Entrevista a Scott Lucas

“Putin fora do Kremlin? É uma maratona, não um sprint”

06 mai, 2022 - 23:10 • José Bastos

“A janela de tempo para Putin ter sucesso na Ucrânia está a fechar-se e, em breve, o foco vai estar em como poderá o autocrata controlar a sociedade russa, enquanto comandante de um exército derrotado”, defende Scott Lucas, professor da Universidade de Birmingham.

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Entrevista a Scott Lucas

A cada 9 de maio, um enorme desfile militar preenche a Praça Vermelha, em Moscovo. Mais do que uma data chave no calendário político-militar - a reunir milhares de soldados, tanques, helicópteros e aviões – o momento é uma ocasião tradicional para uma demonstração de força da Rússia ao mundo.

No entanto, desde o início da guerra na Ucrânia, o poderio do exército russo está a ser questionado. Assim, esta segunda-feira pode ser uma oportunidade para Putin tentar inverter a imagem desgastada de uma força militar muito aquém das expectativas.

O “think tank” britânico RUSI pergunta se Putin pode deixar de lado a expressão ‘operação militar’ para declarar oficialmente a guerra à Ucrânia, por bizarro que possa parecer visto do ocidente. A afirmação está longe de ser meramente simbólica, porque Putin poderia declarar a lei marcial e convocar milhares de reservistas. Fontes norte-americanas apostam a futura anexação das regiões de Lugansk e Donetsk para manter o discurso de uma Rússia vitoriosa.

Na análise de Scott Lucas, professor emérito da Universidade de Birmingham, Putin “não vai fazer uma declaração de guerra” porque teria de encontrar uma razão substantiva para mudar a narrativa oficial de “operação especial’ para ‘guerra’, difícil de justificar sem reconhecer que foi derrotado na pretensão inicial de tomar Kiev.

Em entrevista à Renascença, Scott Lucas defende que a União Europeia está a funcionar bem nas sanções económicas, mas o grande teste virá quando surgir o cronograma para reduzir drasticamente as importações de gás. O professor da Universidade de Birmingham elogia a resistência ucraniana e defende que, nas próximas semanas, Putin vai ter um intervalo de tempo para ter uma vitória que alavanque a sua permanência no poder.

“Essa janela temporal está a fechar-se a um ritmo diário na proporção inversa da ajuda militar e económica do ocidente à Ucrânia e a pressão aumenta cada vez mais e mais para Putin”. Pode ser o fim de Putin? “Na Rússia o poder de Putin não desaparece do dia para a noite. Trata-se de uma maratona em vez de um sprint”, afirma Scott Lucas.

A Ucrânia não pode sentar-se nesta altura numa mesa de negociações com cedências ao Kremlin. Putin vai ter de sofrer uma derrota militar significativa, isto é, nova derrota militar antes de se poder falar em negociações de paz.

Pode ser esperado algo extraordinário de Moscovo no dia 9 de maio? Falou-se de uma declaração de guerra, mesmo que soe ridículo no Ocidente. A declaração poderia desencadear uma maior mobilização da sociedade russa e do Estado?

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, sugeriu na última quarta-feira que, ao contrário de alguns rumores e de alguma especulação, Vladimir Putin não vai, e enfatizo, não vai fazer uma declaração de guerra à Ucrânia. Por outras palavras: não vai anunciar uma mobilização geral.

E seria difícil para o Kremlin defender essa posição porque a narrativa oficial, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro, é a de que se tratava apenas de uma 'operação militar especial'. Na versão do Kremlin não se tratava de uma guerra aberta e total contra a Ucrânia, mas sim uma 'operação militar especial' para proteger a região do Donbass.

Claro, todos sabíamos desde o início que não era verdade porque os russos estavam a atacar Kiev, estavam a atacar outras cidades, estavam a tentar derrubar o governo de Zelensky. Mas, ainda assim, essa ficção estava a ser mantida no plano doméstico para a população russa.

Assim tendo sido para Putin vir dizer agora: ‘não, não, não é uma operação especial, é uma guerra, teria de encontrar uma razão substantiva para a mudança. Aquilo a que estou atento nestes dias que nos conduzem ao 9 de maio, é onde Putin conseguirá obter a ‘sua vitória’ que, já o sabemos, não virá com tropas russas em Kiev.

