Constantino Xavier

“A Índia preocupa-se com a Rússia próxima da China”

22 jul, 2022 - 23:00 • José Bastos

“A Índia é a única potência relevante que mantém uma relação fluída com todos os principais atores internacionais”, defende Constantino Xavier, académico do Centre for Social and Economic Progress, de Nova Deli.

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Entrevista a Constantino Xavier
Entrevista a Constantino Xavier

A invasão da Ucrânia por parte da Rússia entra já na semana 21. O conflito prossegue, o tacticismo toma conta da guerra e a comunidade internacional continua ativa e a assumir posições. Desde 24 de fevereiro os países ocidentais mostraram a sua condenação à ofensiva de Putin. Ainda assim, a partir do Oriente, de Pequim e Nova Deli a atitude de rejeição à invasão não tem sido tão clara.

No caso da India, a diplomacia de Nova Deli absteve-se na resolução das Nações Unidas que condena a Rússia o que implica um dos maiores desafios geopolíticos dos últimos anos para a nação indiana que mantém relações militares próximas com a Rússia, um fator chave para manter à distância um estado vizinho complexo, a China.

No Ocidente, o posicionamento indiano face à guerra na Ucrânia, ao omitir referir-se à invasão russa e a sua abstenção na votação no conselho de segurança e na assembleia geral da ONU, são vistas como um apoio tácito ao Kremlin.

Tendo a China e o Paquistão como vizinhos hostis, e vários conflitos fronteiriços ainda ativos, Nova Deli está, nesta crise, preocupada com a sua própria agenda, e a relação com a Rússia, fornecedora de 70% do seu equipamento militar, entra na categoria de alínea estratégica da sua estrutura de defesa. A Rússia é para a India não só o seu grande fornecedor de armas como um facilitador de mediação diplomática de Nova Deli com Pequim, Islamabad, e até com Kabul, onde os indianos perderam influência depois da retirada dos Estados Unidos.

Alguns analistas defendem que a India é talvez o único país numa posição singular: necessita tanto dos russos como dos seus amigos ocidentais para conter a China. É verdade que Nova Deli tem tentado diversificar os fornecimentos de material militar, mas mesmo tendo conseguido reduzir em 85% a dependência russa durante a guerra fria, através de negócios com Israel, França e Estados Unidos, a dependência é ainda significativa.

Agora, a estratégia política da India parece seguir as urgências deste tempo com um equilíbrio delicado: no curto prazo não pode prescindir das armas russas e no longo prazo também não pode descartar o apoio ocidental. Isolar a Rússia só irá contribuir para que a China seja mais forte, daí que Nova Deli pretende, na medida do possível, que esse canal de comunicação permaneça aberto com Moscovo.

Tendo este pano de fundo a análise é de Constantino Xavier, investigador do CSEP, Centre for Social and Economic Progress, de Nova Deli, em entrevista, circunstancialmente, concedida a partir de Bangkok, na Tailândia. Doutorado nos Estados Unidos pela John Hopkins University, Constantino Xavier tem uma trajetória académica marcada pelo estudo da política externa indiana e a relação de Nova Deli com os países asiáticos e o ocidente.

A India, num plano diplomático, menos público, já comunicou por várias vezes à Rússia que não gosta do que se passa na Ucrânia e que espera o compromisso de Moscovo numa solução de paz

A India absteve-se em votações de condenação nas Nações Unidas e distanciou-se como outros grandes países da Asia, Africa e América do Sul dos esforços do Ocidente para isolar a Rússia. Quais são as razões por detrás esta resposta da India à invasão russa ?

Há dois fatores. Há um fator mais imediato, económico e militar. A Rússia é um importante parceiro da India. Mais de 70% do equipamento das forças armadas indianas tem origem na Rússia - e na antiga União Soviética - e, portanto, para manter esse equipamento, os tanques, os caças a jato, a India precisa de manter uma relação forte com a Rússia e num registo positivo e não negativo que seria a consequência se a India condenasse Putin pela invasão, tal como a Europa, os Estados Unidos e outros países fizeram.

Para além desse ângulo militar e também económico - a Rússia é um país importante para a India no plano das trocas comerciais - há uma segunda dimensão: a India olha hoje para o mundo como sendo um sistema com dois blocos, um bloco liderado pelos Estados Unidos - a potência que ainda lidera a ordem internacional - e um outro bloco do lado da Ásia liderado pela China, com quem a India tem relações complicadas, mas que não deixa de ser o número dois, e porventura talvez o número um, numa futura ordem mundial.

