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Entrevista

​ONU preparada para entrar em 72 horas em territórios recuperados pela Ucrânia

16 mar, 2023 - 23:31 • José Pedro Frazão , enviado da Renascença à Ucrânia

Porta-voz das Nações Unidas, Saviano Abreu, explica em entrevista à Renascença o trabalho desenvolvido pela organização no domínio humanitário, o papel da ONU na recuperação da economia e também sobre o desaparecimento de crianças ucranianas.

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Os funcionários das Nações Unidas ainda trabalham nos territórios controlados pela Rússia, mas com muitas dificuldades. A revelação é feita à Renascença pelo porta-voz das Nações Unidas em Kiev, capital da Ucrânia.

Nesta entrevista, Saviano Abreu explica ainda o trabalho desenvolvido pela organização no domínio humanitário, o papel da ONU na recuperação da economia e também sobre o desaparecimento de crianças ucranianas.

A chegada da Primavera significa uma mudança na estratégia de ação das Nações Unidas na Ucrânia?

Com o fim do Inverno vamos precisar de focar mais o nosso trabalho na ajuda às pessoas que estão mais próximas da frente de batalha. Durante o Inverno, algumas das nossas grandes preocupações estiveram já nessas zonas. São milhões de pessoas sem acesso a serviços básicos, de água, eletricidade, aquecimento. Temos agora capacidade de aumentar essa resposta nessas áreas do país onde a situação é mais dramática e onde as necessidades humanitárias são mais urgentes.

Para além da ajuda alimentar, que projetos têm as Nações Unidas na área da economia ucraniana?

A parte da reconstrução e de recuperação da economia ainda é incipiente. Estamos a trabalhar com o Governo em projetos sobretudo em áreas onde os ataques diminuíram ou onde a situação humanitária não é tão urgente como antes. Não chegámos ainda a esse ponto nas áreas próximas das frentes de batalha.

Dentro das nossas necessidades, uma das nossas estratégias passa por ajudas em dinheiro em vez de levar alimentos ou água. Isso também ajuda a economia. No ano passado, chegámos a mais de seis milhões de pessoas aqui na Ucrânia com ajudas em dinheiro. Faz parte de uma estratégia para recuperar a economia, mas isso não é possível nalgumas regiões do país, onde os mercados estão destruídos e onde não há serviços básicos. Nesses casos é impossível chegar às populações só com dinheiro porque não têm onde usar localmente.

Quantos milhões de pessoas recebem neste momento ajuda alimentar das Nações Unidas?

Em 2022, chegámos a mais de 12 milhões de pessoas aqui na Ucrânia com ajuda alimentar. Ajudámos também com sistemas médicos a quase 10 milhões de pessoas. No total, juntando todas as organizações humanitárias, a ONU e todas as associações locais com quem trabalhamos, chegámos a quase 16 milhões de pessoas com ajuda humanitária.

Quando estivemos na zona da frente vimos muitas lonas azuis do ACNUR protegendo de alguma forma casas destruídas. As pessoas estão a tentar montar telhados nas casas. A ONU vai ajudar a reconstruir essas casas com materiais como madeira?

Já estamos a ajudar as pessoas a reconstruir casas com outros materiais. A lona talvez seja o material mais fácil para fazer face à urgência de tapar uma janela destruída pelos estilhaços de um bombardeamento. Mas já desde o ano passado começámos a prestar outro tipo de ajuda para conseguir colocar telhados e tapar portas e janelas com madeira.

A nossa ajuda humanitária é de emergência, não estamos a reconstruir as casas para ficarem como antes. Há uma outra parte da ONU, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que está a fazer um estudo para determinar essas necessidades. No nosso trabalho humanitário é mesmo para fazer com que as pessoas tenham as condições mínimas para enfrentar o Inverno sem correr riscos.

Há vilas inteiras destruídas perto da frente de batalha nas regiões de Kherson, Donetsk e Kharkiv. Muitas vezes a nossa capacidade não nos permite reconstruir tudo isso de uma vez. O que fazemos é estabelecer centros para essas pessoas que estão deslocadas poderem sobreviver até que a reconstrução comece.

Essa ajuda inclui a distribuição de água e de geradores de emergência?

O nosso trabalho, desde outubro, até agora foi trazer ajuda urgente para fazer frente à crise energética que tínhamos aqui na Ucrânia. A infraestrutura energética foi bombardeada nesse período, causando uma crise energética brutal numa altura em que estávamos no meio do Inverno.

A ONU e os seus parceiros compraram cerca de 4.000 geradores para conseguir que os serviços mais básicos funcionassem. Hospitais, escolas ou bombas de fornecimento de água não podem funcionar sem eletricidade. O nosso trabalho foi fazer essa compra e doação de geradores ao Governo ucraniano.

