Presa pelos russos em Mariupol e grávida em cativeiro. Marina acredita na vida, mas não na paz

22 fev, 2023 - 07:13 • José Pedro Frazão enviado à Ucrânia

À hora a que Vladimir Putin discursava sobre a guerra, a Renascença entrevistava uma das mais singulares prisioneiras de guerra ucranianas. ​ Marina Mamonova foi capturada em Mariupol pelas forças russas quando se encontrava grávida de poucas semanas. Nem o trabalho de paramédica militar a preparou para a "catástrofe" como classifica o que se passou na cidade conquistadas pelos russos. Sobreviveu ao ataque à prisão de Olenivka e foi libertada numa troca de prisioneiros, um dia antes de dar à luz. Hoje, não fosse a licença de maternidade, estaria por sua vontade na primeira linha do combate. Marina não acredita que ucranianos e russos possam viver lado a lado em paz. Quanto a Putin, o desdém face às suas palavras é total.

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Uma vez soldado, para sempre soldado. Marina encontra-se comigo num hotel de Kiev envergando uma camisola verde aparentemente banal, que só a ignorância e a imaginação do repórter podem associar ao vestuário informal e oficioso de uma graduada dos fuzileiros ucranianos. Nem uma licença de maternidade de três meses parece sobrepor-se à vontade de combater. " Se não fosse esta situação, já lá estava".

Lá é Mariupol, para onde a médica militar Marina Mamonova foi destacada numa rotação que coincidiu com o início da invasão russa da Ucrânia. O dia 24 de Fevereiro ficou marcado por 12 a 14 horas de combate, com as posições ucranianas sujeitas a ataques russos de artilharia, mísseis de longo e curto alcance e emprego da Força Aérea russa, com jactos e helicópteros deixando as suas marcas em todo aquele território. "Sabia actuar em situações difíceis e como paramédica estava preparada para enfrentar diferentes situações. Mas, com quatro anos de serviço, nunca tinha experimentado uma situação tão aterradora como a que assisti a 24 de Fevereiro".

Marina diz que a dureza e frieza do inimigo aferem-se pelo modo como este mata. " Uma coisa é a morte de um vizinho ou de um militar em combate. Outra coisa é a morte de uma criança. Quando comecei a ver as mães junto aos seus filhos comecei também a sentir-me impotente para mudar o que fosse para alterar aquela situação. Atacaram civis quando não havia electricidade nem água. As pessoas vinham à rua tentar ferver água para cozinhar alguma coisa e eram constantemente alvejadas, antes ainda de atirarem contra as forças armadas da Ucrânia. Foi uma experiência horrível passar por essas pessoas sabendo que são sempre filhas de alguém".

Apesar da natureza de combate desta operação, o sofrimento civil requereu uma intervenção dos fuzileiros na assistência médica aos feridos. " Muitos médicos civis saíram de Mariupol no início da guerra. Por isso os fuzileiros foram destacados para o Hospital Militar onde chegavam cada vez mais civis. Por isso, tivemos que separar a unidade paramédica em duas. Uma delas tratava os soldados feridos e a outra ajudava os civis que estavam seriamente a precisar da ajuda médica", explica esta médica de 31 anos, natural de Rivne, no Oeste do país e formada em Ternopil, no centro da Ucrânia.

"Camaradas, estão presos"

Tudo mudou ainda mais para Marina numa das primeiras noites de Abril. Foi capturada pelas forças russas no cerco à cidade contra o qual lutava a 36ª Brigada de Fuzileiros, baseada na metalúrgica Illich. A sua unidade tinha sido convocada naquela noite para sair da fábrica para socorrer camaradas feridos numa outra zona atacada pelas forças russas.

"Pela uma da madrugada, saímos da fábrica com capacetes e coletes. Estalou logo um tiroteio e fomos atacados com bombas de fósforo branco, iluminando o céu. Estava a conduzir para a zona que nos indicaram até que, em determinado momento, o nosso carro foi parado numa zona onde não podíamos progredir. Começámos a ouvir vozes em língua russa, mas não achámos estranho. Muitos militares ucranianos falam russo. Começámos a ouvir cães a ladrar, o que também não era de estranhar, pois estávamos numa aldeia nos arredores da cidade. E logo abriram as nossas portas e encadearam-nos com muita luz, apontando-nos armas .́Camaradas, estão sob detenção das forças da Federação Russa. São prisioneiros de guerra e qualquer tentativa de fuga vai acabar mal para vós", foram as palavras de ordem escutadas por Marina, que confessa que esta é uma memória dolorosa de superar ainda hoje no plano mental.

As braçadeiras brancas dos soldados não deixavam margem para dúvidas a Marina, agora a iniciar um cativeiro sob forte bombardeamento em Mariupol. "Tive um imediato desejo de me atirar para a zona onde caíam os engenhos. O cativeiro de uma mulher pelas forças russas é a coisa mais horrível que podia acontecer na vida". Só que Marina carregava várias vidas consigo. Já sabia estar grávida, ainda que de poucas semanas. E nesse momento de tentação, na fracção de segundo em que pensou atirar-se à barragem de fogo, a maternidade sobrepôs-se ao instinto da médica militar. " Uma coisa é perder uma vida, outra é perder duas. Isto deu-me esperança para passar pela Rússia".

