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Saúde terá orçamento recorde em 2024 e SNS vive crise profunda. Como se explica o paradoxo?

12 out, 2023 - 13:08 • João Carlos Malta

O Orçamento da Saúde vai ultrapassar no próximo ano, pela primeira vez, os 15 mil milhões de euros. No entanto, nos hospitais a tensão entre médicos e ministério cresceu até levar ao encerramento de serviços. Um ex-ministro, uma bastonária e um gestor hospitalar ajudam a explicar esta aparente contradição.

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"O orçamento da Saúde até poderia ter agora 25 mil milhões de euros ou 30 mil milhões euros. Se a questão crítica do enquadramento profissional dos médicos e outros profissionais não for resolvido, não há reforço orçamental que possa trazer eficiência e tranquilidade ao sistema de saúde”, adverte à Renascença o ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes.

O Orçamento do Estado de 2024 trará um orçamento histórico para o setor da Saúde, que atingirá os 15 mil milhões de euros no total, e que só para o SNS prevê um aumento de 1,2 mil milhões de euros em relação a este ano.

No entanto, os hospitais portugueses vivem momentos de grande tensão, com a conflitualidade entre Ministério da Saúde e os médicos a ganhar expressão em fechos de serviços. A insatisfação dos utentes também cresce proporcionalmente.

Confrontado com os problemas da saúde, o primeiro-ministro, António Costa, tem contraposto com a aposta dos governos que lidera neste setor e que levaram a aumentar de forma muito significativa o orçamento da Saúde desde 2015. Mas o dinheiro é a solução mágica que vai resolver os problemas da saúde?

O presidente da Associação Portuguesa de Gestores Hospitalares, Xavier Barreto, acredita que o Orçamento do próximo ano dificilmente resolverá os problemas atuais dos serviços de saúde prestados aos portugueses.

“Não há neste Orçamento do Estado soluções novas para a retenção e captação de profissionais de saúde. Isso parece ser claro. E não há nada também em relação ao modelo de gestão do SNS, que é fundamental em qualquer serviço”, enumera.

Xavier Barreto sublinha que para os profissionais mais qualificados do SNS, “os médicos”, os aumentos salariais serão de 3%. Isso significa que ficará em linha com a subida da inflação prevista para 2024 pelo Governo, 2,9%, e abaixo da subida dos preços anunciada para o próximo ano por outros organismos como o Banco de Portugal.

"Não há neste Orçamento do Estado soluções novas para a retenção e captação de profissionais de saúde". Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Gestores Hospitalares.

“Há um conjunto de investimentos que são necessários e faz todo o sentido que sejam feitos. Mas esta dimensão, a recursos humanos, é central na sobrevivência do Serviço Nacional de Saúde nos próximos anos. E este Orçamento de Estado, infelizmente, não apresenta nada de novo “, concretiza o dirigente associativo.

Mais dinheiro pode fazer esquecer a eficiência

Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem do Enfermeiros, reconhece o aumento do orçamento e que se explica, na sua ótica, com a essência da área da Saúde. Esta, argumenta, vive no meio do crescimento constante do preço de fármacos, de terapêuticas e cirurgias inovadoras, novas tecnologias e equipamentos de ponta.

O setor está em constante mutação e necessita de investimento. No entanto, lamenta, este não chega a todo o lado.

“Esse dinheiro acaba por ir para tudo isso e não para aquilo que são as carreiras dos profissionais de saúde”, sublinha. “Continuo a não ver no Orçamento do Estado resposta para as carreiras dos enfermeiros”, acrescenta.

O primeiro titular da pasta da Saúde dos governos de António Costa, Adalberto Campos Fernandes, alerta que o país está a fazer um esforço fiscal para a despesa pública em saúde “absolutamente inédito”. “Não existirão muitos países no mundo que num período de oito, nove anos, duplicaram a despesa pública em Saúde. É o que vai acontecer em Portugal se esta tendência se mantiver”, avança.

Ainda assim, alerta que mais dinheiro pode não significar melhores serviços. “Podemos estar a tornar esta alocação de recursos num processo muito ineficiente”, garante Campos Fernandes.

“O grande desafio é perceber se este reforço financeiro corresponde a melhores resultados, mais acesso, mais qualidade ou apenas a um aumento da despesa, tornando essa essa resposta muito ineficiente”, acrescenta o médico e especialista em Saúde Pública.

Adalberto Campos Fernandes diz que “temos sido pouco pragmáticos nas reformas setoriais” e alerta para os perigos que existem em aumentar a máquina do estado no setor da Saúde sem aumentar a eficiência e a eficácia. O exemplo que dá, e que mais o preocupa, é a criação de ULS (Unidade Local de Saúde) em hospitais que vão gerir orçamentos de mil milhões de euros. “Parece-me algo de elevadíssimo risco”, sublinha.

Médicos na mira da bastonária dos Enfermeiros

A ideia de que o dinheiro não resolve todos os problemas não é nova e tem sido usada por muitos críticos do modelo de gestão do setor. Sem melhor gestão, argumentam, dificilmente haverá melhores resultados. Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Gestores Hospitalares, acompanha as críticas. Assume a falta gestão de qualidade nos hospitais portugueses e isso, acredita, é resultado da falta de aposta nesta matéria de sucessivos governos.

"Não existirão muitos países no mundo que num período de oito, nove anos, duplicaram a despesa pública em Saúde. É o que vai acontecer em Portugal se esta tendência se mantiver", Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde.

A bastonário da Ordem dos Enfermeiros defende mesmo que a "má gestão e a má organização do trabalho estão a ter uma grande influência no que está a acontecer no SNS”.

