RENASCENÇA NA UCRÂNIA

Bielorrussos ao lado da Ucrânia. "Só volto a casa com uma arma na mão"

23 fev, 2023 - 11:15 • José Pedro Frazão, enviado especial da Renascença à Ucrânia

Atravessaram a fronteira na ordem das centenas para ajudar os ucranianos na linha da frente. São voluntários que, de arma na mão, procuram derrotar dois regimes em solo ucraniano: o russo, de Putin, inimigo comum, para abater mais tarde o bielorrusso, de Lukashenko. Largaram famílias e empregos para combater uma luta de que estão certos que vão ganhar. Entre rotações no batalhão, a Renascença encontrou em Kiev soldados bielorrussos a ganhar força para o regresso ao Donbass, interessados em estender a luta também à Rússia.

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Lavitz já não tosse como há umas semanas. Uma pneumonia retirou-o da batalha de Bakhmut, obrigando-o a vir curá-la a Kiev. Está enquadrado num dos batalhões do regimento Kastus Kalinousku, composto por bielorrussos que combatem pela Ucrânia. São voluntários que se alistaram para travar duas batalhas em solo ucraniano.

"O meu país é a Bielorrússia e está ocupado pela Rússia. Ao libertar a Ucrânia também libertarei a Bielorrússia", diz-nos numa sala vazia nos subterrâneos de um edifício na capital ucraniana, que funciona como retaguarda logística do regimento. Embora integrado nas fileiras da Legião Internacional das Forças Armadas da Ucrânia, gozam de um grau de autonomia que lhes permite montar uma estrutura administrativa particular onde não falta sequer uma equipa de comunicação multimédia.

"Temos uma longa história com os nossos irmãos ucranianos, interligada de forma próxima. Juntos, lutámos contra os moscovitas, contra o império russo e agora contra a Rússia. Estamos agora a combater o nosso inimigo comum."

Plenamente curado, Lavitz prepara-se para regressar a Bakhmut, embarcando num comboio logo após esta entrevista. Todo o seu discurso assenta na plena confiança na vitória e nas fundadas razões para combater ao lado dos ucranianos. "Temos uma longa história com os nossos irmãos ucranianos, interligada de forma próxima. Juntos, lutámos contra os moscovitas, contra o império russo e agora contra a Rússia. Estamos agora a combater o nosso inimigo comum."

A argumentação é a mesma de soldado para soldado, todos apresentados por alcunhas. Se Lavitz honra a aldeia da família no nome, a seguir apresentam-nos o "Urso", um homem na casa dos cinquenta anos que assim era chamado nas casernas da Mongólia, quando ainda serviu a farda soviética.

"Temos um inimigo comum que é a Rússia. Mas prefiro falar também de um regime, do 'russismo', uma ideologia que nos recorda os nazis ou os fascistas de Itália", diz este paramédico, que trocou a profissão civil de condutor para passar a estar ao volante dos veículos médicos na linha da frente.

Das festas infantis às explosões de Bakhmut

Lavitz confessa ter saudades das crianças com quem trabalhou. Mostra-nos fotografias dos disfarces que usava nas festas infantis onde era animador. Torna-se estranho vê-lo depois na realidade, já fardado para combate, mas sempre alimentando um canal de YouTube onde conta as suas histórias e as comenta com o seu público. Não foi fácil chegar à linha da frente, nem sequer à fronteira ucraniana.

"Quando a guerra começou, estava na Polónia porque havia uma ameaça de ser preso devido aos protestos de 2020 na Bielorrússia. Quando cheguei à fronteira com a Ucrânia, fui recusado pelo meu passaporte bielorrusso. Mas acabei por entrar. Deram-me ajuda quando vim para a Ucrânia e eu ajudarei a Ucrânia da mesma forma."

"O regime de Lukashenko está atualmente sob ocupação russa. Os foguetes, caças e tanques vêm dali para a Ucrânia. Portanto, eu estou aqui para devolver à Ucrânia toda a ajuda que me deu", explica Lavitz, que teve poucos dias de formação, em março de 2022, antes de receber uma arma.

A primeira missão foi um assalto numa operação antitanque. Seguiram-se operações de monitorização de helicópteros russos e mais recentemente foi destacado para a divisão de morteiros na sua unidade, atualmente em Bakhmut.

