EUA

Ataque ao Capitólio. Dois anos depois, "uma parte considerável dos republicanos está saturada de Trump"

06 jan, 2023 - 06:32 • Redação

A 6 de janeiro de 2021, apoiantes de Donald Trump invadiram violentamente o Capitólio para reclamar de uma eleição que viam como fraudulenta. Dois anos depois, mais de 970 pessoas já foram detidas e indiciadas por ligações à invasão. Um comité bipartidário já recomendou que o ex-Presidente seja julgado por conspiração. Mesmo que não seja, destaca a analista Lívia Franco à Renascença, os norte-americanos podem vir a encarregar-se de o afastar da cena política.

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Dois anos depois do ataque ao Capitólio, relembre a tentativa de reverter a vitória de Biden
Dois anos depois do ataque ao Capitólio, relembre a tentativa de reverter a vitória de Biden

Foi a menos de um mês de se marcarem os dois anos do ataque ao Capitólio que um comité bipartidário de investigação ao caso, criado pelo Congresso, recomendou que o ex-Presidente dos EUA, Donald Trump, seja formalmente acusado de conspiração e incitamento à insurreição.

A 6 de janeiro de 2021, apoiantes do Presidente cessante invadiram o Capitólio na tentativa de reverter a vitória eleitoral de Joe Biden, um evento inédito na história dos EUA. No mês anterior, concretamente a 19 de dezembro de 2020, Trump tinha apelado abertamente aos seus seguidores no Twitter para se juntarem e o ajudarem a manter a presidência. Nos dias seguintes, membros de grupos como os Oath Keepers, os Proud Boys, QAnon e os Guardiões da Liberdade da Flórida mobilizaram-se, muitos encorajando o uso de armas brancas e de fogo.

Semanas depois, durante quase quatro horas até as autoridades conseguirem dominar os invasores, sete pessoas morreram e mais de 150 agentes das autoridades ficaram feridos. Foi o culminar de quatro anos de uma administração Trump "altamente polarizadora", que "aprofundou as divisões políticas e culturais do país" e em que "havia terreno para favorever um evento desta natureza", destaca à Renascença Lívia Franco, especialista em Assuntos Políticos da Universidade Católica.

"Eram estas as condições em que se encontravam os Estados Unidos em janeiro de 2021", recorda a especialista. Dois anos depois, marcados esta sexta-feira, algumas coisas mudaram na sequência da invasão, mas há questões que continuam em aberto, entre elas o que vai acontecer a Trump e qual o legado deste episódio para os EUA.

Um 6 de janeiro simbólico

No contexto eleitoral norte-americano, o 6 de janeiro que segue um ato eleitoral é sempre o dia da chamada “joint session”, ou “sessão conjunta”. Neste dia, o vice-presidente, enquanto presidente do Senado, conta os votos do Colégio Eleitoral, definido em plebiscito no mês de novembro.

Em 2021, o que os apoiantes de Trump pretendiam era impedir essa contagem de votos, sob o argumento de que a eleição teria sido fraudulenta. A crença foi sendo alimentada pelo próprio Trump e por elementos do Partido Republicano e meios de comunicação social como a Fox News, que já depois da vitória de Biden passaram semanas a alimentar a especulação sobre irregularidades na contagem dos votos em estados-chave, em particular votos por correspondência.

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As alegações de fraude eleitoral foram desmentidas pelas autoridades competentes e ao ataque seguiu-se uma investigação do Congresso, a cargo do democrata Bennie G. Thompson, presidente do comité, da republicana Liz Cheney, vice-presidente, e restante equipa, composta por outros cinco democratas -- Zoe Lofgren, Adam B. Schiff, Pete Aguilar, Stephanie N. Murphy, Jamie Raskin e Elaine G. Luria -- e o republicano Adam Kinzinger.

Ao longo de 18 meses, os legisladores ouviram dezenas de testemunhas e intimaram mais de 100 pessoas a testemunhar. O documento final apresenta provas extensivas das implicações de Donald Trump e os seus apoiantes no planeamento do golpe e nele o comité não só propõe que o ex-Presidente seja acusado criminalmente como lista recomendações legislativas para promover transferências de poder pacíficas e impedir que ações semelhantes aconteçam no futuro.