Parecia que a crise energética tinha passado, mas, no passado dia 9, vimos que essa realidade não é estável, com várias cidades e regiões da Ucrânia novamente bombardeadas, afetando as infraestruturas energéticas. Isso tem grandes consequências para a população civil. Por isso o trabalho de distribuição de geradores vai continuar à medida que seja necessário.

Há cidades na Ucrânia que ficaram sem água potável desde o início da guerra. Mykolaiv, com meio milhão de pessoas, é um desses casos em que metade fugiu e outra metade está lá, sem água potável desde o começo da guerra. O Governo ucraniano fez o possível para recuperar o sistema, com a nossa ajuda, mas não funciona porque parte da infraestrutura tem áreas sob controlo da Rússia onde não podemos chegar. Há várias localidades perto da linha da frente que estão a sofrer com a mesma situação. Do outro lado, a cidade de Donetsk, que está sob controlo da Federação Russa, não tem água potável de maneira regular. As pessoas conseguem tirar água da torneira duas vezes por semana. Isso traz grandes riscos para a saúde das pessoas.

Quão próxima está a ONU de locais em batalha como Bakhmut ou Donetsk?

Temos ainda trabalhadores na cidade de Donetsk. O nosso trabalho em qualquer área que está sob controlo da Federação Russa é muito limitado. Não temos acesso nem garantias necessárias de segurança para trabalhar nessas zonas, mas estamos com funcionários da ONU e organizações parceiras.

Em Bakhmut não temos presença e a maioria dos pequenos grupos voluntários que estão a fazer um trabalho primordial para ajudar as suas comunidades ficaram muito reduzidos e limitados em Bakhmut. Temos respostas na zona com produtos mandados pelos nossos parceiros do ACNUR, da Unicef e outras agências da ONU. A segurança não está garantida e inclusive os grupos de voluntários estão a sair. A situação é mesmo desesperante.

Há um ano, uma das preocupações era a retirada da população em comboios de evacuação. Ainda há pessoas do lado ocupado pela Rússia a pedirem ajuda para sair?

O movimento de pessoas nunca parou. Desde o início do conflito em 2014 sempre tivemos pessoas a sair e a fugir em todas as direções. Vão para a Ucrânia, para a Rússia, um pouco para todos os lados. Temos cerca de 5,5 milhões de deslocados internos na Ucrânia. É um recorde mundial no número de deslocados internos. Bakhmut é um exemplo, mas não é o único.

Há muita gente a tentar fugir, sofrendo de obstáculos muito graves para a sua liberdade de movimentos. Conversámos com as partes para que elas permitam que esse movimento seja feito de uma forma segura. Não podemos dizer que todas as pessoas dessas áreas saem da forma segura como devia acontecer. Os movimentos continuam e é um direito que as pessoas têm, de velar pela segurança delas para que saiam dessas áreas.

A ONU organiza esses corredores?

De acordo com o Direito Internacional Humanitário, a obrigação de garantir a segurança para que as pessoas possam sair das áreas que estão a sofrer bombardeamentos é das partes envolvidas na guerra, principalmente da parte que tem o controlo da localidade naquele momento.

Quando é preciso abrir uma operação maior, nós entramos como fizemos em Azovstal, onde houve um acordo entre as partes que permitiram a abertura de um corredor para que pudessem fazer a evacuação. As duas partes pediram o nosso apoio para garantir que tudo fosse feito de uma forma segura e de acordo com a lei.

Os trabalhadores da ONU sofrem ameaças no terreno no território sob controlo russo?

Temos limitações para o nosso trabalho nos territórios que estão sob controlo da Federação Russa. Não temos garantias de segurança, os movimentos são controlados. Temos muitos impedimentos e torna-se muito complicado trabalhar. As consequências disso são o sofrimento da população. Dos 16 milhões de pessoas que receberam ajuda alimentar no ano passado na Ucrânia, pouco mais de um milhão estava nessas áreas que estão sob controlo da Federação Russa. Não é suficiente.

O nosso trabalho teria de ser muito maior. Vemos o sofrimento muito próximo da frente de batalha aqui na Ucrânia e estamos convencidos que a cinco quilómetros dali, do outro lado dessa linha imaginária, mas muito real a separar os dois lados, a situação não é diferente. É tão grave como do lado de cá. E não temos capacidade para responder a isso. É uma situação grave que não deveria acontecer.

Um ano depois do início da guerra qual é a vossa prioridade em relação às crianças?

A guerra fez com que milhões e milhões de crianças não tivessem garantias de continuar a sua educação. Mais de cinco milhões de crianças estão aqui no país precisam de algum tipo de apoio para que isso continue. E há também o trauma que isso gera nas crianças.

Imagine o que é viver, dia sim dia não, a correr para os refúgios subterrâneos onde passam horas. Há crianças na Ucrânia que já falam de bombas como algo natural, conseguem diferenciar os tipos de armamento que está a ser usado. Isso não é normal. O trauma que cria é muito grande e gera um impacto no desenvolvimento dessas crianças e na capacidade de ir estudar para a escola.

