Hora da Verdade

Santos Cabral critica SIS. "Houve um atropelo de competências” da PJ

07 jun, 2023 - 07:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Helena Pereira (Público)

O antigo diretor nacional da Polícia Judiciária e ex-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça critica os Serviços de Informações de Segurança (SIS) por terem atuado no caso Galamba e considera que a Polícia Judiciária (PJ) foi "a única entidade que atuou corretamente".

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O antigo diretor nacional da Polícia Judiciária e ex-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça critica os Serviços de Informações de Segurança (SIS) por terem atuado no caso Galamba e considera que a Polícia Judiciária (PJ) foi "a única entidade que atuou corretamente".

José Santos Cabral é juiz jubilado, foi diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ) entre 2004 e 2006, e, em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal "Público", salienta que "a quem compete a proteção e salvaguarda dos documentos classificados é, obviamente, o Gabinete Nacional de Segurança".

No caso de não haver crime, esta entidade, tutelada pelo primeiro-ministro, é quem "deveria tomar as providências adequadas" para recuperar o computador do Estado com dados classificados. Se houve crime, então a competência era da PJ e não do SIS.

Nesta entrevista ao programa Hora da Verdade, Santos Cabral alerta para a importância de o SIS adquirir "paz e tranquilidade", sendo que "neste momento, todo este episódio necessariamente tem repercussões na própria relação com os congéneres".

O país assistiu incrédulo a esta novela sobre um alegado roubo de um computador do ex-adjunto do ministro João Galamba. E uma das coisas que se percebeu é que parece ter havido um atropelo de instituições. Estou a falar do SIS em relação à Polícia Judiciária. Do que sabe, houve ou não atropelo?

Relativamente a este tema, diria que houve efetivamente um atropelar de competências. Numa situação destas, umas das duas: ou existe um crime ou não existe um crime. Existindo um crime, estes temas não são temas que sejam geridos discricionariamente. Eles estão inscritos na lei. Há uma lei de organização de gestão criminal, há uma lei de segurança interna, há uma lei dos segredos de Estado. E o que é que elas nos dizem? Que a quem compete a proteção e salvaguarda dos documentos classificados é, obviamente, o Gabinete Nacional de Segurança.

Segundo o Governo, houve um crime, um roubo.

Se fosse um crime, seria a Polícia Judiciária a fazer a investigação criminal porque é da sua competência. Se não existe um crime, então nessa altura seria o Gabinete Nacional de Segurança que é quem, na minha perspetiva, deveria tomar as providências adequadas, eventualmente recorrendo a uma das polícias ou podendo tomar uma atitude no sentido de recuperar os tais os tais documentos, o tal computador. Parece-me que efetivamente há aqui um atropelo de competências.

Há dias, o primeiro-ministro respondia ao PSD por escrito, dizendo que houve articulação entre a Polícia Judiciária e o SIS.

Parece-me que a única entidade que atuou corretamente foi efetivamente a Polícia Judiciária. Recebeu uma comunicação, entendeu que não se justificava naquele momento estar a ir ter com um cidadão, às tantas da manhã e interpelá-lo para a entrega do computador e aguardou pelo dia seguinte. Foi ter com o senhor e nessa altura tomou conhecimento que a situação até já está resolvida.

Portanto, não houve articulação. Quando a Polícia Judiciária vai lá não sabia que o computador já tinha sido entregue.

O que se passou em concreto entre estas entidades não sei. Sei que fez aquilo que devia ter feito.

Perante essa situação, o Gabinete Coordenador de Segurança chamaria a Polícia Judiciária ou outra entidade?

Eventualmente. O próprio Gabinete Nacional de Segurança tem gente. Não sei propriamente quais são os meios em concreto que têm. Nada me leva a considerar que o próprio Gabinete de Segurança, um agente ou funcionário, não possa ir ter com um cidadão, interpelá-lo.

Falar com o cidadão à meia-noite, ir a casa dele é algo que pode ser visto como intimidatório, tanto que a PJ não o fez, esperou pela manhã do dia seguinte?

Pode ser considerado. Depende da forma como o cidadão em concreto considerar essa aproximação. Pode ser considerado como algo que exorbita aquilo que é o contato normal entre uma força de segurança e um cidadão em concreto, portanto, invadindo a esfera da privacidade desse mesmo.

E pela sua experiência, como também diretor da Polícia Judiciária, tem havido casos semelhantes? Há zonas cinzentas que fazem com que, de vez em quando, haja atropelo entre SIS e PJ?

Houve sempre uma boa articulação entre os serviços de informações e a PJ. Essa articulação existiu sempre. Este foi um episódio menos bem conseguido. Há, aliás, aqui duas questões distintas. Esta interpelação que o SIS faz é uma questão jurídica. Quem é que atuou juridicamente de forma correta? E depois há a questão política: quem diz a verdade? Essa tem ser cada cidadão, por si, a avaliar.

A atuação do SIS tem de ter uma consequência óbvia? Seria natural que houvesse uma qualquer demissão na hierarquia do SIRP ou do SIS?

A resposta a esta questão depende da forma como isso se processou na prática, se alguém deu instruções, em que termos deu instruções, em que termos os próprios dirigentes do SIS. O SIRP vive da discrição, da relação de confiança não só com os cidadãos como também com os seus congéneres internacionais. É importante que o SIS adquira aquela paz e tranquilidade que deve existir. Neste momento, todo este episódio necessariamente tem repercussões na própria relação com os congéneres. A exposição pública do SIS, tal como está a existir neste momento, não é positiva.

O Ministério Público tem competência para investigar a atuação do SIS neste caso?

Não. O MP tem competência para investigar aquilo que é um crime. Ora, só se considerasse que existia aqui um crime em concreto de alguém.

Mas o Ministério Público, entretanto, abriu um inquérito.

Não sei o que se propõe escrutinar com o inquérito que abriu.

A sensação que as pessoas têm é que o SIS é inscrutinável.

Há um Conselho de Fiscalização, saber se esse modelo é o indicado é outra história. Há uma série de modelos. Em Inglaterra, têm um controlo parlamentar, judicial e um controlo do próprio executivo. Penso que o controlo parlamentar, e não de uma comissão como nós temos, mais o controlo judicial relativamente a atos concretos, que tocam com a privacidade das pessoas, seria mais adequado.

E uma eventual mudança de tutela? Ficarem os serviços de informações sob a tutela do Presidente da República?

Tomo como paradigma nestas questões as sociedades de matriz anglo-saxónica, em que o princípio base é o de confiança. Não posso partir de um pressuposto de desconfiança relativa à tutela e por isso tiro-a daqui para pôr ali.

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