Para Lívia Franco, o resultado do trabalho desta comissão pode "sofrer manipulação política dos dois lados do espectro político-partidário" nos EUA.

"O Partido Democrata pode tentar maximizar a seu favor as conclusões do relatório e o Partido Republicano, particularmente uma ala bastante ativa e 'trumpista', pode tentar usar estas conclusões para desacreditar o trabalho da própria comissão."

Entre algumas das conclusões, o documento aponta falhas às autoridades federais por um aparente desleixo face a uma invasão que vinha sendo preparada há semanas. Nos primeiros dias de janeiro, a polícia do Capitólio, os Serviços Secretos e o FBI receberam indicações de uma potencial ação que poderia acontecer a 6 de janeiro.

Para além disso, fica provado que, no dia 4 de janeiro, decorreu uma reunião na Sala Oval da Casa Branca em que John Eastman, advogado e conselheiro de Trump, pressionou o vice-presidente, Mike Pence, a não contar os votos dos estados do Arizona, Georgia, Michigan, Novo México, Nevada, Pensilvânia e Wisconsin. A 5 de janeiro, Pence declarou que não tinha autoridade para reverter a vitória de Joe Biden.

O que já aconteceu e o que ainda está por vir

O relatório, para além de inédito na sua natureza, é explosivo mas não tem efeitos práticos ao nível da responsabilização. O comité não tem poder para implementar ação legal, pelo que cabe ao Departamento de Justiça decidir se acusa formalmente Donald Trump dos crimes de incitamento à insurreição, obstrução de um procedimento oficial do Congresso, conspiração para defraudar os EUA e conspiração para prestar falsas declarações.

A juntar a isto, cada recomendação legislativa terá de ser avaliada, proposta e aprovada pelo Senado. Das 11 recomendações legislativas apresentadas pelo comité de investigação, a revisão da Lei Eleitoral de 1887 já está a decorrer, depois de a Câmara dos Representantes e o Senado terem aprovado novas leis. Na versão renovada, o papel do vice-presidente na contagem dos votos do Colégio Eleitoral passa a ser cerimonial, sendo precedido de um certificado do resultado das eleições a nível estatatal, por um grupo pré-definido de eleitores.

Pelo contrário, o relatório não alterou em nada a intenção de Donald Trump se recandidatar à presidência em 2024, apesar de enfrentar uma eventual proibição vitalícia de exercer cargos públicos caso o Departamento de Justiça decida avançar com acusações formais ao ex-chefe de Estado.

Mais do que os limites que possam ser impostos a uma eventual candidatura de Trump, Lívia Franco acredita que será o eleitorado a decidir, num momento em que na sociedade norte-americana parece haver sinais de transição.

"Ainda há indícios de uma polarização grande [na sociedade norte-americana], mas também há indícios cada vez mais fortes de que uma parte considerável do eleitorado norte-americano que tradicionalmente vota no Partido Republicano está bastante saturada e descontente com o papel inflamado e de grande polarização e grande divisão de Donald Trump."

Quanto à repetição de um ataque semelhante, a professora associada da Universidade Católica diz que é ainda muito cedo no processo eleitoral para fazer uma previsão. Apesar de as autoridades, como a polícia do Congresso, estarem mais preparadas para um ataque da mesma dimensão, Lívia Franco acredita que ainda existem “bolsas da sociedade americana suscetíveis de continuarem a ser radicalizadas”.

No início de dezembro, uma das empresas do antigo Presidente foi condenada por fraude fiscal, o que levou à decisão do Congreso de ordenar a divulgação das suas declarações fiscais. Além de ter sido o primeiro Presidente na história dos EUA a ser alvo de uma investigação desta dimensão, Donald Trump foi também o primeiro a ser alvo de dois votos de “impeachment”: a primeira vez, em dezembro de 2019, e a segunda, na sequência do ataque ao Capitólio há dois anos.

Até hoje, pelo menos 978 pessoas foram detidas e indiciadas por ligações ao ataque ao Capitólio. Donald Trump não faz parte dessa lista.

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