A pandemia e as suas lições - a visão da Igreja portuguesa

Bispo de Santarém. “Houve um acréscimo da violência em família"

21 mai, 2021 - 07:00 • Henrique Cunha

A violência é uma preocupação central de D. José Traquina, em particular a que se verifica no seio familiar. O prelado que lidera Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade chama a atenção para a necessidade de acolher e integrar os imigrantes, defende que o Estado assegure metade das despesas das IPSS e elogia o trabalho dos lares. Entre aquilo que mais teme, o bispo de Santarém aponta o pessimismo entre os jovens.

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O bispo de Santarém revela ter “grande preocupação com aquilo que são os sinais negativos da sociedade” e coloca a questão da violência familiar no centro das suas preocupações.

"A pandemia veio toldar o ambiente familiar”, diz D. José Traquina, em entrevista à Renascença, colocando o foco na "violência em ambiente familiar", onde se verificam "maus-tratos para com crianças" e "a violência doméstica”.

“Houve um acréscimo da violência em família e isso é muito preocupante”, diz o prelado, sublinhando que a pandemia nos mostrou o quanto a família “é um bem”, mas “tem de ser um bem num bom ambiente”.

"A proibição de fazer exéquias (...) foi o mais duro”

Para o bispo, “o grande desafio é o de evangelizar no sentido da própria humanização da vida”, com atenção particular aos sinais da violência que em 2020 veio “toldar o ambiente familiar”.

"É preciso que a Igreja seja um testemunho para que a sociedade não se paute por critérios de violência e de afirmação individualista, pois a violência não é critério de uma sociedade desenvolvida”, reforça.

D. José Traquina sustenta que esta realidade que verifica na diocese de Santarém "é transversal ao país”.

Já no plano de trabalho, ao contrário do que se verifica noutras zonas, como, por exemplo Odemira, D. José diz não ter “sinais de injustiça".

"Contacto os empresários, quer os agrícolas quer os industriais, para pedir atenção às situações, sobretudo à importância de acolher bem os emigrantes” relata.

"Aliás, tive oportunidade de pedir aos empresários que se dizem cristãos e que se afirmam católicos que assumissem as suas responsabilidades com todos, nomeadamente com os estrangeiros que vem trabalhar”, reforça o prelado.

Lição n.º 1: Necessidade de definir modelo de parceria com sector social

O bispo de Santarém, que é também o presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade, adianta que “a comparticipação da segurança social para as IPSS e Misericórdias, em média, não ultrapassa os 38 por cento da despesa” o que provoca “uma aflição tremenda às instituições para conseguir ter na sociedade e nas famílias os outros 62 por cento para poder corresponder às despesas da casa”.

“Todos os anos é esta aflição”, reforça o bispo, lembrando por exemplo que em 2020, "quando se chegou a junho, o Governo teve que se chegar à frente porque, se não tivesse havido um acordo para corresponder às despesas que foram aumentadas no início do ano, as instituições bloqueavam economicamente”.

"O Estado devia contribuir com, pelo menos, 50 por cento da despesa” e sugere que “todos os anos haja uma revisão do acordo de cooperação”.

"O Estado devia contribuir com, pelo menos, 50 por cento da despesa [das IPSS]"

O bispo de Santarém considera que o défice de comparticipação do Estado potencia o “aparecimento de imensos lares ilegais porque não há outra hipótese: a necessidade das famílias de encontrar uma solução leva a essa situação”.

“Não é concorrência desleal. As pessoas ficam em casas de famílias, com as condições que podem, mas não ficam bem, obviamente”, reforça.

Neste quadro, o presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social exorta o Estado “a ter uma consideração pelo modelo”

“Há uma questão de fundo que é a de saber se os governos querem este modelo ou se o querem mudar. Se o querem mudar, digam. Se o querem empresariar, digam”, reforça.

O bispo de Santarém defende também que é tempo de o Ministério da Saúde “entrar num acordo com as IPSS e Misericórdias porque as instituições têm de ter médicos e enfermeiros, pois há pessoas com muita idade nos lares que precisam de um apoio continuo na área da saúde”.

Lição n.º 2: A dura dor do luto e o pessimismo entre os jovens

A pandemia fez aumentar “a pobreza, as doenças e acentuou fragilidades” que foram sendo acompanhadas por D. José Traquina “através da oração”.

"A oração e o contacto à distância foram um auxílio precioso para todas aquelas famílias que perderam os seus”, aponta.