Para a India é importante arranjar oxigénio, espaço de manobra, autonomia para além desses dois polos: Estados Unidos e China. Isso significa uma Europa mais forte, um Japão mais forte e, para a India, também uma Rússia que não seja enfraquecida e capaz de ser um parceiro importante nesse 'terceiro mundo' de países do ‘não-alinhamento’, esse terceiro bloco de países não alinhados, para além dos liderados por Estados Unidos e China.

A resposta de Nova Deli tem sido vista a partir do Ocidente como ambígua. Nova Deli recusa responsabilizar em publico Putin pela guerra, enquanto enfatiza o respeito tradicional da India pela soberania e integridade territorial. A India tem aumentado as exportações de petróleo russo, recebeu Lavrov em Abril, mantém os laços historicamente próximos com Moscovo, mas o primeiro-ministro Narendra Modi participou - por convite - com outros lideres do G20, na cimeira do G7, os sete mais industrializados, uma maioria de membros NATO. Mas se os lideres do G7 esperavam que o convite fosse uma oportunidade para um condenação explícita - isso não aconteceu. É parte do que parece ser a intenção da diplomacia indiana de estar em contactos com todos, o tempo todo. Durante quanto mais tempo vai ser possível manter esta atitude?

A India tem há já várias décadas essa abordagem à política internacional e vai continuar a manter durante muito tempo - talvez mesmo para sempre - essa atitude. O primeiro ponto é termos de perceber como é que os países asiáticos olham para esta ideia de condenar outros países, mesmo podendo não gostar.

A India, num plano diplomático, menos público, já comunicou por várias vezes à Rússia que não gostou do que se passa na Ucrânia e que espera o comprometimento de Moscovo com uma solução pacífica para o conflito militar, mas em simultâneo, como outros países asiáticos, não há essa tradição diplomática norte-americana e europeia de condenações abertas e vigorosas no plano internacional.

Outro ponto referido é o da India como potência ambígua no sentido de que joga em todos os tabuleiros. A India é hoje o único país relevante que tem uma relação de trabalho com a Rússia, com o Irão, com a China tem uma relação complexa, mas a China não deixa de ser o segundo maior parceiro comercial da India e, em simultâneo, esta mesma India tem uma relação fortíssima com os Estados Unidos e a India continua a manter cimeiras e reuniões de aproximação com a União Europeia. Obviamente do lado ocidental tem havido alguma desilusão com a posição da India face à Rússia, mas, sobretudo, tem havido uma certa compreensão de que esta é a forma como a India trabalha a sua proeminência no sistema internacional.

Como é que Nova Deli lê o argumento muito usado nas capitais ocidentais de que está em curso uma tentativa de criar uma nova ordem internacional - e que esta guerra não é apenas acerca da segurança europeia, mas sim da violação do direito internacional de forma mais abrangente.

Há quem defenda que a India tem uma leitura muito pragmática, isto é: sim, há uma crise na Ucrânia com efeitos globais nos preços da energia, gás, alimentos a criar sérios problemas na economia global. Pode haver um desafio á ordem europeia, mas não há uma ameaça ao balanço de poder na Ásia ou no Indo-Pacífico que permanece o mesmo. É real esta abordagem?

Do lado indiano o diagnóstico do momento histórico que estamos a viver, um período de transição, de incerteza entre várias potências, é um momento com ingredientes a ter origem num período que é anterior à guerra na Ucrânia. Exemplos, os Estados Unidos com vários indicadores em perda nos últimos dez anos, uma China a acelerar o crescimento económico e, acima de tudo, uma economia global que por várias circunstâncias estruturais, já desde 2008, 2009, da grande crise, nunca mais recuperou. Portanto, há aqui vários motivos lidos a partir da India como sendo de transição e de grande transformação da ordem económica e ordem geopolítica mundial.

