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RENASCENÇA NA UCRÂNIA

Os feridos inquebráveis de Lviv

20 fev, 2023 - 11:30 • José Pedro Frazão, enviado especial da Renascença à Ucrânia

Um ano depois da invasão russa, as cidades ucranianas menos bombardeadas servem de retaguarda à guerra. É a Lviv que vão dar os comboios especiais que transportam civis e militares feridos na frente de combate. Há crianças com estilhaços e militares amputados na rotina do Centro Nacional de Reabilitação, onde não há pausas nem camas suficientes para acolher quem recupera de ferimentos complexos. Quem usa farda quer voltar com próteses para a frente de batalha. Todos passam pelo Unbroken, a referência no tratamento de feridos da guerra na Ucrânia.

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Os feridos inquebráveis de Lviv
Os feridos inquebráveis de Lviv

Por muitos planos de vida que tenham sido torcidos, Lviv faz questão de ser o porto de abrigo para quem a guerra fez feridas na carne e no espírito. Longe dos combates, cabe-lhe viver os sobressaltos dos alarmes antiaéreos e os impactos de mísseis russos destinados a partir a espinha ao sistema energético e à cadeia logística militar.

A mesma estação de comboios que viu partir milhares de ucranianos em fuga da guerra para o estrangeiro recebe agora vagas semanais de homens e mulheres resgatados às frentes de batalha. Civis e militares embarcam em comboios transformados em hospitais de campanha, autênticas enfermarias sobre carris que percorrem o país na missão de evacuar cidades, vilas e aldeias bombardeadas.

Sentado numa cama do Centro Nacional de Reabilitação em Lviv, Yevhenii recorda bem os dois sentidos da jornada que o faria viver afinal uma campanha curta com a farda ucraniana. Em Outubro, alistou-se e foi servir o país na primeira linha do Donbass. Dois meses depois, um ataque inimigo custou-lhe a amputação da perna direita e o fim da missão de combate.

"Sei que é muito complicado voltar desta forma".

Transferido para Lviv, este ucraniano de 28 anos, que apenas teve a companhia de uma avó durante o processo cirúrgico, procura reconstruir a vida em torno da mobilidade possível de uma prótese. "Sinto-me melhor a cada dia, com mais energia e estou muito contente com o resultado", diz, com voz baixinha, num quarto com mais três pacientes em dia de visitas.

O resultado de que fala é a reabilitação. A prótese deixa de ser um aparelho, passa a ser a fonte de uma ténue esperança de voltar a servir de alguma forma o seu país em guerra. "Sei que é muito complicado voltar desta forma", confessa Yevhenni, ainda muito ligado aos camaradas de armas que deixou no Leste.

As chamadas para o Donbass levantam-lhe o humor. "Preocupo-me muito com eles, são como a minha família", confessa este homem de Zhythomyr, orfão de pai e mãe.

Uma casa de consertos

Os corredores do Centro Nacional de Reabilitação também servem para conduzir os feridos de guerra à esperança de dias melhores.

Tal como Yevhenni se inspira num outro amputado mais avançado nesta nova vida de próteses, as salas do complexo hospitalar servem para fornecer força aos traumatizados de todas as espécies que entram no Centro Unbroken. Foi assim batizado, com nome de um projeto de saúde que quer espelhar o espírito inquebrável dos ucranianos em guerra.

Tudo se conserta, acreditam, mesmo as fraturas mais difíceis de cicatrizar. Trata-se de um centro hospitalar público, de uso civil e militar, que inclui todo o processo de reabilitação, fisioterapias e acompanhamento psicológico adequado a vítimas de guerra.

O Centro Unbroken já tratou quase 15 mil feridos, incluindo muitas mulheres e crianças com fragmentos de engenhos que explodiram nas suas terras devastadas pelos combates. Com alguns desses estilhaços, foi mesmo construída uma cruz metalizada entregue em mão ao Papa Francisco em dezembro pelo presidente da Câmara de Lviv e pelo diretor do Centro Unbroken.

"Temos uma lista de espera de mais de 100 pessoas, mas não conseguimos dar-lhes alojamento por falta de espaço."

O complexo alberga alas pediátricas e também zonas exclusivas para mulheres e emprega cerca de quatro mil profissionais, entre médicos, enfermeiros e assistentes.

O Unbroken tem três mil camas instaladas e, em abril, vai ser inaugurado um novo edifício para alargar a sua oferta, uma vez que está no limite da sua capacidade. A diretora de comunicação, Zoriana Hasii, reconhece o problema de falta de camas para muitos ucranianos em tratamento no centro.