Conversas para dentro e para fora

Seguiram-se seis meses de cativeiro, dormindo no chão com as outras prisioneiras, sem tratamento especial por estar grávida. " Não fui sujeita a qualquer observação médica e desconhecia a condição do meu bebé. Restava-me apenas lidar com a situação. Prometi a mim própria não chorar. Nestas circunstâncias, não poderia permitir a degradação da minha condição e a da minha filha. Eu falava constantemente com ela, explicava como o seu organismo estava a ser construído dentro de mim. Penso que qualquer mulher em Portugal, ao ler e escutar isto,perceberá o que estou a dizer. Quando sentimos pela primeira vez o nosso filho, começamos a perceber como é maravilhoso ter uma nova vida dentro de nós. A mensagem que quero passar é esta: qualquer mãe é capaz de fazer qualquer coisa. Nunca desistam. Resistam e acreditem".

A longa entrevista a Marina tem apenas uma condição, a de não abordar a questão da tortura física. Cumprir este pré-requisito permite-nos pesar este facto de forma imediata e, neste caso, silenciosa. O cativeiro ainda seria marcado pelo ataque ao campo de detenção de Olenivkha, nos arredores de Donetsk, em Julho último. Uma explosão matou pelo menos 53 prisioneiros de guerra ucranianos, muitos deles pertencentes ao batalhão Azov que permaneceu barricado durante semanas no complexo metalúrgico Azovstal. A Ucrânia, a União Europeia e os Estados Unidos contestaram a versão oficial russa segundo a qual o centro foi bombardeado por forças ucranianas.

Marina parecia estar destinada a passar esta jornada com vida. Estava a 500 metros do local da explosão. " Os guardas russos que estavam naquela zona desapareceram por umas três horas. Quando voltaram, diziam que tinham sido os ucranianos a matar os seus próprios prisioneiros de guerra", recorda a médica militar que passou a depositar alguma esperança nas trocas de prisioneiros. Os guardas passavam e descartavam a possibilidade de virem salvá-la e a outras mulheres. "Para mais uma mulher grávida", diziam, segundo o relato de Marina. "Sempre acreditei que a Ucrânia viria buscar-me e pôr-me a salvo". Mas a fé na liberdade foi testada ao longo daquelas semanas. "Houve várias trocas de prisioneiros e nalguns momentos senti-me desesperada, porque algumas pessoas iam sendo libertadas mas eu continuava detida. Até ao dia em que os guardas me chamaram". No dia 21 de Setembro, Marina Mamonova foi libertada com mais de 200 prisioneiros, na maior operação do género até então, no mesmo dia em que Vladimir Putin anunciou uma mobilização parcial dos reservistas para reforçar o combate terrestre na Ucrânia.

Nova fase, velha guerra

Cinco meses depois, Marina desfia estas memórias de costas para a televisão do bar do hotel. Os canais ucranianos ignoram o discurso de Vladimir Putin sobre o Estado da União. Há um desinteresse palpável em trocar a vida real pela atenção a dar às palavras do inimigo. Não será difícil ter em breve um resumo da intervenção no telemóvel.

"Pessoas saudáveis não são insultadas por doentes mentais", responde-me quando lhe pergunto sobre as palavras de Putin. Por momentos não apenas sorri como liberta mesmo uma gargalhada. Pergunto ao meu tradutor o que se passa, Marina graceja com a impossibilidade de dizer palavrões sobre Putin nesta entrevista. "Eu estive do outro lado, aquele que chamam de República Popular de Donetsk, onde as pessoas diziam que viviam melhor quando a região era controlada pelos ucranianos. Nós, que passámos um ano por estas atrocidades bárbaras e horríveis, vamos ultrapassar isto", insiste Marina, mesmo reconhecendo que o que virá pela frente pode causar algum medo. "Mas as pessoas aprenderam a sobreviver, a ajudar-se mutuamente e a lutar por aquilo que é nosso"

Pergunto-lhe se espera uma guerra longa. " O que é longo depende de pessoa para pessoa. Não acredito que vá ser uma guerra longa. Para se construir algo novo tem que se destruir alguma coisa. Estou certa que o inimigo vai concentrar as suas forças e as suas capacidades. Tem que atacar outra vez. Mas acredito que será a sua última ofensiva", responde a médica militar que foi prisioneira de guerra durante seis meses.

Quando a questiono sobre ódio entre os dois povos, responde apenas que aquelas são as suas emoções particulares. Depois elabora um pouco mais com a insistência na pergunta. "Como se pode amar um vizinho de quem se gosta e que de repente nos oprime e tenta matar apesar de sobrevivermos ? Como se pode confiar nele ? Não, não é possível que as nossas nações vivam pacificamente lado a lado. O povo ucraniano sofreu demasiado, teve muitas perdas, chorou muitas vezes. Temos demasiadas tragédias a superar. Por isso não é possível viver em paz com um vizinho destes".

Mãe nas próximas batalhas

Quatro dias depois de passar a fronteira para o seu país, Marina Mamonova deu à luz uma menina chamada Anna Maria. Se tivesse sido um rapaz, Marina e o seu marido Vasyl, um advogado de Lviv, teriam optado pelo nome de Arsene. A escolha de um segundo nome como Maria está ligada à festa da Natividade de Nossa Senhora que, no calendário juliano, assinala-se a 21 de Setembro. A escolha pareceu óbvia a Marina por coincidir com a data da sua libertação e também por terminar um cativeiro que combateu também com a oração que aprendeu com os capelães militares. "Meu anjo da guarda, estai comigo, vai à minha frente e eu logo te sigo. Era esta a oração. E este será sempre um exemplo de que Deus existe", conclui a médica que passou quase toda a gravidez detida e sem contacto externo.

Ana Maria nasceu saudável com 3250 gramas e 57 centímetros. Mas não se sabe ainda o peso e o tamanho da herança deixada por esta jornada. Nem por esta forma de vida, sem paz ou convivência entre vizinhos à vista, de que Marina Mamonova é um símbolo vivo ao cabo de doze meses nesta parte do mundo.

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