Dia Mundial do Cancro

Covid-19. “Há um pânico generalizado nas famílias que têm filhos com cancro”

04 fev, 2021 - 06:46 • João Carlos Malta

Está a haver um atraso nos diagnósticos na pediatria oncológica. Pais estão mais reticentes em responder aos primeiros sinais. A situação pode ter consequências ao nível dos tratamentos e da saúde da criança. Ainda assim, especialistas falam de um setor da saúde que é “uma bolha de privilégio” no contexto pandémico.

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Algumas crianças com cancro estão a ter diagnósticos tardios, porque há receio das famílias em fazer deslocações a hospitais e a centros de saúde, durante os 11 meses que pandemia da Covid-19 já leva em Portugal. Há também tratamentos a serem atrasados e, ainda que de forma muito residual, também as cirurgias estão a ser afetadas. O impacto global na vida destes meninos só se conhecerá daqui a alguns anos, dizem os especialistas.

Garantido, segundo os médicos, é que já hoje se verifica um défice ainda maior de socialização num grupo de crianças que já em situações normais está, muitas vezes, isolado. Calcula-se que em Portugal haja cerca de 800 menores a fazerem tratamentos oncológicos.

Margarida Cruz, diretora-geral da Acreditar, associação que acompanha as crianças com doença oncológica, faz à Renascença um retrato do que se passa com as famílias destes doentes.


NÚMERO DE CASOS DÁRIOS DE COVID-19 EM PORTUGAL

É apavorador neste momento”, qualifica a responsável. Se numa circunstância normal, segundo Margarida Cruz, saber que um filho tem cancro “é o desabar de tudo para um pai ou uma mãe, de todas as referências e de toda a sua vida”, neste momento, e com todo o medo que envolve a sociedade por causa da Covid-19, a diretora-geral da Acreditar garante que “há um pânico generalizado nas famílias que têm filhos com cancro”.

E explica porquê: “As pessoas têm um receio enorme de entrar num hospital, mesmo de hospitais que tratam só do cancro e onde estão protegidos. Têm um enorme pavor de entrar no serviço e de que o seu filho ou filha contraia a doença, porque nunca sabem o que vem aí”.

O medo, diz, “é apavorador”, e tem um impacto enorme nestas famílias. A tudo isto ainda se soma o “receio de que, a qualquer momento, haja suspensão de tratamentos ou de medicamentos”.

“Não estou a dizer que tenha havido, mas os pais entram em pânico a pensar: ‘Será que não haverá medicamentos?’ ‘Será que não vou fazer os tratamentos?’”, enumera.

Este sentimento das famílias tem consequências. Nuno Reis Farinha, médico oncologista pediátrico do Centro Hospitalar Universitário São João (CHUSJ) e presidente da Sociedade de Hematologia e Oncologia Pediátrica (SHOP) da Sociedade Portuguesa de Pediatria, avança à Renascença que na “consulta houve atrasos no diagnóstico por irem ao hospital mais tarde”.

E deixa um aviso: “As pessoas têm de perceber que a pandemia é uma coisa grave”, mas “não é tão grave nas crianças como nos adultos”. E mais: “As outras doenças continuam”.

“As pessoas têm de ter cada vez mais noção que têm de consultar os médicos quando há um sinal clínico que nos inquiete”, defende. E isso é, por exemplo, “uma criança que tem uma mancha no olho”.

“Na primeira vaga houve um atraso bastante notório de uma criança que tinha um tumor e demorou muito tempo a ir a uma consulta”, exemplifica.

Uma criança que tem febre prolongada, que tem mal-estar geral, acorda todos os dias a vomitar, ou que tem dores de cabeça matinais, segundo este médico, tem "de ser vista" por um especialista. "A saúde global tem de ser encarada como era anteriormente, e não podemos atrasar a avaliação do tratamento das situações”, apela o médico.

O mesmo especialista garante que a probabilidade de alguém se contaminar quando vem à consulta de oncologia pediátrica não se pode dizer que “é nula”, “mas é muito baixa”.

Grande preocupação

A diretora-geral da Acreditar afirma que a questão do diagnóstico é mesmo “a nossa maior preocupação”, porque sabemos que, “se isso não estiver a acontecer, as crianças vão chegar tarde e o prognóstico será sempre necessariamente pior, ou terão de fazer tratamentos que são mais agressivos, e essa agressividade terá reflexos na sobrevivência”.

