Reportagem

Jovens mudam-se para o Interior. “Aqui estamos muito realizados, sem a ansiedade da cidade"

10 dez, 2021 - 10:50 • Liliana Carona

São jovens e viram na pandemia o impulso para regressar às origens. Em Gouveia, dois exemplos: um casal ecologista que deixou o Porto e um triatleta que virou as costas a Lisboa. Na última década, Gouveia perdeu 13% da sua população.

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Jovens e o regresso ao interior - reportagem de Liliana Carona
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Não é difícil encontrar Eduardo Mourato, 33 anos, triatleta, a pedalar pelas ruas gouveenses, apesar de representar o Estoril-Praia. Natural de Seia, o treinador de ciclismo e triatlo decidiu apostar em Gouveia.

Fez formação académica em Educação Física e Desporto e trabalhou durante oito anos em Lisboa, mas, na altura do começo da pandemia, foi viver e treinar durante um mês para Gouveia, de onde é natural a sua namorada.

“Começaram a desafiar-me para montar aqui o projeto que tinha semelhante em Lisboa, fui trabalhando com alguns jovens, no ciclismo e no BTT. Comecei a gostar de estar cá e foi aqui que conheci a Ana, minha namorada”, conta.

Na EM-Concept, na Rua 5 de outubro, quem chega, procura as avaliações físicas e a planificação do treino de Eduardo Mourato, para tirarem o máximo rendimento desportivo.

“Trabalho com várias camadas, multigeracional, desde que tenham objetivos no ciclismo ou no triatlo. Em Gouveia acompanho 10 atletas, a nível nacional, 40 atletas, com quem trabalho à distância por videochamada”, refere, mostrando alguns dos títulos que se orgulha de ter conquistado.

“Há sensivelmente dois anos, no Estoril-Praia, no meu escalão, fui dois anos consecutivos vice-campeão nacional na distância standard e este ano já fui campeão nacional na distância full IronMan, em Coimbra, e para o ano tenho ambição de tentar alcançar o apuramento para o Campeonato do Mundo IronMan”, sublinha.

De Lisboa para Gouveia

Na última década, Gouveia perdeu 13% da sua população. De acordo com os Censos, em 2011 aquele concelho tinha 14.046 habitantes. Agora, dez anos volvidos, o número de residentes baixou para 12.221 (5.706 homens e 6.515 mulheres). Mas em 2020, duas dezenas de jovens com idade inferior a 35 anos decidiram apostar neste concelho do Interior.

Aquilo que mais cativou Eduardo Mourato foi o "nível de vida". “Qualquer coisa que precise, os valores são mais acessíveis, espaço, casa. Em termos de estruturas logísticas, as piscinas de Gouveia são acima da média, temos estradas e sítios para correr em altitude, o ar é bastante puro”, enumera, antecipando: “eu podia fazer um projeto de atletas de alto rendimento para o futuro”, afirma.

Sem dúvidas na hora de revelar “o balanço positivo”, o triatleta sente que o seu trabalho está a ter impacto na comunidade gouveense. “As coisas já estão a correr bem, o meu grupo de treino já está a influenciar outras pessoas. A nossa região sofre de um mal, a maioria das pessoas é sedentária, mas com a minha experiência, consigo aproveitar os benefícios que a nossa região tem e sinto que talvez consiga influenciar mais pessoas para esse efeito”, considera Eduardo Mourato, realçando que a maioria das pessoas que o procuram “é para competição e com objetivos bem definidos”. No entanto, também gosta de trabalhar na iniciação, “com as pessoas que descobrem a paixão pelo ciclismo, pessoas que querem acrescentar qualidade ao processo de treino”.

Imagina-se em Gouveia no futuro? “Para já sim. Sinto que a nível de jovens das escolas, aqui em Gouveia, por exemplo, o AEG - Agrupamento de Escolas de Gouveia, deve ser das poucas escolas que tem um projeto de desporto escolar para o BTT e são jovens que mais tarde ou mais cedo vão vingar no desporto. Este espaço tem a finalidade de receber os meus atletas pelo menos uma vez por semana. Marco sempre um treino específico aqui no local, para trabalhar cargas mais específicas de treino, com software específico”, descreve, assumindo que “os atletas têm bons resultados e também há pedidos de informação sobre o que eu faço”.


Adeus à cidade… e à ansiedade

Arquitetura ecológica, sabe o que é? Mais do que a definição académica, que relaciona a construção à sustentabilidade, é o sonho de Rita Esteves, 30 anos, natural de Coimbra, mas com as raízes dos avós paternos e maternos, em Folgosinho e Figueiró, a chamarem por si.

Também Rita sentiu que a pandemia despoletou em si a necessidade de passar à prática na concretização de uma ambição antiga: deixar a cidade do Porto onde conheceu o seu namorado, também atual investidor e residente em Gouveia, e deitar mãos à obra.

