Caso Cabrita

A relação entre ministros e motoristas. Quem é responsável pelo quê?

08 jul, 2021 - 08:00 • João Carlos Malta

O atropelamento mortal de um funcionário que fazia trabalhos de reparação na A6 pôs o país a discutir a responsabilidade que o ministro da Administração Interna tinha no caso. A Renascença foi ouvir ex-ministros e ex-secretários de Estado para perceber como é que estabeleciam regras com quem os conduzia.

A+ / A-

“É uma relação que se torna muito pessoal, porque às vezes passava mais horas com ele no carro do que no ministério. Essa relação pessoal, a ligação ao trabalho e, muitas vezes, no exercício das funções é preciso estar em dois lugares ao mesmo tempo. É deste ponto que partia”.

É deste modo que o social-democrata Fernando Negrão, ministro do Trabalho e da Família do governo de Santana Lopes, entre 2004 e 2005, e, depois, titular da pasta da Justiça no efémero executivo de Passos Coelho em 2015.

Em relação à velocidade a que circulava, Fernando Negrão, deputado que agora preside Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco, lembra o trato que tinha com o motorista.

Tinha dois máximos em termos de velocidade, um era 120 km/h e outro era 140 Km/h. Os 120 porque era o limite legal e 140 era o limite fazendo os descontos que os radares detetam”, relembra.

“Portanto, andávamos nos 120/130 km/h e, quando tínhamos um bocadinho mais de pressa, andávamos nos 140”, concretiza.

O atropelamento que envolveu o carro em que seguia o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, na A6 - que liga Marateca à fronteira do Caia, em Elvas - vitimou um trabalhador, de 43 anos, que fazia reparações na via.

A investigação ainda não tornou pública a velocidade a que o carro circulava no momento do incidente, mas tem sido noticiado em vários órgãos de comunicação que a média da viatura em que Cabrita seguia foi de 200 km/h.

Negrão diz que a velocidade a que circulava era combinada entre ele e o condutor, “porque quem a paga a multa e quem fica inibido de conduzir é o motorista”.

Poder hierárquico

Em relação à responsabilidade num acidente, que diz nunca ter acontecido durante o tempo em que foi ministro, Negrão não tem dúvidas: “Dos dois. Minha, enquanto detentor do poder hierárquico, e dele, enquanto condutor que devia fazê-lo com a maior diligência possível."

Um ex-governante de um dos executivos socialistas liderados por José Sócrates não podia estar mais em desacordo com esta interpretação do ex-ministro do PSD.

O socialista, que não quis ser identificado, diz que “o superior hierárquico não determina as regras de condução nem a velocidade da condução”.

Era só o que mais faltava que um elemento do Governo dissesse 'agora trave, agora acelere, agora vire a esquerda'”, ilustra.

O mesmo antigo governante acredita que culpas só podem ser assacadas a quem vai ao volante. “Só se o membro do Governo lhe atirou um telemóvel, ou lhe tapou os olhos, ou há aqui dolo entre quem vai no carro e o motorista. A responsabilidade de conduzir é daquele agente”, explica.

O socialista descreve ainda que se o motorista “não anda bem, se tem sono, ou anda nos copos, a responsabilidade, até se notar essa circunstância, não é de quem é conduzido, é de quem conduz”.

Em relação à experiência enquanto foi detentor de um cargo governamental, garante: “Nunca aceitei que me sobrecarregassem a agenda."

“Em determinados eventos, era indelicado a dizer que me ia embora porque tinha uma reunião dali a tanto tempo e não queria ultrapassar o limite da velocidade”, acrescenta.

"Como é que eu podia não ser responsável?”

Já o ex-secretário da Administração Interna do Governo PSD/CDS, João Almeida, responde à questão de outra forma. “Com certeza que sentiria alguma responsabilidade. Indo dentro do carro? Por amor de Deus... Mesmo não indo. Obviamente que o carro é do Estado, o titular de órgão político era eu, como é que eu podia não ser responsável?”, questiona.

“Não quer dizer que seja a responsabilidade objetiva ou criminal, ou perante o código da estrada, que tem regras próprias. Quem é responsável por uma infração é quem vai a conduzir o carro. Mas uma responsabilidade hierárquica e política sentiria, mas graças a Deus nunca me aconteceu nada parecido”, sublinha.

João Almeida diz que qualquer pessoa que tenha uma viatura atribuída e que tenha motorista tem a responsabilidade pelas condições em que a viatura está a circular. Quando está presente no carro, e se achar que não está correta, “tem poder hierárquico para poder determinar à pessoa que está a conduzir para o fazer noutros termos”.

O ex-governante do CDS disse que sempre aplicou o “bom senso”. “Não conheço nenhum regime nem regulamento sobre isto, o que apliquei sempre foi o bom senso”, repetiu.

Velocidade

Sobre a questão da velocidade, João Almeida recorda que quando achava que estavam a ir depressa demais, dizia “Senhor João, atenção à velocidade. O normal. Se estou num carro, um carro do Estado, se sou titular de um órgão político não é indiferente. Tinha sentido dessa responsabilidade, de onde estacionávamos, de onde parávamos, mas tinha a sorte de ter um motorista que também tinha todas essas preocupações”.

