20 dez, 2022 - 07:59 • Fábio Monteiro
A perceção pública de quem é e o que defende Julian Assange diverge muito – mas o contributo do ativista e principal responsável pelo portal Wikileaks, que, em 2010, em colaboração com vários órgãos de comunicação internacionais, divulgou uma série de documentos secretos dos EUA, alguns dos quais relativos a crimes de guerra, é consensual. Em particular, para a União Europeia.
Enquanto os Estados Unidos da América exigem que Assange seja extraditado e julgado, ao abrigo da lei da espionagem, o ativista, que mais do que denunciante se identifica como editor, foi um dos finalistas do Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento deste ano. Em Estrasburgo, para a cerimónia da entrega da distinção, fez-se representar por Stella Assange – a mulher e advogada de direitos humanos.
Em entrevista à Renascença, Stella Assange acusa os EUA de estarem a tentar abrir um precedente perigoso para a carreira de todos os jornalistas – pelo mundo. E lembra: “O comitê das Nações Unidas sobre tortura já disse que o Julian foi sujeito a tortura psicológica. Este caso é, portanto, bem mais do que um caso sobre liberdade de imprensa.”
Já passaram doze anos desde que o WikiLeaks e Julian Assange foram, pela primeira vez, notícia. Tem memória do que pensou, então, quando os primeiros documentos secretos dos Estados Unidos foram revelados?
A primeira vez que ouvi falar do WikiLeaks foi enquanto membro do público. Considerei as revelações do WikiLeaks uma mudança radical. A forma como o WikiLeaks fez evoluir o jornalismo veio para ficar. Agora vemos o New York Times, o Guardian, e por aí fora, a usarem as técnicas introduzidas pelo WikiLeaks, como as caixas de correio eletrónicas de denuncia anónima. Abriu também caminho no campo das parcerias, como os Panama Papers. Fazer o melhor jornalismo possível e retirar o máximo de informação dos documentos.
Quando este caso começou, a narrativa estava centrada no direito a publicar – de vários órgãos de comunicação internacionais, mas também do WikiLeaks. Neste momento, estamos a falar de direitos humanos, extradição e política internacional.
O WikiLeaks fez publicações de enorme importância sobre violações de direitos básicos da democracia, tortura e guerra. E com a acusação Julian houve um ataque à liberdade de imprensa. Mas esta história já cresceu muito para além disso.
O Julian está agora a sofrer profundamente. E o infligir desse sofrimento é deliberado. Ele está detido [numa prisão de alta-segurança] administrativamente há mais de 3 anos e meio. Não está a cumprir uma sentença. As reuniões que tem com advogados foram espiadas pelo Governo [dos EUA] que está a tentar extraditá-lo. Houve instruções para conseguir o ADN do nosso filho de seis meses, quando o Julian estava dentro da Embaixada [do Equador]. E agora até sabemos que houve planos para raptá-lo e até assassiná-lo.
O único agente desonesto nesta equação são os EUA, que estão a perseguir politicamente um editor por ter publicado a verdade. Isto cresceu muito para além de uma questão de liberdade de imprensa; está-se a deter indefinidamente um editor e a procurar sentenciá-lo a uma pena de 175 anos.
O comitê das Nações Unidas para a tortura já disse que o Julian foi sujeito a tortura psicológica. Este caso é, portanto, bem mais do que um caso sobre liberdade de imprensa. Está também a abrir um precedente legal.
Está a criar uma base para que, no futuro, outros Estados possam pôr editores na prisão por publicaram e verdade.
Um precedente perigoso.
E não só nos Estados Unidos. Está a estabelecer um novo standard mundial pelo qual nenhum jornalista está a salvo. Qualquer outro país pode dizer: vamos aplicar as regras sobre segredos de Estado da mesma forma que os EUA fizeram no caso Assange. E isso significa que as proteções para jornalistas ou bloggers dissidentes, ao nível mundial, se vão detiorar de forma muito significativa.
Quando no futuro os EUA e outros países vierem dizer: não prendam jornalistas, outros podem responder: e o que vocês fizeram com o Assange? Não é whataboutism (entãosismo), é um baixar geral de princípios. A liberdade para publicar é a vítima e esta é uma trajetória perigosa.
A nomeação do prémio Sakharov coloca, de alguma forma, pressão na administração Biden?
Sem dúvida. É um sinal muito forte que o Parlamento Europeu tenha escolhido o Julian como um dos finalistas para o seu principal prémio de liberdade de pensamento e direitos humanos. É um prémio muito prestigiado. Isto envia um sinal claro que o caso do Julian importa para os políticos europeus e que é uma afronta a alguns dos direitos da União Europeia.
Faz sentido estabelecer equivalências entre o caso de Edward Snowden e de Julian Assange? Será que os EUA têm receio que Assange se vá radicar também em território de Putin?
Snowden é um denunciante (whistleblower), enquanto o Assange é um editor. São dois casos distintos. Snowden estava a trabalhar para o Governo norte-americano e ele tinha certas lealdades e obrigações como cidadão. O Julian é um cidadão australiano. Não tem nada a haver com os EUA. E não estava nos EUA na época.
Nunca houve qualquer questão de ir para outro país. A questão é se os países europeus vão dar a cara pela liberdade de imprensa. E deixar um editor livre enquanto um poder estrangeiro está a tentar detê-lo. O Julian não deve ter de pedir asilo em lado nenhum.
Antes de ser mulher de Assange foi também sua advogada. É sempre confortável falar em nome dele?
O meu papel inicial permitiu-me perceber o contexto político e legal pelo qual o Julian estava a ser perseguido - dentro e fora da lei. Agora, felizmente estou numa posição em que não posso apenas não só defendê-lo em principio e na lei, mas também a um nível humano. Sei que o Julian é o homem com mais princípios que conheço. E é um bom homem. E precisa de estar com a sua família.