O ARTEtura - Estúdio de Arquitetura, Design e Ecologia já tem espaço físico, junto à Casa da Torre. “Estamos muito realizados aqui. Sentíamos que cidades como o Porto nos criavam ansiedade”, denota.

A tese de mestrado, concluída em 2016, tinha a ver com as suas raízes. “Estudar o meu lugar, até porque sempre me senti mais daqui. Continuei a tirar formações, tornei-me educadora ambiental, e já não fazia sentido estar num meio urbano, quando queria passar uma mensagem mais sustentável e ecológica, a necessidade de vir para o campo e mostrar o exemplo”, revela Rita, que chegou a Gouveia no começo da pandemia e passou a viver na aldeia de Folgosinho.

“Eu já trabalhava pela Internet, mas decidi abrir o escritório no centro de Gouveia, porque as pessoas confiam mais vendo um espaço físico. A minha missão de vida tem a ver com novos estilos de vida ecológicos, e eu sou muito arte, artista, ligada ao artesanato. Ofereço serviços de arquitetura, paisagísticos, quintas ecológicas, consultoria, formações, investigação e tentamos harmonizar o caminho entre o homem e a natureza”, desvenda sobre o que oferece a sua empresa que já começou a dar frutos. “Começo a ter alguns projetos aqui, mas ainda não entraram na Câmara. Até ao primeiro demorou, mas daqui a pouco não tenho mãos para tanto”, observa a arquiteta.

“Faz mais sentido aqui a nossa ação de educadores ambientais”

Rita Esteves define-se como “teimosa”, ao querer implementar a arquitetura ecológica e adotar um estilo de vida saudável.

“Tirar partido de cada lugar, dos seus fatores bioclimáticos, para que a arquitetura se comporte de maneira ecologicamente eficiente, para diminuir a necessidade de sistemas mecânicos. Fui teimosa em fazer o meu percurso independente. Não me identifico com as cidades, não gosto do trânsito e aqui atrai-me muito pela natureza, termos a nossa terra, a nossa horta, sermos autossustentáveis, produzir a nossa própria comida”, valoriza a arquiteta que encontrou no namorado o amor e a paixão em comum pela terra.

Francisco Cunha, 29 anos, licenciado em Turismo Ambiental e Rural, tem dado várias formações de agricultura e produção de cogumelos, além de projetar quintas, tratar dos terrenos, das árvores e usar técnicas sustentáveis.

“No futuro tenciono abrir uma empresa de produção de cogumelos, que não se encontram no supermercado. Não conhecia esta zona, tenho raízes transmontanas, vim para cá por causa da Rita. Sinto-me bem aqui. Temos cada vez mais amigos a querer vir para cá e há um casal do Porto que vem para aqui em janeiro porque querem mudar de vida e as outras pessoas começam a acreditar que é possível mudar”, afirma Francisco, que também é músico: toca piano e percussão, canta e “passa” vinis.

“Demorou um bocadinho, mas ao fim de dois anos, estamos a receber os frutos, demora sempre algum tempo e com a pandemia pelo meio, mas estamos muito realizados aqui. Sentimos que ir à cidade nos cria ansiedade. Perder tempo no trânsito. Pretendemos ficar aqui, ter filhos aqui. Há muitas mais pessoas ligadas à terra e faz mais sentido aqui a nossa ação aqui de educadores ambientais”, interrompe Rita.

Juntos criaram também o ‘Ser Recurso’. Um projeto, onde procuram aumentar e capacitar a oferta ao nível ecológico e ambiental a todos aqueles que procurem a autossuficiência, que priorizem produtos e recursos naturais, locais e ecológicos, e que estejam interessados em produzir o mínimo impacto ambiental, preservando a biocapacidade do planeta.

Nenhum dos entrevistados nesta reportagem recorreu aos apoios do Estado para fixação no Interior, apesar de o casal entrevistado ponderar ainda recorrer. Esta semana ficou a saber-se que o Governo vai alargar os incentivos a trabalhar no interior do país, estendendo-se até ao final de 2023 e abrangendo quem prestar trabalho à distância a partir do Interior e, em alguns casos, emigrantes que queiram regressar.

O programa de apoio a trabalhadores que se fixem no Interior recebeu até ao momento 711 candidaturas e as verbas aprovadas ascendem a 1,3 milhões de euros, segundo dados do Ministério do Trabalho enviados à agência Lusa.

Contactado o município de Gouveia, no sentido de obtermos o número de novos investidores no concelho, a autarquia responde “que não existem dados rigorosos sobre novas iniciativas de jovens investidores de fora do concelho que decidiram investir cá no último triénio”.

No entanto, o município salienta que “no âmbito do projeto Gouveia Empreende, na modalidade de apoio ao arrendamento, em que são valorizadas as candidaturas de empresários com idades inferiores a 35 anos, foram deferidos os seguintes números de pedidos: 15 em 2019, 17 em 2020 e 15 pedidos de apoio em 2021”.

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