31 mar, 2021 - 07:04 • Joana Gonçalves
No último ano, a Cáritas registou um aumento de 20% nos pedidos de ajuda. São mais de 20 mil portugueses que se viram obrigados a pedir este apoio. Das 10 mil pessoas abrangidas pelo programa “Inverter a curva da pobreza em Portugal”, cerca de 50% são famílias que recorreram a esta ajuda pela primeira vez. Mais de 60% pediram apoio para pagar a renda da casa.
Com o fim das moratórias bancárias, que terminam esta quarta-feira, a presidente da Cáritas Portuguesa antevê uma crise pior do que aquela que se viveu há dez anos. “Os primeiros indicadores são o duplo desemprego nos casais e isto tem sido poupado, também, pelo 'lay-off'. Foi isso que levou [na crise de 2008] à incapacidade de pagar as casas e à perda de habitações”, adianta.
Em fevereiro, o número de casais com ambos os elementos inscritos nos centros de emprego aumentou 29,5%, face ao mesmo mês do ano anterior. No último ano, o número de portugueses beneficiários de rendimento social de inserção registou, também, um acréscimo na ordem dos 10%. Apesar do ligeiro decréscimo registado entre setembro e novembro de 2020, desde dezembro que o indicador apresenta uma subida sustentada.
A este fator acresce a crise sanitária que atravessa o país. “A coisa mais fácil para as pessoas fazerem [de forma a combaterem a pandemia] é fecharem-se em casa. Se a casa está em risco…. Temos todos de estar muito atentos. Temos de lançar mão a estas famílias que precisam de ajuda”, alerta Rita Valadas.
Para a dirigente e, apesar de “esperar estar enganada”, o impacto do fim das moratórias “é aritmética simples”. “Se as pessoas têm vivido com dificuldades, apesar de terem moratórias que facilitam a sua vida económica, no momento em que essas moratórias terminarem e as pessoas tiverem de cumprir, com igual défice de rendimento, as obrigações que já tinham antes, é fácil de ver que não vai ser possível”, defende.
Nesta “crise democrática”, encontramos portugueses que aproveitaram o “boom” do turismo e da restauração para investirem nos seus sonhos, muitas vezes "envolvendo a famílias”, e que, “de um dia para o outro”, se viram obrigadas a fechar portas.
“Estamos a falar de um ano nesta situação, em que algumas pessoas viveram na esperança do primeiro desconfinamento. Eu vi muitas baixarem os braços, quando o país fechou pela segunda vez. Agora ninguém confia que um desconfinamento possa ser o primeiro passo de uma retoma ou de uma solução”, afirma Rita Valadas.
No final de 2020 alertou para a "crise democrática" que o país atravessa. Como é que se combate uma crise desta natureza?
Esta é uma crise democrática, no sentido em que não faz distinção de coisíssima nenhuma. Não faz distinção de raças, de idades, de situação socioeconómica. Realmente afeta todos e neste momento, mais do que em dezembro, estamos muito conscientes disso, porque não sei se existe alguém em Portugal que não conheça ou não tenha tido próxima uma situação de um familiar infetado ou até falecido.
No que diz respeito à crise social, e eu disse em 2020 que esperava estar enganada, infelizmente, aquilo que nós temos pela frente é uma situação social que se agrava e que ainda não percebemos onde vai chegar, porque tudo vai depender das almofadas e dos apoios que o Estado for determinando e do tempo em que for possível fazer a retoma.
E depois a condição que as empresas tenham ou não para retomar a sua atividade. Disso vai depender o número de empregos gerados e dos que são extintos. É tudo um enorme desconhecimento. Nós não sabemos exatamente o que é que vai acontecer.
Claro que quando temos a situação do fim das moratórias pela frente, sabemos que isso vai fazer uma diferença muito grande, porque não há alteração da situação socioeconómica das famílias. Portanto, este esforço vai afetar de forma diferente as famílias que tenham mais ou menos recursos, mas vai trazer mais pessoas a precisar de ajuda.
"As moratórias protegem quem tem dívidas, mas a renda da casa também está em causa. A renda da água, a luz, o gás. São realmente indicadores que nos preocupam."
Acredita que o fim das moratórias vai empurrar mais famílias portuguesas para uma situação de pobreza?
