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Entrevista

"Nas grandes empresas não há doutores"

16 nov, 2021 - 23:00 • João Carlos Malta

Número de doutorados tem crescido a olhos vistos, mas as grandes empresas nacionais não os contratam, revela o presidente da Faculdade de Ciências da Universidade Nova de Lisboa. Em Portugal estão a ser as start-ups quem mais aposta em doutores.

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Virgílio Machado defende que o conhecimento dos doutorados não deve ficar confinado às universidades. No entanto, o presidente da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT NOVA) ressalva que as grandes empresas portuguesas não tiram proveito direto do "alto valor acrescentado que os doutores podem dar à sociedade".

"As start-ups contratam mais doutores do que as grandes empresas", observa, em entrevista à Renascença, definindo a cadeia que depois se forma: "Há muito mais capacidade de criação de conhecimento e de intervenção nas sociedades a partir das start-ups que depois vão alimentar as grandes empresas".

Ao assinalar os 44 anos da agora FCT NOVA, Virgílio Machado sublinha o desequilíbrio na atribuição dos financiamentos para a investigação e critica a fuga aos impostos das grandes tecnológicas mundiais.

A Faculdade de Ciências e Tecnologia faz 44 anos. Ao longo das últimas quatro décadas, o que mudou no ensino da engenharia e no método para formar um engenheiro?

Há 40 anos, estava muito virada para as engenharias tradicionais, para o fazer, para o montar. Não estava pensada para as novas tecnologias, e as novas formas de fazer as coisas, os novos produtos. Os engenheiros estavam moldados para ir ajudar as pessoas nas operações do dia-a-dia. Mais do que engenharia de conceção, era uma engenharia de produção.

Depois da entrada na União Europeia, quando um conjunto alargado de empresas tiveram capacidade de investimento no país, tivémos a capacidade de pôr os nossos engenheiros a pensar em moldes completamente diferentes.

A sociedade tem o seu próprio ritmo, mas, por isso, a universidade deve andar vários anos à frente.

Houve necessidade de a engenharia se configurar para perceber que o engenheiro tem de estar no mundo real. Tem de perceber se os produtos que pode desenvolver, têm ou não aderência ao mercado. Pode fazer um produto muito sofisticado, tecnologicamente muito avançado, mas se não tiver mercado, não tem possibilidade.

A tensão entre a investigação primária e a investigação mais prática, virada para o mercado, é real nas universidades. Há quem defenda que a função da academia é a de apostar na investigação fundamental, e outros que preconizam um ensino superior mais próximo do mundo real. Aproxima-se mais da segunda linha de pensamento?

Eu diria que toda a investigação é aplicada. Pode ser hoje, amanhã, depois de amanhã, daqui a cinco ou dez anos. Temos é de ter a visão de que algures ela vai ser aplicada. Não há investigação pela investigação. O que há é investigação com impacto na sociedade. Há coisas que se descobriram no passado, e que só 10 ou 20 anos depois é que vingaram.

A sociedade tem o seu próprio ritmo, mas, por isso, a universidade deve andar vários anos à frente. Se não tiver essa capacidade, não está a desenvolver o seu papel.

Mas não podemos fazer coisas que só vão concretizadas daqui a muitos anos, porque não sabemos tão pouco se têm viabilidade. Uma sociedade precisa das coisas já.

Então o seu foco tem sido o da investigação ligada ao mercado?

Digamos que há um certo desequilíbrio. As universidades, aquelas que têm menos acesso aos financiamentos provenientes do Estado por via das empresas, ficam pelo financiamento que vem de estruturas nacionais − da Fundação para a Ciência e Tecnologia − para projetos mais científicos, ligados à investigação fundamental. Há muita intervenção nesses domínios e há pouca no mundo empresarial.

O que é que sinto? No nosso caso, temos muitos projetos europeus onde estão os grandes “players” internacionais. Fico frustrado porque estamos a dar apoio científico a grandes empresas multinacionais europeias.

E, no entanto, às nossas empresas para as quais podemos ter uma mais-valia, acabamos por não ter a mesma relação. É mais fácil ir [buscar financiamento] aos fundos comunitários, do que aos fundos nacionais.

