08 abr, 2021 - 06:30 • Joana Gonçalves
Durante uma hora, atravessava a zona histórica de Lisboa, com passagem obrigatória pelo Castelo de São Jorge. Pelo retrovisor via os turistas, que, na parte de trás do tuk-tuk fotografavam a cidade e ouviam, com atenção moderada, a história do passado e presente de cada construção. Era Raquel Nascimento quem conduzia a conversa e transportava os passageiros. Há um ano a viagem parou, com a chegada da pandemia que paralisou o país e o mundo.
Licenciada em gestão hoteleira, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Raquel viu neste setor “uma área com potencial de crescimento”.
“Quando acabei o curso, fui para a Disney, estive seis meses num estágio em Orlando, na Flórida. Depois, trabalhei muitos anos em hotéis, nos Pestana Palace: Cascais, Sintra e, também, no Algarve”.
Em 2016, Raquel abandonou os hotéis e dedicou-se aos passeios turísticos, por Lisboa, Sintra e, “às vezes”, Comporta e Fátima. “Tenho um tuk-tuk pequenino, ainda a gasolina, mas também estava a trabalhar para outra empresa [na mesma área], com contrato e a descontar para a Segurança Social. Claro que isto com a pandemia mudou tudo”, desabafa.
Há um ano que aguarda o fim definitivo do confinamento e o regresso ao trabalho - ao que deixou ou qualquer outro que lhe permita voltar a “ganhar estabilidade”.
Nos últimos meses, Raquel arregaçou as mangas e trabalhou como estafeta da Glovo, a entregar refeições ao domicílio, e foi a dezenas de entrevistas de emprego. A espera roubou-lhe parte da esperança.
“Acho que vamos andar sempre nisto. Enquanto não atingirmos a imunidade de grupo, através da vacinação, acho que vamos andar neste abre e fecha constante”, afirma Raquel Nascimento.
Entre julho e meados de outubro conseguiu retomar a atividade, a meio gás e, sobretudo, graças ao turismo nacional. Ainda assim, para Raquel o último ano foi perdido. O valor que recebe da Segurança Social, através do apoio extraordinário à retoma progressiva de atividade a que aderiu a empresa com quem tem contrato, “só dá para ir uma vez ou duas ao supermercado e acaba”.
"A grande ilusão é acreditar que, porque estamos em estado de emergência, não se corta a luz, ou os senhorios não expulsam as pessoas ou os bancos não nos tiram as casas. Isso é mentira."
A licenciada em gestão hoteleira lamenta a situação em que se encontra há meses, mas sabe que era impossível prever este cenário. Em fevereiro de 2019, Raquel comprou a casa onde vive atualmente, em Oeiras, junto ao Parque dos Poetas. Precisamente dois anos depois, em fevereiro de 2021, a perspetiva do fim das moratórias empurrou-a para o primeiro pedido de ajuda. A Cáritas respondeu ao apelo.
“Foi no final de fevereiro deste ano que pedi ajuda à Cáritas pela primeira vez, porque foi quando comecei a ver na televisão que as moratórias terminavam no dia 31 de março. Já estávamos quase no final de fevereiro e eu pensei: 'o pouco dinheiro que conseguir, tenho que o poupar para depois pagar a prestação'”, conta.
Em março, recebeu uma carta do banco a confirmar que, no dia 2 de abril, teria de retomar o pagamento dos juros, quanto ao capital está previsto para final de setembro. “Sinceramente, pedi o dinheiro à minha mãe. Não tenho dinheiro”, adianta Raquel. “Tenho 36 anos, eu é que devia dar dinheiro aos meus pais. Eu é que devia estar a ajudá-los”, acrescenta.
Com o valor que recebe da Segurança Social conseguiria pagar os juros, mas sobreviver com os 40 euros que lhe sobram é um exercício de ficção. “Querem que eu fique em casa, sem trabalhar, mas ao mesmo tempo que mantenha as minhas obrigações? Isto é uma verdadeira cultura do medo. Eu já não tenho medo do vírus, tenho medo de perder a casa”, diz, com visível revolta.
O apoio da Cáritas traduziu-se em cabazes de alimentação, vales de supermercado e o pagamento de duas faturas de energia. Só assim conseguiu evitar o que enfrentou em novembro, quando lhe cortaram o gás.
“A grande ilusão é acreditar que, porque estamos em estado de emergência, não se corta a luz, ou os senhorios não expulsam as pessoas ou os bancos não nos tiram as casas. Isso é mentira. É verdade que há um diálogo, mas a sensibilidade dura um mês ou dois. Chega um ponto em que temos de pagar e estamos há um ano em pandemia”, desabafa.
O fim das primeiras moratórias abrange mais 120 mil famílias que, este mês, recomeçam a pagar o crédito à habitação, num valor de empréstimos de 3,7 mil milhões de euros.
Para Raquel, “o Estado não está a cumprir o seu papel de nos proteger”. “Ou acabam com o estado de emergência e deixam as pessoas trabalhar, ou o Estado deve pagar integralmente para as pessoas terem um teto para cumprir o confinamento. Não deviam levantar as moratórias, pelo menos para o crédito à habitação, enquanto não levantarem o estado de emergência”, apela.
Esta não é a primeira vez que Raquel enfrenta uma crise que a atira para um limbo. Em 2009 a família atravessou um período igualmente mau. “Tanto eu como a minha família sofremos muito. Por isso, parece que já temos um mestrado em gestão de crise. Não estava à espera de uma coisa destas, mas sinto que já é a segunda vez na minha vida que estou a passar por um momento de crise de sobrevivência”.
A experiência ensinou-a a estabelecer prioridades. Hoje lamenta que “o Governo não tenha aprendido nenhuma lição”. Apesar do momento difícil que atravessa e sem a certeza de que conseguirá cumprir todas as obrigações, Raquel recusa atirar o pano ao chão.
“Eu estou com muita fé. Tenho fé que vem o verão e vamos conseguir vacinar mais pessoas. Já aguentámos tanto, vamos conseguir aguentar. Agora, precisamos do turismo. Não digo isto por trabalhar no setor, o país precisa do turismo”.
A segunda fase de desconfinamento arrancou esta segunda-feira, mas com 19 concelhos de Portugal continental acima da linha vermelha definida pelo Governo, será feita uma reavaliação dentro de 15 dias, que poderá comprometer a reabertura nestes municípios e naqueles que o rodeiam.