Mais uma vez, eu gostava de estar enganada, mas é aritmética simples. Se as pessoas têm vivido com dificuldades, apesar de terem moratórias que facilitam a sua vida económica, no momento em que essas moratórias terminarem e as pessoas tiverem de cumprir, com igual défice de rendimento, as obrigações que já tinham antes, é fácil de ver que não vai ser possível.
Se nós assistimos já a um aumento do número de pessoas que recorrem à Cáritas, um aumento do número de pessoas beneficiárias do rendimento social de inserção, um aumento brutal no último mês do número de desempregados, e se juntarmos a isto a necessidade de cumprir obrigações financeiras, nós vamos ter de olhar muito atentamente para o que está à nossa volta, porque para além das pessoas que vão recorrer naturalmente a nós, temos ainda um conjunto de pessoas que não conhecendo os apoios de que podem vir a beneficiar, não recorrem aos serviços, até por pudor.
São pessoas que não estão neste circuito, que nunca tiveram de pedir, sempre resolveram a sua situação. E essas pessoas vão também precisar de ajuda.
E qual é o maior obstáculo que identificam, no momento de prestar auxílio a famílias que nunca imaginaram ver-se numa situação em que são incapazes de garantir o seu próprio sustento?
Há duas coisas muito importantes. Primeiro, estar muito atento e perceber o que se passa na proximidade. Esta pandemia trouxe-nos uma atenção a quem está mais próximo. Todos confinados, acabámos por dar uma atenção aos nossos prédios, aos nossos vizinhos, aos nossos mais próximos, áquilo que se conversa numa escada, no comércio local. Esse papel da atenção próxima é importantíssimo para dar um alarme, dar um conselho, dar uma ajuda.
Depois, perceber que há aqui um espaço de informação que é muito importante e daí o papel da comunicação social ser essencial. Temos de dizer às pessoas que, naturalmente, estamos todos a tentar levar o barco a bom porto e existem alguns recursos na comunidade em que nós até podemos desempenhar um papel. Porque não é só o dinheiro que está em causa e nós podemos estar numa situação em que o dinheiro não abona, mas podemos eventualmente dar tempo ou dar outro tipo de contributo e não nos sentirmos numa situação tão difícil, se nos aproximarmos de outros que estão como nós, no mesmo caminho, a tentar encontrar soluções.
E depois a Cáritas tem encontrado algumas soluções que tem infelizmente utilizado em situações de crise. Já assim aconteceu na crise de 2008. Por exemplo, em vez de cabazes, que é uma coisa que do ponto de vista alimentar é comum acontecer, nós utilizamos vouchers para bens básicos, que são idênticos aos vulgares "tickets de restaurante", que muitas pessoas recebem como subsídio de almoço e que, portanto, podem ser utilizados em supermercados para poderem comprar os bens básicos, tornando menos complicada esta situação, do ponto de vista da autoestima e da promoção de repostas alternativas.
Nós não queremos que estas pessoas fiquem nessa situação. Portanto, tudo quanto sejam soluções de não dependência, de promoção das capacidades que ainda existem, nós temos que lançar mão de tudo.
Há pouco, referiu um aumento de pedidos de ajuda. Estamos a falar num aumento de que ordem? Quantas mais famílias recorreram à Cáritas nos últimos meses?
No último ano, os nossos atendimentos aumentaram de 100 mil para 120 mil e estou a falar de uma subavaliação, porque quando nós fazemos atendimento de proximidade nem todos utilizam o nosso sistema informático. Quando se está a ajudar alguém, a última coisa que quem está a conversar com uma pessoa está a pensar é em fazer o registo informático. Portanto, estou a falar de uma subavaliação daquilo que certamente acontece, em termos de número de atendimentos.
"Agora ninguém confia que um desconfinamento possa ser o primeiro passo de uma retoma ou de uma solução."
Uma coisa que me preocupa é que quando nós criámos o programa "Inverter a curva da pobreza em Portugal", que é uma campanha que era suposto ter terminado no final do ano mas que ainda mantemos, foram apoiadas cerca de 10 mil pessoas, que correspondem a perto de 3.600 famílias. Destas, mais de 1.700 são novas, não eram nossas conhecidas. Portanto, 50% das novas famílias são pessoas que não recorriam a este tipo de apoio. Eu acho isto muito preocupante.
No caso da campanha dos vouchers, o número de famílias aumentou muito. Por exemplo, nós apoiamos cerca de mil famílias com apoios de emergência.
