Hora da Verdade

António Nunes acusa AGIF de "deriva perigosa" no combate aos incêndios

18 mai, 2023 - 07:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Sónia Sapage (Público)

Presidente da Liga dos Bombeiros avisa que as soluções usadas nos EUA, Austrália, Chile ou Canadá não servem para Portugal e espera "um Verão exigente", mas os soldados da paz "estão preparados".

A+ / A-
António Nunes acusa AGIF de “deriva perigosa” no combate aos incêndios
António Nunes acusa AGIF de “deriva perigosa” no combate aos incêndios

Num ano em que, de acordo com o Governo, o risco de incêndio aumentou 40% só até março, o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), assume que se espera "um Verão exigente, mas os bombeiros estão preparados" para ele.

Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, António Nunes deixa um recado à Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF): as soluções usadas nos EUA, Austrália, Chile ou Canadá não servem para Portugal, deixando mesmo a acusação de que há "uma deriva perigosa" na estratégia de combate aos incêndios.

O presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses considera ainda que, depois das falhas registadas no Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) nos incêndios do ano passado, a rede "é confiável" e "se for atempadamente deslocalizada para as situações de emergência, vai funcionar bem".

Notícias recentes dizem que o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais começou mais uma vez com menos meios aéreos do que no ano passado. Apesar de as previsões apontarem para um Verão mais quente, seco e propício a incêndios. Este é o novo normal com que temos que lidar?

O dispositivo de combate aos incêndios florestais tradicionalmente tem tido um número de meios aéreos que ronda os 60. Já no ano passado, a LBP tinha dito que este ano dificilmente iríamos ter o número de meios aéreos que estavam programados face a duas situações. A primeira tem que ver com o facto de ter havido vários incêndios em países da Europa Central. Normalmente os helicópteros que vinham para Portugal, para Espanha, para o Sul de França vinham da Europa Central. Ora, havendo esses incêndios, os meios foram desviados. Por outro lado, havendo escassez, os preços iriam subir. Portanto, os concursos públicos, ao serem feitos a valores de 2020/2022 ou de anos anteriores, naturalmente que iriam ficar desertos. E assim aconteceu. Para nós não é uma surpresa. E não é culpa do Estado, não é culpa do Governo, é culpa do mercado. Não há, porventura, situações que possam resolver essa questão. Mesmo que seja por ajuste directo, em determinadas alturas, nós podemos ter disponibilidade financeira para fazer esse aluguer, mas os meios podem não estar disponíveis.

E se tivesse sido feito mais cedo. Não tornaria a situação um bocado mais acautelada?

Pelo menos teríamos tido o cuidado de perceber com alguma antecedência, e não no dia 15, que nos faltavam seis meios aéreos e que provavelmente não os vamos ter. Ou, se os tivermos, será com alguma dificuldade e, eventualmente, nunca vamos passar dos 60 para os 70. Por isso, nós, desde a primeira hora, temos dito que tem de haver um plano B. Ou seja, se eu tenho uma informação, como foi dita pelo Ministério da Administração Interna e até por algumas entidades científicas, como seja o IPMA, a dizer que provavelmente vamos ter um Verão mais rigoroso e que teremos dias em que as condições atmosféricas e meteorológicas são muito adversas para o estado da floresta, então temos de ter uma alternativa. A nossa é aumentar a capacidade dos meios terrestres com a finalidade de acorrer de uma forma mais musculada aos incêndios iniciais e resolvê-los na primeira hora. Nós sabemos que só os incêndios que passam a primeira hora é que se escapam e transformam em incêndios de grande dimensão.

É esse o plano B que tem na cabeça?

Na minha cabeça, esse é o plano B, porque o plano A foi aquele que foi gizado e aprovado pela Comissão Nacional de Proteção Civil, que contava com os meios, quer terrestres quer aéreos, que lá estavam. Nós associamos também a esta questão o aumento do número de equipas e só há uma entidade que o pode fazer: são os bombeiros e os bombeiros voluntários. Se nós formos consultar o documento, as outras entidades que combatem os incêndios florestais já estão na sua máxima força, estão esgotadas, não há mais, porque já estão na sua plenitude. Os bombeiros ainda têm capacidade de reserva. Portanto, nós temos de os mobilizar antecipadamente e também temos de encontrar soluções para que eles possam estar disponíveis. E, por outro lado, criar um sistema de grande mobilidade. Isto é, nós não podemos ter os bombeiros concentrados no distrito de Lisboa, quando nós sabemos que o risco principal, do ponto de vista do desenvolvimento dos incêndios, é na zona do Interior.