A invasão da Ucrânia pela Rússia agudiza este quadro a vários níveis e acelera essa transição. A India mostra-se preocupação em particular por um aspeto: como é que a China e a Rússia se vão, ou não, entender e trabalhar em conjunto?. Este é um tema sobre o qual há várias leituras. Há uma leitura de preocupação indiana de que a Rússia está a aproximar-se da China. Há outra leitura interessante a que se alude menos no Ocidente, mas a ser debatida aqui na India, entre outros países asiáticos, de que a China também não se tem aproximado tanto assim de Moscovo e tem procurado também manter alguma distância desta Rússia mais agressiva e desta invasão que até parece ter apanhado os chineses de surpresa.

Mantendo então o epicentro do diálogo em Nova Deli, na vizinhança há vários motivos de preocupação para a diplomacia indiana. O Paquistão – arqui-inimigo atravessar uma grave crise - de resto temos a crise no Sri Lanka - a primeira turbulência da crise global dos alimentos, mas não só, mas no ultimo ano houve mudança de governos em Myanmar, Nepal, Paquistão e Maldivas - e este quadro de crise económica parece afastar a possibilidade de um grande acordo India-Paquistão, mas, por outro lado, temos a India a participar no Quad, o diálogo quadrilateral de segurança com a Austrália, Japão e Estados Unidos. Significa que, no essencial, Nova Deli quer precaver-se da China?

A India tomou uma posição estrutural que vai para além do neutralismo do 'tudo com todos'. Há uma posição que orienta a India de forma determinante e constante nos últimos anos: a China da forma como se comporta nos últimos anos é uma ameaça à ordem internacional em si como a conhecemos e, portanto, é preciso contrabalançar e equilibrar o sistema internacional. Daí, conceitos como o 'Indo-Pacífico' que já foi aceite pela União Europeia, pela França, a Alemanha, o Japão, a India, a Austrália, foram vários países no mundo a abraçar esse conceito.

Quando a India fala de ‘Indo-Pacífico’ não está a defender o isolamento ou enfraquecimento da China, mas está a falar de procurar integrar a China e convidá-la a ser mais responsável, mais pacífica. Quando se fala da Ucrânia olhemos para o mar do Sul da China e os indianos obviamente percebem haver ali uma ameaça à integridade territorial e um interesse de segurança que é central para a Europa, mas, ao mesmo tempo, a India - e as Filipinas, o Japão - tem estado a lidar, há anos, com uma China que tem ameaçado e invadido a integridade de vários outros países asiáticos, incluindo a India, o Butão e outros.

Portanto, neste lado aqui da Ásia há muitos jogos anteriores à guerra na Ucrânia. Nesse sentido a Ucrânia é até visto como um ponto que pode chamar a atenção para distintas dimensões dos jogos de poder na Ásia com muitos decisores indianos a referir que é positivo ver a Europa a acordar para a realidade. Obviamente é uma realidade protagonizada pela Rússia, uma realidade de proximidade, mas para além da Rússia este jogo tem sido jogado há anos na Ásia e a Europa não se pode abstrair de ponderar todos os fatores. Por detrás da Rússia pode estar a China, pode estar em equação o futuro do equilíbrio inteiro do Indo-Pacífico.

A Ásia-Pacífico promete muito do ponto de vista do progresso humano, mas também há um perigo latente. Pode dar para qualquer um dos lados. A India deverá ser já no próximo ano o país mais populoso do mundo com 1.4 mil milhões de habitantes, ultrapassando a China

E à volta desse equilíbrio do Indo-Pacífico, Sabemos da prioridade geoestratégica dos Estados Unidos para o Indo-Pacifico - Japão, Austrália, Coreia do Sul e Nova Zelândia estiveram na cimeira de Madrid - temos uma série de dilemas de segurança, chamemos-lhe assim, entre o Japão e a China, India e a China, ainda India e Paquistão - as questões dos limites marítimos da China, que historicamente sempre foi uma potencia continental, mas que agora faz a transição para ser também uma potencia marítima dependendo do mar para a alimentação, comercio e energia. Tanto a China, como Taiwan estão a olhar com atenção para a Ucrânia, tudo isto quer dizer que a Asia-Pacifico vai ser o local mais perigoso do ponto de vista geoestratégico este século?

