25 out, 2022 - 01:00 • Sérgio Costa
Que ilações tira da primeira volta das presidenciais brasileiras?
Bem, em primeiro lugar, é um prazer falar para a Rádio Renascença, que eu escutava sempre no carro quando viajei por Portugal inteiro em 2017. Muito prazer. Eu acho que a gente pode considerar alguns aspetos da eleição brasileira. A primeira foi a falência das pesquisas eleitorais, a absoluta falência das pesquisas eleitorais, que foi causada por uma série de movimentos técnicos, como, por exemplo, a ausência do censo demográfico, que não foi realizado em 2020 em função da pandemia.
Nesse sentido, as amostras censitárias que orientam as pesquisas são terrivelmente contaminadas por equívocos, por alterações demográficas desde 2010, principalmente nas periferias, onde a mobilidade urbana é muito grande, onde as informações são muito contaminadas e onde se verifica uma invasão das igrejas ditas evangélicas, neopentecostais e cujos dados estão completamente equivocados.
Há quem considere que os evangélicos no Brasil representam 30 a 34% do universo religioso. Os católicos são 40 e pouco, mas há quem assegure que os evangélicos já passaram os católicos. É evidente que a amostra para as religiões fica completamente equivocada com as amostras utilizadas pelos institutos de pesquisa.
Isso explica a disparidade entre as intenções de voto em Bolsonaro e a realidade?
Sem dúvida. Agora, há mais do que isso. Recentemente conversei com um demógrafo, um grande especialista em representação digital de alocação de populações. Ele conhece muito bem o Estado de São Paulo e chegou à conclusão que a periferia de São Paulo e a região metropolitana de São Paulo votou Lula. Mas a periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro votou massivamente em Bolsonaro, muito em função da penetração das igrejas neopentecostais. Então, aquela ideia de que os pobres votaram Lula e vão decidir a eleição, não é linear. Não é válida para todas as grandes regiões metropolitanas. Vale para São Paulo, mas não vale para o Rio. E esses eleitores, pobres, foram afetados por uma retórica populista de extrema direita que diz respeito a costumes. Por exemplo sobre o casamento gay. Eles dizem - “Vão fazer casamento gay? - Então você vai ser obrigado a conviver com isso ao lado da sua casa". O sujeito comum fica apavorado pois não consegue perceber, conceber a ideia. Todas essas interferências aconteceram nas eleições. Note bem que os institutos de pesquisa acertaram a percentagem de Lula, mas erraram, e muito, a de Bolsonaro.
Conclui-se que, eventualmente, o “Bolsonarismo” veio para ficar. Por que razão o centro moderado está esvaziado? Como é que isso aconteceu?
Isso aconteceu há muito tempo, quando Fernando Henrique Cardoso se candidatou à Presidência da República, venceu no primeiro turno e derrotou Lula. Logo aí começou a retórica, que ele (Lula) mantém até hoje e que é profundamente danosa para a integridade política e ideológica dos brasileiros: a retórica de nós e eles! E isso começou a fazer passar a ideia de que o governo de Fernando Henrique Cardoso, que era um governo bastante amplo e termos de leque político, era um governo da elite. Note bem que, durante todos estes anos, o PT não fez nenhuma aliança em que não seja profundamente hegemónico. O PT faz muitas alianças com o PSB, Partido Socialista Brasileiro, mas é sempre hegemónico. Faz aliança com os “nanicos” da extrema esquerda PSOL, PCB e o atual PSDB. O PT recusa participar em alianças equilibradas.
O Bolsonaro é “esperto” do ponto de vista político, porque ele conviveu no ambiente político nos últimos 30 anos e foi capturando algumas coisas aqui e ali
Então uma maior agressividade no discurso da esquerda, e essa essa menor capacidade de negociar por parte do PT contribuiu para o esvaziamento do centro, é isso?
Essa tática do Lula foi, na minha opinião, suicida, porque ele estava todo esse tempo incitando e estimulando essa ideia . O que ele chamava de a direita, que não era direita, era um mix, mas ele empurrou essa “turma” toda para a direita. Então, hoje descobrimos que o eleitor que votava no PSDB era um eleitor anti PT, anti Lula, e agora vota na extrema direita. Quer dizer, é um eleitor que pode ser tangido por uma série de normativas de costumes, por exemplo. E o Bolsonaro foi inteligentíssimo…não ele, mas talvez os mentores dele.
Ele é o rosto de um movimento.
Exatamente. O grande guru dele, o Olavo de Carvalho, criou isso e ele executou muito bem. Apesar das deficiências culturais, e até mesmo de inteligência, o Bolsonaro é “esperto” do ponto de vista político, porque ele conviveu no ambiente político nos últimos 30 anos e foi capturando algumas coisas aqui e ali. Então, acho que o PT está hoje numa situação complexa. Agora que eles precisam, eles vêm procurar, mas durante todos esses anos não o fizeram. No entanto, é certo que o eleitor do PSDB, o eleitor do MDB, o eleitor de centro-esquerda vai votar Lula no segundo turno.