A educação não está garantida aqui na Ucrânia para todas as crianças, por causa da energia elétrica. Quando falha a energia, não há capacidade de fazer a aula online. Um terço das crianças não voltou às escolas por causa desses empecilhos. O nosso trabalho é tentar que isso não seja assim, que não tenhamos uma geração perdida e de crianças que não possam ir à escola.

A Unicef e outras organizações parceiras estão a fazer com que as escolas estejam preparadas, para que tenham abrigos subterrâneos para que as aulas possam continuar mesmo que sejam bombardeadas, produzir materiais que foram perdidos, preparar professores para lidar com essa situação.

Os professores estão sob uma pressão brutal neste momento e é preciso prepará-los mentalmente e inclusive para ajudar psicologicamente as crianças que estão a voltar para as escolas. O nosso trabalho é garantir que a educação continue e que essas crianças estejam protegidas. Não há lugar melhor para proteger as crianças do que ir para a escola.

Qual é a intervenção da ONU na delicada questão das crianças desaparecidas?

É um tema muito complicado, sensível e doloroso para a população ucraniana. O Governo trouxe o tema ao nosso conhecimento. Não temos a informação necessária para determinar o que está a acontecer e qual o número de crianças. Fizemos um compromisso com o Governo da Ucrânia.

O alto-comissário para os refugiados esteve aqui em Kiev e, numa conversa com o Presidente Zelensky, garantiu que a ONU vai fazer o possível para, pelo menos, determinar o que está a acontecer, quem são essas crianças, quantas são, onde estão. Isto para que se possa garantir a segurança e o bem-estar delas. Esse trabalho está a começar e não posso dar mais detalhes. É muito sensível . O nosso compromisso é trabalhar com os dois lados, Ucrânia e Rússia, para determinar qual é a situação e o estado dessas crianças e, se for o caso, trazê-las de volta .

A ONU tem alguma intervenção no processo de troca de prisioneiros de guerra?

Nós não temos mandato na troca de prisioneiros de guerra. Não é um mandato da ONU, mas dos nossos colegas da Cruz Vermelha. Claro que apoiamos e fazemos com que prossiga com as vias necessárias, mas não é do nosso mandato. Deixamos o processo com quem sabe fazer bem como a Cruz Vermelha.

Há muitas instituições a trabalhar na ajuda humanitária. Há algum risco de duplicação da ajuda?

O nosso trabalho é justamente fazer com que a ajuda chegue a todas as pessoas que precisam, evitando duplicações . Somos mais de 650 organizações em todo o país e sentamo-nos à mesma mesa também com o Governo. Fazemos as nossas avaliações de forma independente, mas conferimos com o Governo os números de que dispõem.

Está tudo muito bem coordenado para determinar quantas pessoas precisam de ajuda - sabemos que são quase 18 milhões - onde elas estão e quais são as organizações que vão dar essa resposta. Temos um sistema com grupos de coordenação das respostas. Isto é um trabalho complementar ao do Governo que tem a primeira obrigação da resposta.

Uma das coisas diferentes que vemos em comparação com outras operações no mundo é a mobilização da sociedade civil e dos voluntários para conseguir levar ajuda a áreas que a população precisa. Eles são os primeiros a responder, na verdade nunca é a ONU, porque demora algumas semanas a colocar o sistema humanitário a funcionar. Trabalhamos com muitos grupos locais que estão presentes em muitas áreas onde não estamos. No ano passado disponibilizámos mais de 20 milhões de dólares a esses cerca de 300 grupos.

Os ucranianos reconquistaram vários territórios que estavam sob ocupação russa. A ONU segue logo atrás dos soldados quando o território é recapturado?

Quero enfatizar que a nossa obrigação seria prestar ajuda em qualquer lugar do território ucraniano, seja controlado pela Rússia ou pela Ucrânia. Sabemos que infelizmente essa não é uma realidade, não temos o acesso de que precisamos para ir a todas essas áreas.

No ano passado, quando as regiões de Kharkiv começaram a ser retomadas pelas forças ucranianas, e depois nas zonas de Kherson, Zaporizhia e Donetsk, começámos a entrar pouco depois dessas cidades serem retomadas para levar ajuda humanitária, pois a situação era e é ainda muito grave.

O nosso compromisso, para o qual estamos preparados, é conseguir entrar nessas áreas 72 horas depois das tropas ucranianas retomarem o poder. Não é uma operação tão fácil, porque na maioria dos casos são áreas completamente mimadas e ainda mais minadas com a retirada das tropas russas.

Precisamos de ajudar a população, mas também de zelar pela nossa segurança. Geralmente as tropas ucranianas entram, fazem esse processo de retirada de minas de pelo menos uma das rotas, para que os comboios humanitários possam passar e a nossa chegada acontece aproximadamente 72 horas depois da retirada.

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