A Ásia-Pacífico promete muito do ponto de vista do progresso humano, há uma promessa na Ásia, mas também, sem dúvida, há um perigo latente. Pode dar para qualquer um dos lados. Há uma promessa de crescimento económico. A India deverá ser já no próximo ano o país mais populoso do mundo com 1.4 mil milhões de habitantes, ultrapassando a China. A China que, atenção, está longe de atingir o seu máximo enquanto potencial de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, há perigos que se escondem por detrás dessas promessas e alguns desses perigos têm sido mais visíveis nos últimos anos. Alguns desses perigos tendem a agudizar-se no pós-guerra na Ucrânia e há consequências para a Ásia do que está a acontecer na Europa.

O Sri Lanka é hoje um país em colapso total, sendo que até há poucos anos era um país bastante estável a todos os níveis, incluindo o económico e governativo. Não se trata apenas da crise da Ucrânia e a influência de fatores como a inflação, o aumento do preço dos combustíveis e da alimentação, mas é também a ação de uma onda sistémica que vem complicar a ideia que tínhamos, pelo menos há quinze, vinte anos, em que só se falava da grande emergência da Ásia a beneficiar tudo e todos e a abrir o século asiático de crescimento contínuo para todos.

Voltando de novo à guerra na Ucrânia, e as potenciais consequências geopolíticas - sobretudo as consequências para as relações dos países ocidentais com o resto do mundo, já vimos que as perceções sobre o conflito, até mesmo as questões morais do conflito diferem das capitais europeias para muitas capitais do mundo - e sobre a capacidade das sanções diminuírem a capacidade da Rússia de levar a cabo guerras agressivas deste tipo - esta capacidade das sanções é vista de forma diferente noutras capitais - sobretudo num contexto de crise económica global. Como é que as sanções são vistas a partir da India?

Visto da India há o entendimento de que as sanções do ocidente à Rússia tem um duplo objetivo moral e político. Acho ser importante que as pessoas na Europa tenham a noção de que na Ásia a guerra na Ucrânia não é um assunto de que se fale regularmente. E quando se fala é para dizer que se trata de um assunto dos europeus. Um tema longínquo. É uma quezília que a Europa arranjou com a Rússia, uma quezília que a Europa não soube gerir bem. Obviamente os efeitos económicos geram preocupação, mas a visão que hoje se tem aqui na Ásia do que está a acontecer na Ucrânia coloca a análise num patamar de uma questão muito mais política e moral.

Quanto às sanções - não nos esqueçamos que o presidente Biden esteve na Polónia e pediu o fim do regime russo de Putin - é uma questão já vista com maior preocupação. Sanções com consequências potenciais importantes na Rússia - e daí consequências para a ordem regional e global - já são vista com maior relutância aqui na India. A India perceciona uma Rússia mais fraca, sabe que a India está fraca, sabe que Putin se retroalimentou das suas fraquezas criando complicações onde puderam nos últimos anos, incluindo na Ucrânia, e o entendimento do que seria o quadro ideal na atualidade para um decisor indiano seria o de reorientar a Europa e os Estados Unidos para o que realmente interessa: a China e a Ásia mais para além da Rússia. E isso agora é muito difícil de fazer com a guerra em curso na Ucrânia.

Como é que se olha em Nova Deli para a nova arquitetura mundial que pode emergir - sobretudo se o resto do mundo pensar e sentir que o Ocidente está consumido pelos seus próprios problemas e não olha para os assuntos globais - como alterações climáticas - numa perspetiva global. Que nova ordem pode emergir, a de um regresso aos blocos regionais?

Tal como no ocidente não há grande ambiguidade dos decisores em relação à India - percebe-se que a India tem os seus problemas, é possível estar desiludido face à posição de Nova Deli com a Rússia, mas continua-se a trabalhar como tem acontecido nos últimos meses no Quad, no G20, no clima, nas energias - deste lado indiano, embora se ache que a guerra na Ucrânia esteja a ser uma distração de recursos estratégicos ali na periferia europeia, também se percebe que Estados Unidos, a União Europeia e países europeus continuam capazes de influenciar a alteração de equilíbrio de poderes na Ásia.

A União Europeia tem uma estratégia para o Indo-Pacífico. O Presidente Joe Biden continua muito envolvido em todas as questões do Indo-Pacífico e da Ásia. Obviamente a questão agora é a de até quando irá durar esta guerra. Esta é a incógnita que preocupa a India, porque cada dia que passa com o conflito em curso é visto em Nova Deli com mais um dia de distração da resolução destas grandes questões do futuro a começar pelo desafio que constitui a definição do papel para a China numa nova ordem internacional.

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