Justamente, como antecipa o segundo turno?
No segundo turno, o Lula vai puxar a candidatura dele, a campanha dele, para o centro e o PT vai empurrar para a esquerda. Depois do primeiro turno, na festa da Avenida Paulista, havia uma plateia exclusivamente de militantes do PT e quando o Geraldo Alckmin, candidato a vice-presidente do Lula, foi falar, levou uma vaia monumental.
Ou seja, a candidatura de Lula pode ficar comprometida por divisões?
Ela vai ser comprometida por essas divisões. Agora no PT, o Lula tem a palavra final, ele faz o que quer, sempre fez o que quer. Por outro lado, digo que matematicamente, o que não quer dizer que politicamente as coisas coincidam, o Lula está a 1,57% da vitória.
Se a abstenção se mantiver, se forem mantidos os votos brancos e nulos, Lula precisará apenas de 1,57%. Isso dá 1 milhão e oitocentos mil votos, o que para ele é facílimo de alcançar.
Lula cometeu um erro terrível: apresentou-se como ele sempre faz, sem programa político. Então, agora que ele vai ter que negociar programa sem ter um programa inicial
Bolsonaro pode tentar uma campanha mais agressiva para captar esse eleitorado na reta final?
O Bolsonaro vai tentar, de qualquer forma, todos os votos que estão disponíveis, mas Bolsonaro precisa conquistar 86% dos votos de Simone e Ciro somados.
Parece impossível.
Absolutamente impossível matematicamente. Se o Bolsonaro conseguir um tsunami acoplado a um terremoto, ele pode conseguir até mais um pouco do que é isso. Mas são 86% dos votos de dois candidatos que eram hostis à aventura antidemocrática dele, que em nenhum momento avalizaram a aventura antidemocrática. Eu acho impossível que ele vença. É muito natural que a maioria dos votos do Ciro se transfira, migre para o Lula.
E de Simone Tebet também?
A própria Simone já antecipou com todas as letras, embora não tenha dito o nome que vai apoiar o Lula. Se 30% dos votos da Simone forem para o Lula, acabou. Quer dizer, do ponto de vista da matemática, o Lula está muito bem. O problema dele é a política.
Então, o que eu pergunto é se Lula tem capacidade para pacificar a sociedade e a política brasileira.
Capacidade ele tem. Não sei se a expressão é comum em Portugal, mas ele tem lábia… a lábia do Lula. Lábia é uma coisa que se entenda. Ele é suave, ele é sedutor. Ele é como um conquistador.
Capacidade de pacificar ele, sem dúvida até terá. Eu não sei é se ele terá a capacidade de governar de forma moderna. Lula cometeu um erro terrível: apresentou-se como ele sempre faz, sem programa político. Então, agora que ele vai ter que negociar programa sem ter um programa inicial. E para ser bem franco, eu diria que Lula envelheceu não só na idade, mas no seu discurso. Lula envelheceu nas ideias. Ele ainda está em 1982.
Não se adaptou ao mundo digital ou à modernidade. A nova a nova relação entre os países, a nova divisão internacional de trabalho. Há pouco tempo ele estava defendendo Putin. Ele gera contradições que depois vêm cair no colo dele.
E vai ter que gerir uma sociedade brasileira com mais de 50 milhões que validam Jair Bolsonaro.
O que é pior com o Congresso que ele não domina.
Tancredo Neves tinha uma capacidade decisória absolutamente invulgar, absolutamente incomum
O que terá de fazer Lula para conseguir governar e não haver tensão social e política?
Duas coisas: primeiro a sedução do Lula. Ele é intensamente sedutor nas negociações. Ele sabe conquistar as pessoas, mesmo as que agora são favoráveis a Bolsonaro. Usando linguagem futebolística, nos 45 minutos do primeiro tempo são políticos oportunistas que estão interessados em manter o orçamento. Eu não sei como é que você vai conseguir explicar para os seus patrícios o que é o orçamento secreto.
O Carlos Marchi pode tentar explicar?
Meu Deus, é muito difícil e inacreditavelmente ignóbil essa ideia do orçamento secreto. Ter um orçamento que é gerido por um relator que é um guarda costas do presidente da Câmara dos Deputados e que não pode ser divulgado publicamente. As emendas não podem ser divulgadas e não se sabe para onde dinheiro vai. O dinheiro vai invariavelmente para conquistar prefeitos e vereadores de pequenas cidades, onde se acumulam o voto desses deputados.
Isso leva-me a uma pergunta: Que balanço é faz de 30 e muitos anos de democracia pós ditadura militar no Brasil? É possível fazer já um balanço?
Não. Nós tivemos um governo inseguro, que foi o governo Sarney, mas era uma liderança que usava os métodos antigos da política para mandar. E depois do Sarney houve uma eleição em que as grandes lideranças brasileiras foram derrotadas. Ulysses Guimarães, Mário Covas, Aureliano Chaves, Leonel Brizola.