E quem é que tomaria essa decisão?

A decisão tem que ser tomada pela Autoridade Nacional de Emergência Proteção Civil, que é quem tem a responsabilidade de mobilização dos meios para combate aos incêndios florestais. Naturalmente, temos de envolver o Ministério da Administração Interna. Porquê? Porque haverá, porventura, alguns ajustamentos, até do ponto de vista financeiro, que vão ter de ser encontrados. Não tenho a certeza absoluta de que a disponibilidade financeira que existe para o combate aos incêndios, de cerca de 52 milhões de euros, seja suficiente para um Verão diferente, como nos anunciam.

Essa mobilização extraordinária, de meios ou de verbas, existe?

Bom, não sei se existe. A nossa disponibilidade é sentar-nos à mesa com as autoridades e ajudar a construir o sistema. Já fizemos várias propostas de melhoria e foram aceites. Temos capacidade operacional para o fazer. É evidente que gostaríamos de ter meios mais modernos que não temos: é preciso não esquecermos que os bombeiros têm cerca de 1200 viaturas com mais de 35 anos de idade. Temos um excelente diálogo com o Ministério da Administração Interna. Temos um bom diálogo com a ANEPC, mas as consequências do diálogo não têm sido aquelas que nós gostaríamos que viesse a acontecer, designadamente na dotação dos meios.

Falou da idade dos veículos. Faz ideia de qual é a idade média do bombeiro português?

A idade média do bombeiro português não a tenho como certa. Mas eu diria que deve andar entre os 30 e os 40 anos.

E há dificuldade de recrutamento de bombeiros?

Há dificuldade de recrutamento de mão-de-obra. Mas isso é universal. É preciso percebermos que estamos num país, e ainda bem, que está próximo do pleno emprego. A dificuldade de obtenção de mão-de-obra não é nos bombeiros, é no mercado em geral. Nos nadadores-salvadores, temos o mesmo problema.

A dificuldade é profissionalizá-los?

Sim, por duas ordens de razões: primeiro, porque a profissão é de risco e eu relembro aqui que desde 1980 até Dezembro de 2022 morreram 239 bombeiros em serviço. Eu não sei se há muitas forças de segurança ou de socorro que tenham esse registo e nós temos esse registo, infelizmente. É uma profissão de altíssimo risco, ao contrário do que às vezes se possa imaginar. Segundo, aquilo que é oferecido no âmbito dos contratos de trabalho dos bombeiros voluntários é praticamente inaceitável, porque é muito próximo do ordenado mínimo nacional para o risco que comporta e para a formação e a disponibilidade que têm de ter. É preciso olhar com alguma atenção para os incentivos ao voluntariado. Não podem ser incentivos que estão muito bem no papel, mas que não correspondem à capacidade de convencer os jovens. Não se paga transportes públicos? Pois não, mas há cidades do Interior que não têm transportes públicos. Há muita coisa que está escrita, e bem, nos documentos, mas que não tem uma aplicação prática.

O que é que podia fazer a diferença?

Um estatuto do voluntariado mais adequado àquilo que são as necessidades. Por exemplo, isentar de IRS todas as retribuições que o bombeiro voluntário possa receber como compensação por tempos perdidos. Não sei qual é o volume financeiro que isto representa, porque não tenho acesso a esses dados. Muito provavelmente não seria muito, porque até já há uma parte que está dispensada desse pagamento.

E pagar um subsídio de alimentação, por exemplo?

Tudo isso. Tem de se ir por coisas imediatas. Já temos a isenção nas taxas moderadoras, por exemplo, mas para os jovens não é muito atrativo. Há uns anos atrás, a lei deu aos municípios a capacidade para apoiar os bombeiros, por exemplo, através da redução do IMI. Mas é preciso que eles estejam a viver no sítio onde prestam voluntariado e têm de ter casa própria.

O ano passado tivemos problemas com o SIRESP que foram visíveis e denunciados até pelos bombeiros. É recorrente. Confia que em 2023 o SIRESP não vai dar problemas como em 2022?

Nós temos de acreditar naquilo que são as afirmações de princípio e os investimentos que foram anunciados. Desde 2017, o SIRESP tem melhorado muito. Muitas vezes, a questão que se coloca é a da capacidade momentânea para as suas mobilizações. Houve alguns problemas, no ano passado, relacionados com a retirada de antenas [móveis] de pontos que eram estratégicos antes de algumas operações terem ficado completas. Muitas vezes, a informação não flui adequadamente.

Aprendeu-se com esses erros?