“Sabemos que cerca de metade de todos os sobreviventes de cancro pediátrico tem algum tipo de sequelas e, desse grupo, dois terços têm sequelas que são graves. Essa é a nossa grande preocupação”, sintetiza Margarida Cruz.

Há outros impactos da pandemia sobre estas crianças e Nuno Reis Farinha destaca os tratamentos. Alguns estão a ser adiados em crianças que tiveram testes positivos de Covid-19. No entanto, o especialista, garante que esta situação não é inédita. As crianças com cancro são bastante imunodeprimidas, o que faz com que não raras vezes a data da quimioterapia ou da radioterapia tenha de ser alterada.

O médico especialista salienta, todavia, que nos doentes oncológicos não se devem "atrasar os tratamentos”, e que em alguns casos graves “isso tem repercussões”.

Quais? Isso o presidente da SHOP diz que não é possível dizer. “Relativamente ao impacto global, tenho esperança que não seja muito grande, mas temos de esperar para ver”. E dificilmente no futuro será possível avaliar, isto porque “não vamos poder comparar um grupo que teve Covid com o grupo que não teve a doença”.

Cirurgias não estão ser muito afetadas

Em relação a cirurgias, os especialistas ouvidos pela Renascença garantem que houve alguns adiamentos, mas qualificam-nos de pontuais, e sem expressão.

A cirurgia oncológica pediátrica foi considerada prioritária e eu penso que não tenha havido mais do que um caso ou outro”, remata Reis Farinha.

A diretora da Pediatria do IPO de Lisboa − o maior dos quatro centros de referência de cancro infantil do país −, Filomena Pereira, assegura que dos 400 doentes que segue, apenas nove tiveram testes positivos ao novo coronavírus. E garante que ninguém naquele local “suspendeu tratamentos”.

Em relação às consultas, num universo de mais de nove mil, somente 250 foram feitas através de contatos por telefone. “É residual”, afiança a médica.

Mesmo em relação a atrasos nos tratamentos, assegura que naquele centro apenas em seis casos isso aconteceu durante este período de pandemia. E mesmo esse tempo a mais na marcação, garante, não teve consequências no tratamento às crianças.

Os números levam-na a dizer que esta área da saúde vive numa “bolha de privilégio”. Onde sente mais diferença, entre o antes e o agora, é na “tristeza” que há dentro do edifício.

“As nossas zonas de tratamento e de ambulatório foram sempre locais com uma componente lúdica muito grande. O serviço era como uma extensão da casa ou da escola. Neste momento, temos corredores vazios, temos salas com brinquedos a conta gotas, e miúdos que não socializam”, ilustra.

Famílias com menos apoio

As medidas de confinamento e de precaução para travar a evolução da pandemia também tiveram impacto no trabalho da Acreditar. A associação teve de sair, logo em março, dos centros de referência de tratamento da doença, locais em que estabelecia o contato com os pais que ali entram com diagnóstico de cancro dos filhos, acompanhando também os tratamentos das crianças.

“Estas famílias não estão a ter o mesmo acompanhamento que tinham do ponto de vista emocional e psicológico”, garante Margarida Cruz, que explica que, neste momento, a associação tem cerca de 600 voluntários que estão em casa.

“Estamos muito preocupados com o tipo de acompanhamento e, sobretudo, com a saúde emocional e psicológica, quer destas crianças, quer destas famílias”, refere.

E a vacinação?

Por fim, e em relação ao tema da vacinação deste grupo, as opiniões dos médicos ouvidos pela Renascença são unânimes. Não se deve vacinar estas crianças.

A diretora da Pediatria do IPO de Lisboa diz que as vacinas em crianças que começam a fazer o tratamento ao cancro “são suspensas”, e só se aplicam “em situações de emergência”.

Tratam-se de doentes com defesas baixas, e os efeitos secundários podem ter uma relevância “mais importante”. “Como a resposta imunológica está diminuída a eficácia não seria a mesma”, acrescenta. Por isso, “não se pode defender vacinação neste grupo”.

A estes argumentos acresce, segundo o presidente da Sociedade de Hematologia e Oncologia Pediátrica, Nuno Farinha Rodrigues, que a vacinação não foi tentada em crianças. “Isso seria dar um passo maior do que as nossas capacidades”, remata.

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