A segunda volta foi feita entre o Lula e o Fernando Collor, que foi um desastre no governo. Não tanto um desastre porque ele modernizou o país, colocou o Brasil na idade contemporânea do ponto de vista dos negócios, dos regulamentos, dos marcos regulatórios, da modernidade. Mas acabou sofrendo impeachment e assumiu uma figura surpreendente Itamar Franco. Era um homem que brigava com todo mundo, mas fez um governo magnífico e teve um ministro da Fazenda brilhante, que se chamava Fernando Henrique Cardoso. Então, a partir daí, a gente achou que era a Suíça. Depois do governo Fernando Henrique Cardoso, veio o governo Lula, que respeitou todas as regras fiscais. Até que veio o boom da economia mundial. Aí ele começou a gastar e passou o governo para um desastre que era Dilma Rousseff.
E aí o Brasil começou a descer a ladeira que parecia uma montanha russa. O resto você já sabe, o impeachment da Dilma Rousseff, a ascensão do Temer. O Temer era um político de centro, mas o PT acabou com ele em seis meses. Depois veio o Bolsonaro. Aí já se constituía com muita força a polarização entre os dois elementos, o PT dito esquerda e o Bolsonaro de direita. E na verdade o Bolsonaro puxou cada vez mais o governo para a extrema-direita e o PT puxou para esquerda. O que isso significava? O brasileiro passou a viver uma situação atípica. Passou a votar no Lula porque odiava o Bolsonaro, mas não porque ele gostava do Lula, e passou a votar no Bolsonaro porque o Bolsonaro era o anti-Lula. Passou a ser o país do contra animado por essa polarização bestial que o centro não conseguiu desfazer.
Perante tudo isto, insisto, que balanço faz, afinal, da democracia pós ditadura militar?
Eu me lembro dos tempos da ditadura. É sempre triste você viver na expectativa da ditadura. Eu me lembro muito bem que na ditadura brasileira você vivi e recentemente eu descobri vários documentos sobre mim. Documentos de 1974, 75. Eles invadiram a minha casa em Brasília e eu nunca soube disso. Você não tem um mínimo de liberdade, de privacidade, de respeito pela integridade das outras pessoas. E de certa maneira, o governo Bolsonaro representa essa ameaça. Essa ameaça volta a pairar sobre as nossas cabeças. Eu não acho que ele tenha competência para, no mundo digital, dar um golpe à antiga. Ele fala muito no golpe de 64, mas, por outro lado, a oposição é um político que se candidata sem programa e que, diz confia em mim, pega um cheque branco, acena para a população e diz que sabe cuidar do povo. O que é isso?
Se Tancredo Neves tivesse tomado posse, teria sido diferente?
Teria sido completamente diferente. A começar pelo espaço de decisão. Tancredo Neves tinha uma capacidade decisória absolutamente invulgar, absolutamente incomum. Eu recordo um episódio que aconteceu connosco em campanha, no dia em que” jogaram” uma bomba dentro do comitê do Tancredo Neves, em Brasília. Foi na sala em que eu trabalhava e nesse momento eu recebi a orientação de manter os jornalistas todos dentro daquela sala que estava completamente calcinada porque tinha sido lançada uma bomba incendiária. Tudo calcinado! Às 11h00, pontualmente, ele abriu a porta, olhou e disse: “ Meu Deus, como tem gente aqui hoje?” Eram jornalistas do mundo inteiro que queriam ouvir Tancredo sobre o atentado e ele perguntou: - “O que aconteceu com a sala?” - como se estivesse ignorando o que aconteceu. Fechou a porta e nunca mais se falou sobre o atentado. Tinha uma capacidade incomum de ultrapassar os assuntos, dar o assunto por vencido e abrir um assunto novo.
Por outro lado, não havia no Congresso Nacional um só deputado que tivesse coragem de enfrentá-lo politicamente, não tinha.
Como recorda aqueles momentos em que, afinal, Tancredo Neves não assumiu a presidência do Brasil? Que memórias é que guarda dessa altura?
Foi tudo muito trágico e muito doloroso. Até porque tínhamos muitas esperanças. Num dado momento eu fui chamado ao hospital, ainda em Brasília, para fazer uma foto que é muito famosa aqui no Brasil. Uma foto de Tancredo com os médicos e com a mulher dele. Lembro-me que ele estava muito bem naquele dia, e eu saí com uma esperança enorme de que ele estava a caminho da recuperação, mas nunca mais o vi, a não ser no caixão depois da morte.
Foi uma tragédia absoluta e foi uma tragédia brasileira, porque ali o corpo que estava no caixão não era de Tancredo, era do Brasil. Isso não foi dito por mim. Eu passei a parte daquela noite conversando com uma atriz brasileira que na época era muito respeitada. Além de ser lindíssima, Dina Sfat é uma grande atriz brasileira e um anjo. A certa altura ela colocou as mãos no meu ombro e disse-me: naquele caixão não está Tancredo Neves, está o Brasil.