimento a ideia de fim e fala-se na doença e não na saúde”, afirma Stella Bettencourt da Câmara. Além disso, “a calvície, os cabelos brancos, o ter rugas ou usar óculos, não podem ser definidores de uma pessoa mais velha”.
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Uma coisa é certa: “todos envelhecemos de formas diferentes” e há que preparar este ciclo da vida. Além das questões genéticas, há também opções que podem ser tomadas, como ter atenção à saúde, praticar exercício físico, ter uma alimentação saudável, entre outras. Isto vai fazer com que o envelhecimento “seja menos precário”, lembra a investigadora.
A idade da reforma em Portugal é aos 66 anos e quatro meses, mas há pessoas que gostariam de continuar a trabalhar e, para Susana António, isto “devia ser possível”.
Stella Bettencourt da Câmara partilha da mesma opinião e acrescenta que os mais velhos não estão a tirar postos de trabalho aos mais novos, uma vez que “o jovem não vai fazer exatamente o mesmo, irá para outras funções” e seria bom, na opinião da investigadora, poder haver uma troca intergeracional dentro do local de trabalho. Para isto, é necessário haver “maior flexibilização quando alguém quer continuar a trabalhar”.
“Somos uma sociedade que está a envelhecer. Ainda bem, é um privilégio”, declara a designer Susana António. O aumento da esperança média de vida quer também dizer que há mais tempo para inovar: “Os criativos não são só jovens criativos, os artistas não são só jovens artistas, as startups não são só dos mais novos”, reforça.
Numa altura em que o número de pessoas com mais de 65 anos continua a aumentar, é cada vez mais crucial olhar com atenção para esta faixa etária. A investigadora Stella Bettencourt da Câmara faz uma analogia: “É como se a sociedade fosse uma orquestra. Se um dia um instrumento não está, aquela música deixou de ser a mesma. Por isso, toda a gente é importante e toda a gente tem as suas competências, toda a gente tem o seu papel nesta sociedade.”