Sentimos em que temos que equilibrar mais entre as áreas de investigação primária e a investigação aplicada.

Segundo o Governo, a despesa total em investigação e desenvolvimento (I&D) em Portugal atingiu um novo máximo histórico de 3 203 milhões de euros em 2020, representando agora 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso sente-se nas universidades?

Isso sente-se nos centros de investigação, mas não nas universidades no seu âmago.

Fico frustrado porque estamos a dar apoio científico a grandes empresas multinacionais europeias. E, no entanto, as nossas empresas para as quais podemos ter uma mais-valia, acabamos por não ter a mesma relação.

O Orçamento do Estado não financia a investigação, a investigação é competitiva. Há risco e não é linear que se ganhe.

Na nossa universidade temos 16 centros de investigação, intervimos em nove laboratórios associados. Há muitas fontes de investimento que derivam da investigação. Não são constantes, variam de ano para ano.

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"O engenheiro tem de estar no mundo real. Pode fazer um produto muito sofisticado, tecnologicamente muito avançado, mas se não tiver mercado não tem possibilidade."

Mas isto tem impacto. Há 20 anos, tínhamos um número de investigadores muito limitado. O número de doutoramentos era muito pequeno. Esse número disparou, agora formamos 100 doutores por ano. É um número que é incrível.

Ao longo destes 40 anos, formamos dois mil doutores. Os doutores não são para ficar nas universidades. As pessoas que se doutoram têm alto valor acrescentado que podem dar à sociedade. São pessoas que descobriram coisas e que perceberam como podem investigar novos produtos, novas tecnologias, novas formas, que podem ser uma mais-valia incrível para quem os empregar.

Mas estão a ser?

Se for às grandes empresas nacionais não vê muitos doutores, se for às grandes empresas com grande relevância para o PIB não vê muitos doutores. Nalgumas até não vê nenhum. As start-ups contratam mais doutores do que as grandes empresas. Isto muda completamente o figurino.

O que é que isto quer dizer?

Quer dizer que, atualmente, há muito mais capacidade de criação de conhecimento e de intervenção nas sociedades a partir das start-ups que depois vão alimentar as grandes empresas.

A economia portuguesa, e o perfil que detém, não consegue absorver profissionais com tantas qualificações?

Não tenho a certeza de que não sejam absorvidos. Eles são absorvidos, depende das áreas. Nem todas têm a mesma saída, mas estávamos carentes de pessoal com estas características.

Não é paradoxal que sejam empresas que estejam a começar, com menos músculo financeiro, e menos estabelecidas no mercado, a procurarem doutorados?

A investigação é muito cara, e uma empresa que o queira fazer tem recursos limitados, e sai caro contratar pessoas para desenvolver produtos.

O ecossistema atual faz com que as grandes empresas prefiram ter acesso a empresas mais pequenas, as start-ups, que possam ter ideias e lançar concursos de ideias.

E quando essas ideias chegarem ao ponto de rebuçado, compram essas ideias, contrataram essas pessoas, subcontratam essas empresas.

Uma empresa que tenha alguma dimensão ao invés de contratar meia dúzia de doutores ou de investigadores, prefere ter uma panóplia de várias start-up, espalhadas por Lisboa, Porto, Coimbra, ou por qualquer cidade do mundo, com menos custos do que se tivessem centros de investigação próprios.

Algumas universidades já perceberam isto, e outras ainda não, daí a nossa vontade de ter não só start-ups, mas também “players” que possam absorver investigadores, docentes, e estudantes e ajudar a transformar o processo de transformação dos produtos.

Apesar de o número de licenciados continuar a crescer em Portugal, só um terço das empresas portuguesas tem gestores com formação superior. O que é que isto quer dizer do país?

Quer dizer muito mal, e que não é por acaso que nós estamos onde estamos em qualquer índice que tenha a ver com o nosso desenvolvimento económico. Ainda não conseguimos convergir com a Europa. Corremos, corremos, corremos, e a aproximação não é real.

"Há muito mais capacidade de criação de conhecimento e de intervenção nas sociedades a partir das start-ups"

Isto tem a ver com a formação de todas as pessoas, não só dos gestores. Continua a haver a um défice de pessoas formadas.

