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Entrevista Renascença

Daniela Braga. ​"Há um medo financeiro, apesar de existir dinheiro. E as coisas não vão melhorar só por acabar a guerra"

25 nov, 2022 - 20:33 • José Pedro Frazão

Há um problema psicológico nos mercados financeiros e não haverá uma recuperação enquanto a economia norte-americana não estabilizar as taxas de juro. Esta é a opinião da portuguesa Daniela Braga, empresária nos Estados Unidos na área da inteligência artificial e conselheira da Casa Branca para esta área. Entrevistada pela Renascença, a dona da empresa Defined acredita que é preciso esperar pelo fim do ciclo de inflação para retomar alguma estabilidade nos mercados tecnológicos.

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Daniela Braga vive nos Estados Unidos e fez um percurso académico pelas línguas e pela linguística até mergulhar no mundo da Inteligência Artificial. Hoje, não apenas dá cartas nesta área como está empenhada em que a língua portuguesa seja escutada e lida de forma automatizada em sistemas de apoio ao cliente de qualquer empresa no mundo. Assim se explica o projeto Accelerat.Ai, financiado pelo PRR na ordem demais de 34 milhões de euros, onde a sua empresa participa num consórcio com a Faculdade de Ciências de Lisboa, o Instituto Superior Técnico, a NOS e a Desco. A conversa começa por aí, mas vai mais longe.

Que projeto é o Accelerat.AI?

É um projeto que vai trazer automação ao atendimento e apoio ao cliente. Vamos trazer a Inteligência Artificial Conversacional (Conversational AI) e uma tecnologia tipo Siri [assistente digital criada pela Apple] mas dirigida a empresas. Incluímos um robot que vai responder 24 horas por dia e 7 dias por semana, de uma forma diferente da atual Resposta de Voz Interativa (IVR) onde as pessoas vão carregando em números associados a opções num menu. 50% dos utilizadores deste sistema vão diretamente para o operador, porque é uma tecnologia monótona que obriga a percorrer toda uma "árvore de decisão" para escolher um comando. Essa tecnologia está moribunda há muito tempo. A Inteligência Artificial Conversacional começou verdadeiramente há dez anos, com a SIRI, da Apple, e com o sistema Watson, da IBM. A nossa inovação é que, sendo uma empresa de dados, trazemos o processo para o domínio dos "small data" em vez dos sistemas de milhões de dados, nem sempre consentidos. Somos uma empresa de dados sempre consentidos, sempre cumprindo o Regulamento Geral de Proteção de Dados, com privacidade anonimizada assegurada. Por isso conseguimos fazer modelos mais eficientes e mais pequenos numa série de línguas não tratadas pelos gigantes tecnológicos como o "português europeu". Neste sistema o cliente não espera em 80% das perguntas e a maior parte das perguntas são respondíveis por um atendedor automático. Por vezes é preciso navegar em bibliotecas de conhecimento que só esta tecnologia torna possível.

Haverá sempre alguém que atende os outros 20% de perguntas?

A Inteligência Artificial não está aqui para substituir humanos, mas para retirar-lhes as tarefas repetitivas e monótonas e deixando-lhes apenas as coisas interessantes e intelectualmente desafiantes.

Isso vai tirar empregos a pessoas.

No início, sim. Vamos tirar empregos, mas vamos aumentar as receitas dos clientes porque, com atendimento 24/7, consegue-se dar uma resposta mais rápida aos clientes. É verdade que, numa primeira instância, a Inteligência Artificial retira empregos monótonos de tarefas repetitivas, mas são também trabalhos mal remunerados, de longas horas, que agora estão a ser muito colocados em pontos longínquos. Acontecerá como na Revolução Industrial, onde houve uma queda no início, mas rapidamente criaram-se empregos. Neste caso facilmente se criam empregos na área dos clientes, em que se analisa o tipo de perguntas que os clientes fazem, as motivações pelas quais ligam para o serviço. É um outro tipo de Inteligência Artificial que se adapta ao que o cliente procura. A aposta no "português europeu" é a nossa missão, para que o mercado português não tenha de escolher uma solução americana em português do Brasil ou em inglês. Todos os dias morre uma língua e muito do património cultural está na língua. Temos a missão patriótica de assegurar o "português europeu," mas, com a nossa tecnologia de dados mais dinâmica e eficiente, já temos uma lista de outros pedidos ainda antes de começarmos a implementar. Queremos recuperar os 34,5 milhões de euros investidos em vendas ao fim de 3 anos. Já estamos a fazer projetos-piloto com clientes sobretudo em Portugal.