Das pessoas que vieram ter connosco, e normalmente vêm numa perspetiva de subsistência, 63% pediram apoio para pagar a renda da casa. Portanto, as moratórias protegem quem tem dívidas, mas a renda da casa também está em causa. A renda da água, a luz, o gás. São realmente indicadores que nos preocupam. Temos de ter uma perspetiva de conjunto, porque neste momento não há quem sozinho consiga resolver e apoiar esta situações.
Fazer comparações é sempre arriscado, mas referiu a crise de 2008 e a verdade é que a Cáritas desempenhou um papel fundamental, na altura, no apoio às famílias e no combate à pobreza. A crise que vivemos hoje supera aquela que enfrentámos há uma década?
Eu acho que sim. Há uma diferença logo muito clara entre as duas crises. Esta é uma crise de saúde, com consequência na economia, mas que fechou a economia, ao contrário da situação anterior. Na situação anterior a economia teve situações muito críticas, mas não fechou.
A forma mais fácil das pessoas perceberem é lembrar que nós estávamos num "boom" do turismo e da restauração. Quem viva desses rendimentos tinha imensos sonhos, investiu imenso, empenhou-se para poder ter uma solução que garantia o futuro da família e de repente, de um dia para o outro, tiveram de fechar. Com stocks, com encomendas, com tudo. Estas pessoas, de um dia para o outro, passaram de ter uma perspetiva de vida cor de rosa e de repente ficam sem hipótese de fazer nada.
Se nos colocarmos nesta situação, de que a minha perspetiva de vida era esta, eu envolvi até a minha família para isto acontecer, e agora não pode acontecer e ainda por cima há uma questão de saúde, percebemos a dimensão do problema.
A questão de saúde provocou esta situação económica e a situação económica vai provocar uma crise social. Há pessoas que saltaram logo da situação de saúde para a crise social, porque ficaram desempregadas, assim de repente.
Os primeiros pedidos que recebemos foram, precisamente, de pessoas desta área, com negócios ligados ao turismo, com muitas dívidas. A retoma dessas situações vai ser muito difícil.
Pelo trabalho que desenvolvem no terreno, como é que estas famílias encaram agora o futuro? Isto é, muitas delas desistem de retomar estes sonhos?
Estamos a falar de um ano nesta situação, em que algumas pessoas viveram na esperança do primeiro desconfinamento. Eu vi muitas baixarem os braços quando o país fechou pela segunda vez. Agora ninguém confia que um desconfinamento possa ser o primeiro passo de uma retoma ou de uma solução. Há claramente pessoas que não vão conseguir retomar este negócio.
Aquilo que é o meu desejo mais profundo é que estas pessoas não desistam, porque estas pessoas não podem vir engrossar a pobreza. Quando as pessoas me falam em novos pobres, não são novos pobres. São pessoas que passaram por uma crise na sua vida e que eu tenho esperança que, aquilo que as levou a encontrar o caminho deste sonho, possa levá-los a encontrar um caminho alternativo, uma nova solução.
"Um dos primeiros indicadores de uma potencial crise é o duplo desemprego nos casais. Foi isso que levou à incapacidade de pagar as casas, perda de habitações."
É esse o caminho que nós vamos ter de apoiar, para que eles não venham engrossar a situação da pobreza em Portugal. Eu não quero acreditar, nem acho que seja bom, também baixarmos os braços e chamarmos a estas pessoas pobres. Acho que todos nós temos de fazer o papel contrário e dizer, "tu foste capaz disto, tu tiveste um rasgo de sonho e os sonhos são-nos permitidos a vida toda".
A forma de nos mantermos vivos e à tona da água é termos projetos até morrer. E essas pessoas têm claramente uma capacidade própria, superior às outras pessoas, conseguiram fazer do seu sonho o seu modo de vida.
Portanto, eu tenho de acreditar que ainda vamos ser capazes de usar toda esta energia, destas pessoas que são muito competentes, para garantir que elas próprias vão ser palco da sua solução de vida.
A partir das 20 Cáritas diocesanas do país, foi possível identificar alguma disparidade entre regiões, isto é, alguma região particularmente afetada por esta crise?
Começam agora a existir os primeiros indicadores económicos. As diferenças que existem nas Cáritas diocesanas não são propriamente porque a situação naquela diocese é pior do que nas outras, mas pelos recursos que conseguimos angariar e pelas capacidades que as Cáritas diocesanas têm.