"Isso foi o mais duro, o mais difícil: não ter condições de acompanhar de perto as famílias na sua dor de fazer luto”.

"A proibição de fazer exéquias também criou dor, pois perderam-se pessoas que nos são queridas. E, claro, Isso foi o mais duro”, afirma o bispo que prevê a necessidade de “muito tempo para se recuperar”.

"A nossa região não foi das mais atingidas pelo desemprego”

Mais célere poderá ser a normalização da assiduidade à Igreja. D. José Traquina diz ter sinais de que “as pessoas estão desejosas de voltar a encontrar-se, de se reunir”.

Para o bispo de Santarém, a grande preocupação é outra: "O receio que está instalado e o pessimismo da juventude.”

"A jiventude não encontra trabalho, não sente motivação para estudar, o que é preocupante para muitos pais. E, nesta altura em que iniciamos uma luta para sair da pobreza, custa-nos que alguém esteja desmotivado com a vida, desmotivado com o estudo, desmotivado com o trabalho”, desabafa.

Lição n.º 3: Reforço da solidariedade e retomar o ensino do português a emigrantes

Numa região em que vingam os sectores da distribuição e da agricultura, o desemprego “felizmente, não se revelou um grande problema”.

"Apenas o turismo foi prejudicado pela pandemia”, avança o bispo de Santarém, "dado que as nossas zonas agrícolas e as nossas grandes empresas de logística, assim como a indústrias, funcionaram”.

"Porventura, a nossa região não foi das mais atingidas pelo desemprego", garante, D. José, ressalvando que, ainda, houve e há “uma Cáritas diocesana sempre presente” e ajudada por “empresas que, semanalmente, entregam bens para que se possa assistir a quem mais precisa”.

A Cáritas de Santarém chega hoje "a 1.123 famílias, ou seja, a cerca de 2.800 pessoas”.

“Entre estas pessoas vale a pena saber que há 110 emigrantes que são apoiados também com bens alimentares através da Cáritas”, sublinha o bispo, destacando outro serviço desenvolvido pela Cáritas de Santarém: “Estamos também a desenvolver um trabalho curioso que é o do ensino da Língua Portuguesa. Está a acontecer já em Alpiarça e vai ser promovido também no Cartaxo e em Rio Maior, direcionado, sobretudo, a migrantes indianos”.

De acordo com o bispo, trata-se de uma comunidade que tem crescido fortemente em Portugal nos últimos anos, passando de “oito mil, em 2018, para mais de 25 mil, este ano, ou seja, o triplo do verificado há três anos”.

D. José Traquina diz que “são pessoas que vieram trabalhar para a agricultura, para as fábricas e que se foram adaptando”.

A iniciativa será retomada logo que haja condições de segurança, pois “temos uma professora aposentada que dá o seu apoio em conjunto com os voluntários da Cáritas”, adianta o bispo para quem “esta é uma excelente forma de integrar”.

"As pessoas estão desejosas de voltar a encontrar-se”

“Portugal vai continuar a precisar, nos próximos 10 anos, de emigrantes", antevê, argumentando: "Não é possível às fábricas continuam a fazer o que fazem e os campos a produzirem o que produzem sem haver mais emigrantes, Portugal tem que se preparar para receber cada vez mais estrangeiros."

Na perspetiva de D, José, “esta é uma necessidade para a qual também temos de estar culturalmente preparados, sobretudo para o acolhimento, para o diálogo, para a integração”, porque “quanto melhor nos relacionarmos, melhor será a sociedade”.

“É fundamental evitar guetos ou grupos culturais separados, comunidades separadas", afirma D. José Traquina, advertindo para a atenção que tem de ser dada para que “se evite a entrada em Portugal de muitas pessoas que chegam por meios ilegais”.

Lição n.º 4: “Os lares funcionaram muito bem”

“Nos lares de idosos, morreram em Portugal 23 por cento do total de idosos vítimas da pandemia”, avança o presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade.

Este número representa “metade dos valores que se registaram, por exemplo, em França, na Irlanda ou na Noruega”.

“Não sejamos pessimistas”, apela, " pois os lares funcionam muito bem e fizeram um cuidado notável de segurança”.

“Claro que houve casos mais problemáticos, mais difíceis, mas os lares de idosos em Portugal fizeram um trabalho muito rigoroso para defender as pessoas e, nesse aspeto, é de salientar que muitos funcionários trabalhavam de dia e noite, 15 dias seguidos, para não haver mudança de funcionários na casa para assegurar a defesa da vida dos idosos que lá estavam”, remata D. José Traquina.

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