Segundo o centrista, a memória que tem é a de que em exercício de funções “nunca fomos parados por autoridades” e “nunca houve excesso de velocidade”. Mas ressalva que não o garante a 100%, se houve alguma vez isso aconteceu. A memória baseia-se na ideia de que se isso sucedesse seria notícia, uma vez que estava no Ministério da Administração Interna.

Um outro ministro do governo de Passos Coelho também fala da relação com o motorista através da imagem que usava com frequência nessa altura: “Eu costumava dizer, a brincar, quando iam pessoas no carro que iam dizendo ‘vai pela esquerda, vai pela direta’. Tenho uma combinação com o motorista: ele não faz política e eu não me meto na condução."

O ex-governante, que não se quis identificar, afirma que passava o tempo dentro do automóvel a trabalhar ou "ao telemóvel para despachar coisas”.

Ainda assim, afiança que tinha sempre uma precaução. “Quando tínhamos de fazer estrada, seja para o Porto, para o Algarve ou Bragança, se o ministro tem 1h30 ou 2h00 para chegar de Lisboa ao Porto, tem de fazer uma média de 150 km/h. Isso é matemática. Nós tínhamos o cuidado de ir sempre com calma. Se tenho de estar no Porto às 10h00, saía da de casa às 7h00 ou às 6h30”, descreve.

“Se tenho de fazer 300 km em 2h00, a tendência é acelerar. Se o tiver de fazer em 3h00 a pressão é completamente diferente”, concretiza, ao mesmo tempo que diz não se lembrar de nenhuma urgência em que tenha de ter ultrapassado os limites de velocidade.

A Renascença tentou ainda falar com outros dois governantes socialistas de executivos anteriores, mas ambos rejeitaram fazer declarações sobre este tema.

Entretanto, e depois de o ministério da Administração Interna ter emitido um comunicado em que relatava falta de sinalização das obras no local do atropelamento, que a Brisa desmentiu, Eduardo Cabrita falou apenas uma vez sobre o caso para dizer que não se demite e que viveu um período particularmente difícil.

Cabrita pediu que não se faça aproveitamento político deste caso, deixando que a investigação decorra com a celeridade possível.

Como se faz em campanha

Sobre este tema, a Renascença procurou também perceber como os partidos políticos organizam campanhas eleitorais e como gerem a relação com os motoristas. O Bloco de Esquerda explicou que, num período eleitoral, tem uma carrinha de nove lugares em que ou se desloca Catarina Martins, ou Marisa Matias, nas presidenciais.

Nela segue a equipa mais próxima, em que se inclui a assessoria de imprensa, o diretor de campanha. Há outras pessoas que seguem em automóveis separados: a equipa das redes sociais, a equipa da internet. “São caravanas muito pequenas, são apenas dois ou três carros no máximo”, concretiza fonte dos bloquistas.

O mesmo admite que já pode ter havido alguma multa por excesso de velocidade, mas garante que isso só acontece “muito pontualmente”.

Às vezes não são altas velocidades, ocorrem naquelas vias rápidas onde há limites de 80 ou 70 km /h, e onde se vai a 90 km/h, e já é o suficiente para ter uma multa. Nós temos o cuidado de nas autoestradas procurar respeitar os limites de velocidade. São essas as orientações que são dadas”, declara.

O mesmo elemento conhecedor da organização das corridas eleitorais do BE revela que o diretor de campanha se reúne com a equipa de estrada e verifica: os horários, o que é preciso, onde é que os tempos são mais apertados, e onde é que existe mais folga. Tudo para organizar a agenda da melhor maneira.

E acrescenta que o importante “é ter alguém muito experiente e que tenha muita responsabilidade, que cumpra os períodos de descanso, e que esteja focado em relação à segurança da condução.”

Já no PSD, um elemento que no passado organizou várias campanhas partidárias sublinha que as multas foram pontuais. “As campanhas são muito localizadas e em concelhos que são pequenos. Não há grandes deslocações”, diz a fonte que também não quis identificar-se.

Em relação a acidentes, garante que foram muito poucos, e descreve o processo desta forma: “Quando havia multas eram pagas, como em outra empresa qualquer, não era nada do outro mundo. Fiz muitos quilómetros, fomos cumprindo dentro do normal de qualquer cidadão português."

Já em relação ao caso que envolve o ministro Cabrita, a investigação continua e ainda não se conhecem dados fundamentais como a velocidade na altura do atropelamento e se o carro circulava ou não numa situação de emergência.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Maria Oliveira
    08 jul, 2021 Lisboa 11:12
    Não parecem necessárias grandes indagações sobre quem é o responsável: motorista ou ministro. Além do poder hierárquico, o ministro é titular de um cargo público, que deve impedi-lo de colaborar na infracção de normas, no caso do Código da Estrada. Acresce que este ministro, em particular, tem a tutela das polícias, que fiscalizam precisamente o cumprimento das referidas normas e sancionam os infractores.

Destaques V+