07 jul, 2022 - 11:21 • António Fernandes , correspondente da Renascença em Londres
O mandato de Boris Johnson foi marcado por polémicas e mais polémicas, mas Johnson sobreviveu sempre. Quando Sajid Javid e Rishi Sunak apresentaram a demissão na tarde de terça-feira, 5 de Julho, o fim pareceu ficar próximo. Horas mais tarde avançou para uma rápida remodelação do Governo, convencendo Nadhim Zahawi (até então ministro da Educação) e o chefe de Staff Steve Barclay a assumir as posições deixadas vagas. Por momentos, Johnson, qual Houdini, pareceu capaz de escapar uma vez mais.
Quarta-feira mostrou um filme completamente diferente. Depois de Johnson se apresentar no debate semanal no Parlamento, as demissões acumularam-se, uma atrás da outra, ocasionalmente em grupo. Muitos estariam à espera de ver a reação do Primeiro-Ministro, mas ouviram antes as palavras do demissionário Sajid Javid, que apelou aos restantes ministros para se demitirem também, dizendo “enough is enough”, já chega. Para Javid, o primeiro-ministro tem de estabelecer o código, o standard, para todos os outros. Esse standard tem sido um de festas ilegais, mentiras no Parlamento e a nomeação de um ministro - Chris Pincher - sobre o qual tinha sido avisado para um passado que envolvia questões de assédio sexual.
No Parlamento, geralmente barulhento, caótico, imperou um silêncio depois das intervenções de Johnson. O primeiro-ministro disse que ainda tinha uma “maioria colossal” e que queria continuar. Esse silêncio do isolamento adensou-se à tarde. Enquanto Johnson se apresentava perante a Comissão de Ligação para discutir as suas políticas, um grupo de ministros, incluindo Nadhim Zahawi - ministro das finanças há menos de 48 horas - uniram-se para pedir a Johnson que se demitisse. Por vezes, durante a sessão, Johnson pareceu estar a viver numa realidade paralela. Quando lhe perguntaram sobre a sua semana, Johnson respondeu que estava a ser “igual a todas as outras”.
É verdade que Johnson está habituado a viver em crise, em constante polémica mas nunca o caos chegou a este ponto. Em Downing Street, dois grupos reuniram-se com o primeiro-ministro. Se o grupo que incluía Zahawi queria a sua saída, um outro grupo - onde estava Nadine Dorries, ministra da cultura - pedia a Boris Johnson para lutar pela sua posição. A situação parecia insustentável, mas Johnson decidiu ficar e lutar para continuar como primeiro-ministro. Queria remodelar o Governo e começou por demitir Michael Gove, ministro da Habitação, que foi o primeiro a dizer a Johnson, em privado, que devia sair.
Perante a recusa do primeiro-ministro em apresentar a demissão, o Partido Conservador sentia-se refém de Johnson e ponderava como o podia retirar de Downing Street. Discutiu-se a possibilidade de mudar as regas para permitir nova moção de censura, que só poderia acontecer no formato atual em Junho do próximo ano. Havia principalmente preocupação de que Johnson pudesse convocar novas eleições legislativas. A noite e a manhã de hoje trouxeram mais demissões e uma carta pública de Nadhim Zahawi a dizer que Johnson sabia “no seu coração qual era a coisa certa a fazer” e que se devia demitir “já”, porque a situação era “insustentável”. Perante a crescente insatisfação e cartas públicas atacando a sua falta de “integridade”, Johnson reuniu-se com Graham Brady, líder do Comité 1922 que regula o Partido Conservador, para o informar que tinha decidido demitir-se.
Ao longo dos quase três anos em que governou, Boris Johnson lidou com várias polémicas, desde ter pedido dinheiro a doadores do Partido Conservador para renovar o seu apartamento em Downing Street a ter mentido à rainha para que aprovasse um interregno ilegal do Parlamento, como estratégia no âmbito do Brexit.
Desde 30 de Novembro de 2021, o governo de Johnson tem vivido constante ebulição. Nesse dia, chegou aos jornais a história das festas em Downing Street, a sua residência oficial, durante os períodos de confinamento em 2020 e 2021. Uma dessas festas aconteceu no dia antes do funeral do Príncipe Filipe, que ficou marcado pela imagem da Rainha Isabel sentada sozinha, de máscara.
As festas, num caso que ficou conhecido como Partygate, tornaram-se assunto de polícia. Depois de confirmada a sua presença em várias festas, Johnson e vários ministros foram multados. Pelo meio, Johnson apresentou-se vezes sem conta no Parlamento, primeiro negando as festas, depois dizendo que acreditava não ter quebrado as regras.