Lavitz defende que é preciso levar o combate para o interior do território da Rússia e para isso são necessárias armas mais sofisticadas de longo alcance que atinjam solo russo. "Quando esses tontos sentirem isto no seu solo vão entender o que se passa aqui. Vimos mulheres e homens ucranianos, maridos e crianças que foram mortos no nosso território e as tropas russas ficaram plenamente satisfeitas com isso. Mas estou convencido que quando a guerra for para território russo, eles vão entender os sentimentos que isso provoca", avisa este bielorrusso, de partida para o leste da Ucrânia.

"Quando esses tontos sentirem isto no seu solo vão entender o que se passa aqui. Vimos mulheres e homens ucranianos, maridos e crianças que foram mortos no nosso território e as tropas russas ficaram plenamente satisfeitas com isso."

A ideia de levar a guerra para lá da fronteira parte do pressuposto de que a Rússia fatalmente virá tentar conquistar a Ucrânia. "Se os travarmos na Ucrânia, teremos apenas um armistício de cinco ou dez anos no máximo. Nessa altura poderá eclodir uma nova guerra", diz Lavitz, que saiu da Bielorrússia de candeias às avessas com o pai.

Avançar quando tudo pára

Já o "Urso" estava na Ucrânia quando tudo rebentou. Foi acordado pelas explosões de 24 de Fevereiro, meteu-se no carro e levou a mulher e filhos, todos ucranianos, à Polónia. Voltou a 7 de Março como voluntário e montou um esquema que impede que a família saiba onde está. Quando recebe um telefonema, não diz onde está. E quando não pode atender uma chamada, já tem um camarada de armas pronto a responder por si ao telefone, assegurando que está tudo bem.

Antes da guerra, "Urso" era condutor. Fez o curso de paramédico e agora conduz e trata feridos de guerra pelas frentes quentes da batalha na Ucrânia. "O mais difícil é conhecer pessoas e depois perdê-las, é a dor da perda", confessa este bielorrusso, que se foi especializando nas evacuações médicas em condições difíceis. Conta que o pior é mesmo ter um problema no veículo enquanto trata dos feridos.

"O mais difícil é conhecer pessoas e depois perdê-las, é a dor da perda."

Às vezes, os momentos complicados acabam bem e dão para recordar já com serenidade. "Uma vez, estávamos a transportar um soldado com uma ferida grave perto do coração. E enquanto íamos de carro, o coração dele parou e naquele momento também o veículo teve um problema e também deixou de trabalhar. Mas conseguimos completar todos os procedimentos médicos para o fazer voltar à vida. Pusemos o seu coração outra vez a funcionar e conseguimos fazer a evacuação para um lugar seguro. Ele recuperou e agora continua ao serviço", conta " Urso" com visível satisfação, em contraste com um olhar frio com que nos fita durante a entrevista.

Combater compatriotas

E a guerra está para durar ? "Não creio que vá continuar por mais um ano, mas estou certo de que a Rússia será derrotada. Se não derrotarmos agora a Rússia, os nossos descendentes vão ter que o fazer mais tarde. A missão é agora nossa, depois dos nossos ancestrais não o terem conseguido", responde Lavitz, confiante na queda simultânea de Vladimir Putin e de Alexander Lukashenko, que lidera o país há três décadas.

"Não creio que [a guerra] vá continuar por mais um ano, mas estou certo de que a Rússia será derrotada."

O presidente bielorrusso avisou nos últimos dias que o seu país responderá a qualquer provocação com origem na Ucrânia. Minsk permite a presença de tropas russas no seu território, tendo sido mesmo a fronteira de origem da coluna terrestre que tentou tomar Kiev há 12 meses.

Lavitz diz que qualquer palavra de Lukashenko é "uma mentira pura". Mesmo que o seu exército decida atacar a Ucrânia, esse será apenas um pretexto para estes combatentes defenderem a Ucrânia e lançarem uma operação de contraofensiva no território bielorrusso.

E tem problemas em disparar contra um compatriota bielorruso se tal for necessário? "Não, para mim eles não são cidadãos do meu país, são traidores", responde Lavitz lembrando que as forças militares e policiais dispararam contra manifestantes bielorrussos em 2020.

"Só voltarei à Bielorrússia com uma arma na minha mão."

As perguntas sucedem-se. Então o que se segue na contestação a Lukashenko dentro da Bielorrússia? O soldado do regimento Kastus Kalinouski insiste que, neste momento, "não existem recursos para resistir dessa forma". Alega que o regime de Minsk se preparou durante 28 anos para possíveis protestos, como os que aconteceram em 2020.

E se a ditadura cair, "a Rússia irá aproveitar essa oportunidade". Quanto a Lavitz, o caminho é simples e sem curvas: "só voltarei à Bielorrússia com uma arma na minha mão".

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