A pandemia deu à ciência e à tecnologia um plano ainda mais central nas nossas sociedades, tendo feito dela uma experiência muito diferente do que seria há algumas décadas. Mas se por um lado o seu papel foi elogiado e endeusado, também o discurso anti-ciência nunca foi tão forte. Como vê esta dicotomia?

A pandemia trouxe os cientistas à televisão. Os matemáticos? Pensavamos que andavam lá no mundo deles. Não fazia sentido, porque a matemática resolve problemas. Aquelas pessoas que estavam lá nos laboratórios com os tubos de ensaio, esses tubos resolvem problemas.

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"Se for às grandes empresas nacionais não vê muitos doutores, se for às grandes empresas com grande relevância para o PIB não vê muitos doutores. Nalgumas até não vê nenhum."

Fazemos investigação porque temos medo da morte, queremos prolongar a nossa vida. Isto não era trivial há 50 anos. A fome e as guerras dizimavam populações. A morte era, às vezes, desejável em relação à fome. A fome agora é apenas um problema político.

Esta foi uma boa oportunidade para a ciência mostrar que pode ajudar a acelerar tudo. As vacinas foram desenvolvidas em tempo recorde. Conseguimos prolongar a vida, e não temos medo de combater a morte.

Não sei se é fácil regular a tecnologia. Mas na sociedade temos um défice que é grande, neste ponto de vista.

Agora há sempre o reverso da medalha, há sempre umas franjas da sociedade que diz: "Será que isto não é o movimento capitalista de empresas sem escrúpulos". Haverá de tudo.

Disse que os cientistas passaram para "à frente das câmaras de televisão" O discurso científico foi mais ouvido, mas aconteceu uma outra coisa, assistimos em tempor real a teses contraditórias entre cientistas. Isso não contribuiu para que este discurso anti-ciência ganhasse força?

Pode criar confusão.

A discussão deve ser feita em direto?

As pessoas têm de entender que há questões que a humanidade ainda não resolveu. Cada vez descobrimos mais coisas, mas há coisas que não sabemos, como por exemplo, porque é que os vírus aparecem.

Em 2018, também no aniversário da faculdade falou do aparecimento de uma nova economia de empresas da internet que não pagam impostos. Como presidente de uma faculdade de ciência e tecnologia como olha para esta realidade de um ponto de vista ético e social?

Enquanto cidadão, eu pago os meus impostos como todos pagam os seus impostos. As empresas também devem pagar impostos. É incompreensível que haja quem não pague impostos. É incrível que haja empresas que pela sua dimensão consigam fugir a tudo isto [aos impostos]. Ninguém pode estar de acordo que os grandes gigantes tenham mais benéficos continuamente.

Mas os casos que se repetem podem levar a que se faça uma ligação entre a tecnologia e uma certa amoralidade?

Essas são as componentes que devemos discutir na sociedade e também nas universidades, em particular as que envolvem tecnologias. É isso que enquanto diretor tento promover.

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"É incompreensível que haja quem não pague impostos. É incrível que haja empresas que pela sua dimensão consigam fugir a tudo isto".

A ciência pode ajudar a resolver os problemas do mundo, mas também pode criá-los. Os cientistas podem fazer bombas que rebentam com isto tudo em dois segundos, ou fazer vacinas que podem ajudar as pessoas a sobreviver a uma pandemia.

É necessário que haja mais formação na área social e ética. É na idade mais jovem que os cientistas descobrem coisas. E os mais novos são também mais agressivos.

Está na génese do cientista querer ir mais além, mas não falta mais regulação para que a sociedade se proteja?

Não sei se é fácil regular a tecnologia. Mas na sociedade temos um défice que é grande, neste ponto de vista.

A tecnologia não pode estar sozinha. É importante o direito estar ligado à tecnologia, e algumas escolas começam a dar os passos neste domínio.

Os efeitos da descoberta científica devem ser sempre acompanhados pela sociedade.

Às vezes temos medo da palavra regulação, porque os exemplos que temos de outras áreas, seja na energia, seja no ambiente, são complicados.

A sociedade não é perfeita, nem na tecnologia, nem em lado nenhum.

Comentários
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  • Fernando
    18 nov, 2021 Coimbra 23:07
    Quem sabe faz. Quem não sabe ensina.

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