Como avalia a situação atual da proteção de dados na Europa?

A boa noticia é que mais clientes têm de vir ter connosco. Temos um "Marketplace" de dados, uma Netflix de dados em que uma pessoa pode comprar dados apenas uma vez ou fazer uma subscrição de dados e usá-los perpetuamente. Isto é importante, porque cada vez mais os clientes podem tocar menos dos dados dos clientes, porque o Regulamento Geral de Proteção de Dados obriga a consentimentos e explicitação dos fins dos dados. Acontece não apenas na Europa, uma vez que há já uma lista de cerca de 15 estados norte-americanos que aprovaram ou estão prestes a aprovar leis nesse sentido. Nesta fase, ter um "Marketplace" de dados é mais importante que lançar produtos interessantes. A nossa tecnologia é toda anonimizada e não há maneira alguma de reconhecer a pessoa. As pessoas assinam contrato connosco, pagamos-lhe os dados. Sou a favor de uma economia na área de dados. No meu relógio estou a dar milhares de dados biométricos à Google sobre a minha saúde e penso que deviam perguntar-me se queria ser paga pelos dados que dou diariamente, apesar dos benefícios que isto me dá. Haverá um momento em que alguém dirá que até esses dados são pessoais e deviam ser pagos.

Como vê o ecossistema português neste momento?

Tenho de dizer que adoro a ideia da "Fábrica de Unicórnios". Não sei se há uma receita para construir um unicórnio, mas quando há uma intenção é possível tornar o caminho mais simples para construir unicórnios. A ideia de Carlos Moedas é muito importante porque na Europa toda a gente se mede por indicadores dessa natureza. A riqueza de um país está no número de empresas de valor multimilionário. Era relativamente fácil chegar a uma avaliação de mil milhões de dólares há um ano ou há dez anos. Agora estamos a passar uma fase financeira de desvalorização de 50% ou 100 % de todas as empresas de tecnologia. É uma fase em que a empresa chega a unicórnio e a dificuldade é manter-se nesse patamar de avaliação.

Tudo isso acontece por uma conjuntura de inflação e guerra?

Sim. E é um fenómeno psicológico. As avaliações são um fenómeno de especulação que os investidores fazem em função dos múltiplos de receita das empresas. Se, nalgumas indústrias, a avaliação é de um milhão porque se fatura um milhão, noutras a avaliação sobe a 20 milhões por milhão faturado. Há um medo financeiro apesar de existir dinheiro, mesmo com problemas nas cadeias de abastecimento e do impacto da pandemia.

As coisas melhoram se a guerra acabar?

Não, acho que não. A economia americana investiu tanto dinheiro para recuperar o país e manter vivos os seus múltiplos unicórnios e todo o mundo está indexado à economia americana. Enquanto os Estados Unidos não se reajustarem e estabilizar taxas de juro, o resto do mundo não vai assistir a uma recuperação. Isto é cíclico na economia e por isso é que a "Fábrica de Unicórnios" vai demorar a ter resultados devido a esta recessão. Os Estados Unidos vivem uma desvalorização das empresas tecnológicas. Neste momento, só os mercados de matérias-primas se mantêm estáveis nestas fases de crise.

Que diferença fará então a Aliança de Nações Europeias de Start-ups?

É uma ideia muito ambiciosa, lançada a reboque do plano 2030. A guerra vai atrasar esta Aliança, tal como o Brexit. É um bom plano, apesar do problema da guerra, mas o mais importante é a unidade económica e de políticas na governação de áreas críticas e de investimentos conjuntos em atividades-chave. Cada país deve investir em duas ou três áreas em que ficam no centro do desenvolvimento. A ideia da Aliança é construir um ecossistema mais aberto, transparente, de circulação de pessoas. Não pode haver uma situação em que em Portugal há um salário diferente da Alemanha e, com o trabalho remoto, pagas o salário alemão a viver em Portugal. Este é o problema. A Europa tem de se coordenar melhor nestas políticas, mas há sempre uma oportunidade em cada problema.

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