"Temos uma lista de espera de mais de 100 pessoas, mas não conseguimos dar-lhes alojamento por falta de espaço. É por isso que estamos a construir novos edifícios para receber esses pacientes, além de um centro de reabilitação, que terá sete pisos", revela esta antiga estudante de jornalismo.

A pressão para aumentar a capacidade é provocada também pela necessidade de manter as pessoas próximas dos locais de tratamento e fisioterapia. Mas também responde a uma carência óbvia, causada pela guerra. Muitas casas foram dizimadas pelo conflito e seria impossível continuar estes tratamentos nos domicílios, explicam-nos nesta visita ao Unbroken.

Das trincheiras à sala de operações

A guerra trouxe mais emergências complexas ao centro hospitalar de Lviv. Danylo Turkeyvych lembra-se bem do momento em que mais de 100 feridos entraram num só dia nas portas do hospital, devido ao bombardeamento pelos russos de um quartel dos arredores de Lviv, onde era feito o treino de voluntários estrangeiros pelas forças ucranianas.

"Conseguimos salvar quase todas as vidas", lembra este cirurgião plástico, que acabou a sua formação apenas há um ano. Danylo recebe e opera os feridos estabilizados pelos médicos dos comboios-enfermaria, que os trazem das urgências de Dnipro ou Kramatorsk, no Leste da Ucrânia.

Atualmente recebe dez novos casos por dia, mas aguarda um incremento das urgências a partir desta semana com a anunciada ofensiva russa que marca o primeiro aniversário da guerra.

"Os nossos guerreiros também não têm tempo para descansar. Ainda ontem recebi uma foto de um paciente meu que perdeu um membro inferior. Operei-o, passou pela reabilitação, recebeu uma prótese e voltou para a guerra."

O espírito é mesmo de combate. O cirurgião de 27 anos trabalha quase sem pausas, sete dias por semana. "Os nossos guerreiros também não têm tempo para descansar", justifica-se, enumerando muitos casos de militares que, tal como Yevhenni, estão determinados em voltar para a frente de batalha assim que puderem.

"Ainda ontem recebi uma foto de um paciente meu que perdeu um membro inferior. No espaço de um mês, operei-o, passou pela reabilitação, recebeu uma prótese e voltou para a guerra. Mandou-me agora uma foto sua no campo de batalha", conta este jovem médico.

"O número de pacientes civis permaneceu quase o mesmo. As entradas por enfartes do miocárdio, derrames cerebrais ou lesões do sistema músculo-esquelético não desapareceram. Mas aumentou o número de pessoas com amputações de membros e é habitual que também tenha aumentado o número de outras fraturas de membros, lesões cranioencefálicas e espinhal medulares", explica o fisioterapeuta Oleh Bilianskyi, admitindo que estes politraumatizados requerem mais conhecimento e uma abordagem "mais criativa" da sua parte.

Fazer luz em muitos escuros diferentes

A meio da conversa, dispara o alarme antiaéreo, mas a rotina pouco se altera naquela zona do hospital. Se estiverem presentes estudantes de medicina, aplicam-se protocolos de segurança e a formação continua no abrigo. Os geradores arrancam de imediato em caso de falha elétrica. Mas, regra geral, não é prático interromper a sessão de fisioterapia e levar os pacientes e respetivos aparelhos para a cave.

"Se o equipamento não funciona, temos as nossas mãos, o nosso conhecimento e as nossas lanternas."

"Tentamos adaptar a nossa jornada de trabalho a condições extremas. A falta de eletricidade não é um problema para a fisioterapia. Se o equipamento não funciona, temos as nossas mãos, o nosso conhecimento e as nossas lanternas", explica Oleh, enquanto monitoriza um exercício de um paciente, que faz trabalho de bicicleta estática enquanto olha para uma janela que dá para o pátio interior.

As feridas estão também lá dentro, menos expostas a quem tem um olhar desatento. É nesses momento que Oleh não é apenas um fisioterapeuta, mas também um ouvinte das queixas e das confissões de gente que vem cheia de nódoas negras emocionais.

"Quando há essa confiança, fica mais fácil chegar a um entendimento com o paciente e proporcionar uma assistência mais qualificada. Porém existem momentos em que é decisivo trabalharmos juntos, como uma equipa multidisciplinar, com o envolvimento do psicólogo e psicoterapeuta no processo de reabilitação. Eles participam na recuperação psicológica do paciente, o que facilita o trabalho junto de alguém que nos surge cansado e com medo", remata.

É um trabalho também sem pausas, uma outra guerra de tantas que se vivem na Ucrânia. Até porque todas elas tão cedo não parecem dar tréguas.

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