O caso que levou ao fim do seu mandato começou há pouco mais de uma semana. Chris Pincher, membro do Governo, foi acusado de comportamento inapropriado e assédio sexual. Pincher demitiu-se e foi suspenso como deputado Conservador. Quando confrontado com o caso, Johnson disse não conhecer as alegações. Os seus ministros apresentaram-se à imprensa, defendendo que Johnson não sabia desse passado de Pincher. Só que dia 5 de Julho, uma carta de Lord McDonald, antigo membro do ministério dos negócios estrangeiros, disse que Johnson tinha sido informado em 2019 sobre alegações contra Pincher e mesmo assim nomeou-o para o Governo.
Johnson pediu desculpa por ter feito um mau “julgamento de carácter”, mas as cartas de demissão começaram a chegar ainda nesse dia pela mão de dois dos seus ministros mais fortes - Rishi Sunak e Sajid Javid. O conhecimento prévio de Johnson e o facto de ter mentido aos ministros que o defenderam levaram ao crescer da insatisfação.
Foram precisas mais de 50 demissões para Johnson decidir apresentar a demissão. Deve ficar no cargo até ao outono, período em que vão decorrer eleições internas no Partido Conservador para escolher o próximo primeiro-ministro. Foi também assim que Johnson chegou a Downing Street, depois da demissão de Theresa May. No entanto, há ainda discussões sobre se Johnson tem condições para liderar até essa decisão e pode até ser nomeado um primeiro-ministro interino.
Para evitar esse cenário, Johnson já conseguiu preencher as inúmeras vagas no Governo causadas pelas demissões.
Boris Johnson assumiu o cargo a 24 de Julho de 2019 com uma missão acima de todas as outras: concretizar o Brexit e recuperar o controlo das fronteiras. Esse mandato foi reforçado depois de ganhar as legislativas, em Dezembro do mesmo ano. Depois de dezenas de votos no Parlamento e adiamentos, o Reino Unido saiu da União Europeia a 31 de Janeiro de 2020. Poder-se-ia dizer que o grande objectivo de Johnson foi cumprido, mas a que custo? Perante a sua recusa em estender o prazo para negociar, Johnson tirou o Reino Unido da União Europeia mas com um acordo comercial deficiente e um protocolo da Irlanda do Norte que levou a novos problemas, criando uma fronteira marítima entre regiões do Reino Unido.
As burocracias acrescentadas pelo Brexit prejudicaram os negócios britânicos e a mais difícil obtenção de vistos por parte cidadãos europeus levou à falta de trabalhadores. Pelo meio surgiu a pandemia, e os apoios que o Governo deu a negócios e trabalhadores foram aplaudidos mas o consequente aumento de impostos levou a insatisfação dos seus deputados e eleitores.
Por mais casos que houvesse, o Governo sempre defendeu que nas grandes decisões acertou. Concretizou o Brexit, liderou um programa de vacinação de sucesso e foi líder no apoio à Ucrânia depois da invasão russa. O contexto geral num “verão de descontentamento” mostra que isso não foi suficiente.
O país está paralisado por greves nos transportes, aviação e na justiça. Há ameaças que professores e funcionários do Serviço Nacional de Saúde, o NHS, podem seguir esse caminho também. Na Escócia, a primeira-ministra escocesa Nicola Sturgeon definiu o caminho para um novo referendo à independência, que Boris Johnson recusou. Na Irlanda do Norte, não se consegue estabelecer um governo. O Sinn Fein, que venceu as eleições não quer assumir Governo se o Reino Unido quebrar o protocolo da Irlanda do Norte de forma unilateral, enquanto os unionistas não aceitam fazer a coligação obrigatória pelo Acordo de sexta-feira santa enquanto o protocolo mantiver os moldes atuais.
O fim de um mandato tumultuoso, errático e polémico deixa um Brexit que criou mais problemas do que resolveu e um país com uma inflação galopante e uma crise do nível de vida. Johnson manteve-se positivo até ao final, mas a imagem dos Conservadores e da cultura em Downing Street sai prejudicada pelo seu tempo à frente do país.
As críticas públicas a Johnson acumularam-se nos últimos dias, mas a demissão é talvez a sua única ação recente a ser bem recebida. O primeiro-ministro do País de Gales, Mark Drakeford, disse que Johnson fez “a coisa certa”. Na Escócia, Nicola Sturgeon defende que a demissão será “um alívio depois de meses de caos”. A demissão também é bem vista pelo líder da oposição, Keir Starmer, enquanto no Partido Conservador o deputado Robert Buckland diz que Johnson fez uma “vénia ao inevitável”.
Para os Conservadores é tempo de eleições internas, acreditando que a escolha do próximo primeiro-ministro será vital para recuperar a confiança do eleitorado britânico depois do dano causado por meses de escândalos e caos que impediram o Governo de fazer o seu trabalho: governar.
Esta manhã, mais seis ministros abandonaram o Gove(...)