E, nesta matéria, aproveita para lançar farpas aos médicos. O tema central da contestação tem sido o tempo de trabalho extraordinário e a recusa em fazer mais horas por parte daquela classe profissional. Ana Rita Cavaco lamenta que ninguém perceba o que está a acontecer nesta questão.

A bastonária sublinha que os médicos se “atropelam” para fazer o turno da manhã e que todos os outros horários são feitos em horas extraordinárias.

É fácil perceber porque se esgotam logo as 150 horas, mas depois, no privado, [os médicos] trabalham por turnos. Os enfermeiros já trabalham, sempre trabalharam por turnos de manhã, de tarde e à noite, numa semana de sete dias. E é isto que tem de acontecer no SNS. Nunca se perguntou porque é que no SNS só há consultas de especialidade de manhã e à semana? Porque é que só há exames de manhã e à semana, só há cirurgias durante a semana? Sem ser de manhã, só o fazem em período de recuperação em que ganham muito mais. Porquê? No privado, tudo isto existe os sete dias da semana”, critica.

A bastonária dos enfermeiros defende que o atual estado de coisas interessa aos médicos e “não há uma coragem política, desde há anos, para mudar esta organização de trabalho”.

E para ilustrar o seu ponto, Ana Rita Cavaco recorre ao ex-secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado, que num encontro para discutir a gestão do trabalho nos hospitais, e socorrendo-se da experiência como gestor hospitalar, reconhecia “a dificuldade de fazer horários com médicos”.

“Ninguém manda neles, não há quem mande e, portanto, é só manhãs. Atropelam-se nas manhãs e no resto do dia é tudo em horário extraordinário”, repete.

Tudo isto contrasta com o que acontece no privado, em que segundo a bastonária há um patrão e os médicos aí cumprem as regras. Esta dualidade só acontece, acredita, “há um lobby muito forte” dos médicos. “Este é o país do senhor doutor”, remata.

Dar mais dinheiro é mais popular

Ainda sobre a ideia de que mais dinheiro não é necessariamente sinónimo de melhores serviços, Adalberto Campos Fernandes reconhece que “é evidente” que politicamente “é sempre mais popular anunciar o reforço das dotações orçamentais”.

“Para a população, muitas vezes insatisfeita e preocupada com a falta de respostas, e para alguns partidos, sobretudo os que não têm responsabilidades de governo e dificilmente virão a ter, a solução mágica que encontram sempre é mais recursos. Nunca discutem os aspetos relativos à eficiência, à gestão equilibrada, à contenção dos custos”, lembra.

"Ninguém manda nos médicos, não há quem mande e, portanto, é só manhãs. Atropelam-se nas manhãs e no resto do dia é tudo em horário extraordinário (....) Este é o país do senhor doutor", Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros.

Para que a gestão dos hospitais não seja a melhor, contribui, segundo Adalberto Campos Fernandes a influência política que existe na nomeação de muitos conselhos de administração de hospitais públicos. “Há muitas nomeações em que é difícil compreender a razão e quais as competências que as pessoas têm”, avança.

“Por outro lado, os gestores de qualidade também ficam manietados pela tal burocracia. É um novelo muito complexo”, afiança.

Ana Rita Cavaco concorda com a existência de um problema nesta matéria e que é transversal a todos os partidos. “Vamos sempre assistindo às pessoas que são nomeadas para os conselhos de administração, são sempre as pessoas que estão afetas ao governo, muda um governo que lá vai a malta do cartão partidário ser nomeada para os conselhos de administração. E infelizmente nisto são todos iguais”, resume.

O presidente da Associação Portuguesa de Gestores Hospitalares, Xavier Barreto, faz uma distinção entre a gestão intermédia nas unidades de saúde pública, que considera de qualidade, e os que dirigem os hospitais nos conselhos de administração cuja nomeação resulta de escolhas políticas.

“São nomeados à luz de critérios políticos e, em muitos casos, são nomeadas pessoas sem qualquer experiência ou formação no setor”, alerta. E, por isso, “não podemos esperar bons resultados”.

"Há muitas nomeações [para Conselhos de Administração] em que é difícil compreender a razão e quais as competências que as pessoas têm", Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde.

O novo modelo para as ULS desenhado pelo Governo que pressupõe a indicação de vogais pelo Ministério das Finanças e pelas autarquias ou comunidades intermunicipais também não deixa Xavier Barreto tranquilo.

“Deveríamos ter critérios mínimos para garantir que estas pessoas, que são nomeadas para conselhos de administração, tivessem um perfil adequado, tivessem um currículo adequado, tivessem percurso na saúde, que dessem algumas garantias de que, de facto, vão ter bons resultados. E isso, não está garantido, nomeadamente no atual estatuto do que está previsto para as ULS”, enfatiza.

A independência do poder político não está garantida”, conclui Xavier Barreto.

O ex-ministro Adalberto Campos Fernandes não está muito otimista em relação ao futuro do setor. Acredita que nos próximos dois meses “vai a existir uma perceção de que é desta que finalmente os problemas da Saúde se vão resolver”, mas, no final do ano, “teremos um défice que continuará a crescer, uma dívida a aumentar, os hospitais com subfinanciamento e com necessidade de investimento não satisfeitas”.

E vaticina que este cenário terá como resultado que daqui a um ano “estejamos a discutir mais um reforço histórico do financiamento do SNS”.

“Nós sabemos que esta deriva financeira, que é, no fundo, um estado de grande aflição, avançar para mais recursos, para mais financiamento, em setores como este tem um grande risco, que é o de se tornar em algo que não tem fim”, remata.

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