Eu acho que sim. E nós temos de dizer que o SIRESP é uma rede que, se for atempadamente deslocalizada para as situações de emergência, vai funcionar bem. E há sempre meios alternativos que podem ser utilizados, como a Rede Operacional de Bombeiros, que é uma rede de coordenação. O que é que pode faltar nos bombeiros que não falta nas nas forças de segurança das Forças Armadas? São especialistas em comunicações. Seria uma boa aposta se as Forças Armadas pudessem dar um bom apoio aos bombeiros.

Ao nível da formação?

Não só de formação. Ao nível de ajuda no terreno e acima de tudo de planeamento de redes.

Este ano não vamos ter comandantes a usar o telemóvel para comunicar no terreno?

Às vezes isso é um velho hábito que não se perde, tal como o de muitas vezes dizer pelo telemóvel aquilo que não se quer dizer via rádio. Mas o que nós sentimos é que há mais dificuldades nas comunicações terra-ar e de coordenação dos meios aéreos.

E porquê?

Por duas razões: porque a rede é pior, a banda usada tem muitas interferências; e porque muitos dos pilotos não são portugueses. Portanto, há mais problemas na interligação terra-ar do que propriamente na rede SIRESP. Eu diria que a rede SIRESP hoje, do nosso ponto de vista, é uma rede confiável.

O que é que mudou na vida dos bombeiros desde 2017, quando houve todas aquelas mortes?

Digamos que há dois aspetos. Apareceram muito mais atores no terreno e nós, Liga dos Bombeiros Portugueses, somos absolutamente contra esse aspeto.

A que atores é que se está a referir?

Hoje, num teatro de operações, em vez de ter bombeiros, tenho bombeiros, sapadores florestais de três categorias distintas, Unidades de Emergência de Protecção e Socorro, força especial de proteção civil, Forças Armadas, tudo o que possa aparecer.

É gente a mais?

Pode não ser gente a mais, mas são entidades a mais porque isso é difícil de coordenar. Nós sabemos perfeitamente que em Portugal a cooperação e a coordenação são sempre difíceis. Nós somos defensores de que a criação de agências de combate só pode ser feita na perspetiva da complementaridade. Ou seja: o que compete aos bombeiros é fazer isto. E o que é que falta? Falta isto e isto. Então podemos completar com outras entidades — aqui entra a coordenação. Agora, quando nós vemos no mesmo teatro de operações, na mesma frente de fogo, viaturas encarnadas, verdes e amarelas exatamente iguais, produzidas pelo mesmo fornecedor, alguma coisa está errada e portanto isso é concorrência. Além disso, há hoje uma deriva perigosa de tentar incorporar em Portugal experiências estrangeiras, principalmente vindas dos Estados Unidos, do Canadá, do Chile e da Austrália. O nosso território, a nossa interligação e interface meio urbano-meio florestal não se coaduna com essas técnicas, na nossa opinião. É evidente que há especialistas que dirão que se coaduna. Nós dizemos que não.

De onde é que vem essa deriva?

Vem de 2017. Eu numa zona como o distrito do Porto, se tiver um incêndio florestal com meia hora de duração, com uma velocidade de vento de 40 ou 50 Km/h, a minha probabilidade de uma ou duas habitações estar no caminho, é imediata. Nos Estados Unidos, posso ter duas horas ou 12 de queima de floresta e não surge casa nenhuma. Portanto, é preciso olharmos para isto com algum cuidado. Não podemos ter essa interpretação.

É uma interpretação que a AGIF tem, por exemplo.

Pois. Já disse o nome, nesse caso é escusado eu dizê-lo. Até já disse ao presidente da AGIF, Tiago Oliveira, que por onde ele passou agora já eu passei há 30 anos e recomendei, nessa altura, que não se fizesse. É preciso adaptarmos a nossa técnica, a nossa capacidade de combate, àquilo que é a realidade de Portugal, que é diferente da realidade de França, ou da espanhola.

Para que tipo de Verão é que se preparam este ano?

Aquilo que nos disseram é que vai ser um Verão exigente, mas os bombeiros estão habituados a isso. Os bombeiros não se prepararam para este ano, estão preparados para responder a todas as emergências. Mais de 85 ou 90% das emergências pré-hospitalares em Portugal são feitas pelos bombeiros. Não há nenhum grande incêndio em que mais de 80, 85% dos meios que lá estão não sejam dos bombeiros. Portugal tem de contar com os seus bombeiros, pelo menos enquanto não passarmos para outro estádio, que é o estádio da prevenção. Daqui por dez anos, talvez a nossa conversa seja diferente.

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+