Há situações em que há muitos mais pedidos e há situações em que há Cáritas diocesanas com muito mais dificuldade. Uma coisa não tem obrigatoriamente a ver com a outra. Portanto, eu acho que seria danoso da minha parte estar agora a fazer essa extrapolação. Mas na semana passada ouvi uma coisa que me fez soar todas as campainhas, porque foi isto que em maio de 2008 levou o Conselho Geral da Cáritas a fazer um alerta sobre a crise que se aproximava.
Lembro-me do que aconteceu e um dos primeiros indicadores de uma potencial crise é o duplo desemprego nos casais. Isto tem sido poupado, também, pelo "lay-off". O "lay-off" não nos dá clareza em relação às empresas que vão ou não conseguir fazer a retoma. É uma espécie de proteção que existe neste momento. Mas o facto de começarmos a falar em duplo desemprego na famílias, para mim foi um alarme que me fez pensar "Ora bolas, outra vez não!".
"A quantas mais pessoas conseguirmos chegar, melhor é o exército das pessoas que podem lançar mão a alguém. E às vezes não é preciso ter muito dinheiro, é preciso estar muito atento. "
Quando uma família tem uma pessoa desempregada, já é muito difícil. Se ficam os dois membros de um casal, de uma família, desempregados, eu nem quero imaginar. Foi isso que levou à incapacidade de pagar as casas, perda de habitações. Portanto, nós ainda não temos indicadores, mas temos sinais de que temos de estar alerta. Ainda por cima, as pessoas não podem sair de casa, estão confinadas e mesmo que pudessem pensar numa solução, é muito difícil. Os serviços são feitos por marcação, as coisas estão muito distantes.
A coisa mais fácil para as pessoas fazerem [de forma a combaterem a pandemia] é fecharem-se em casa. Se a casa está em risco... nem tenho palavras para dizer isto. Temos todos de estar muito atentos. Temos de lançar mão a estas famílias que precisam de ajuda.
Porque a verdade é que uma família que perca a casa, fica também suscetível, para além da pobreza iminente, à crise sanitária que enfrentamos.
Vamos todos fazer a nossa parte. Eu nunca deixarei de responder a quem me peça para falar sobre essa situação, porque a quantas mais pessoas conseguirmos chegar, melhor é o exército das pessoas que podem lançar mão a alguém.
E às vezes não é preciso ter muito dinheiro, é preciso estar muito atento. E, por isso, somos todos parte deste processo.
Esta é também uma crise de solidariedade? Ou, pelo contrário, os portugueses, nesta altura difícil, surpreenderam e têm apoiado e aderido às campanhas de angariação de fundos, por exemplo?
Eu não acho que seja uma crise de solidariedade. E quanto mais falarmos nisto mais essa situação acontece. Naturalmente, este ano quando se pôs a questão de não podermos fazer o peditório nacional, que é um peditório de rua - e há Cáritas diocesanas que vivem desses rendimentos - tivemos algum receio. Mas a resposta que recebemos à campanha de comunicação que se fez nessa semana foi muito positiva.
Os donativos não têm sido só pontuais. Há um movimento. As empresas com quem falamos disseram-nos em muitas situações, "Nós queremos participar. Digam-nos como". Senti isso com muita gente. Pessoas que disseram "nós queremos ajudar, digam-nos como pode ser feito". São é movimentos diferentes.
Eu acho que a atenção que esta situação pandémica fez as famílias ter, também por perceberem que isto pode atacar qualquer um, fez com que não se verificasse uma diminuição do apoio. Acho que as pessoas estão mais conscientes, estão também com mais dificuldades, muitas gostariam de poder apoiar e não podem, mas o importante é que as pessoas percebam que o pouco que seja, seja apoio financeiro ou tempo dedicado, pode ser a solução na vida de uma família.
Não desvalorizem a importância que pode ter o pequenino papel que possam desempenhar na ajuda a alguém. Continuamos a ter apoios e as pessoas procuram-nos para saber como podem apoiar.
O confinamento não nos permite apoiar com a proximidade que gostaríamos, mas há qualquer coisa que eu acho que é mais importante até do que largar uma moeda numa caixa e dizer "pronto, já está". Neste momento, o movimento é mais consistente e as pessoas estão mais atentas. E nós estamos disponíveis para qualquer pergunta que nos queiram fazer.
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