As tropas russas já se retiraram do norte da Ucrânia. Os russos foram objetivamente derrotados na primeira fase da operação. Estamos já a observar uma segunda fase do conflito, centrada no leste e no sul da Ucrânia.

Putin não vai, e enfatizo, não vai fazer uma declaração de guerra à Ucrânia

Na nova redefinição de prioridades, os russos estão a tentar no Donbass para, no fundo, tentar adicionar território às áreas ‘proxy’ russas das regiões de Donetsk e Luhansk. Mas o seu progresso no terreno está a ser muito lento.

Algumas pequenas cidades já caíram nas mãos dos russos, mas nenhuma das grandes cidades. As forças russas, como vimos na primeira fase da invasão, têm problemas logísticos, problemas de abastecimento, problemas com a moral das tropas e estão a enfrentar contra-ataques do exército ucraniano.

Nesse sentido, não acredito que possamos assistir a um controle geral do Donbass por parte dos russos até 9 de maio e isso fará concentrar a atenção em Mariupol.

Na última quarta-feira constatou-se que, tendo finalmente permitido a evacuação de cerca de 100 civis do complexo siderúrgico Azovstal, a que se somam dias antes outros 80, os russos recrudesceram os ataques e, de acordo com as autoridades ucranianas, com artilharia ainda mais pesada.

É a minha opinião de que os russos vão querer muito – do ponto de vista simbólico e do dia 9, forçar a rendição das forças ucranianas entrincheiradas no complexo Azovstal e, claro dos 200 civis, incluindo 30 crianças, que ainda lá se encontram.

Como descreveria o momento atual do conflito? É um daqueles impasses em que nenhum dos inimigos está – ainda – interessado na paz, mas sim em alavancar no campo de batalha um futuro peso negocial?

No início da invasão russa, acho que o governo Zelenskiy teria negociado se a questão tivesse sido colocada pelos russos. A Ucrânia estava a enfrentar a primeira fase do que se supunha ser um ataque esmagador. Os militares ucranianos não tinham a certeza se poderiam resistir, não apenas em terra, mas contra a força de caças e bombardeiros russos nos céus e navios de guerra disparando mísseis dos mares Negro e Cáspio.

Nessa fase inicial julgo que Zelenskiy estaria aberto a negociações sobre o estatuto do Donbass, sobre o estatuto da Crimeia, sobre o conceito de neutralidade ucraniana. Noutro contexto, a Ucrânia chegou a assumir o compromisso formal de desistir por tempo indeterminado do pedido de adesão à NATO.

Mas agora que se entrou no terceiro mês do conflito com os ucranianos a derrotar objetivamente as forças russas, ou pelo menos, a resistir aos russos com sucesso, não acho que a Ucrânia possa nesta altura sentar-se numa mesa de negociações avançando com uma série de cedências a Putin.

De resto, recordo que as propostas negociais avançadas no final de março por Kiev, que são realmente as propostas mais detalhadas que tivemos, a surgir da Ucrânia para o Kremlin eram do tipo: ‘estamos abertos a discutir um período de negociações mútuas de 15 anos sobre o futuro da Crimeia, estamos a abertos a negociar garantias de segurança para ambos os lados. Podemos discutir sobre não pertencer à NATO. Mas, ainda assim teremos de ter garantias de segurança de outros países’. Era esta a atitude de Kiev ... deixou de ser.

Que resultado pode ser percecionado como uma vitória para ambos os lados? Em termos políticos puramente internos na política russa o que será uma vitória de Putin? Por outro lado, o que constituirá também um triunfo de Zelenskiy e do Ocidente?

Um quadro que permita a passagem à mesa negocial - e não lhe chamaria de vitória porque é muito complexo partir para a via diplomática depois de um conflito militar tão devastador - seria dialogar para ter uma consulta/referendo independente sobre a Crimeia, assumindo que está a ser ‘de facto’ ocupada pelos russos. Ou a Ucrânia dizer que ninguém vai forçar militarmente a saída das forças russas.

Outra possível rampa de lançamento de negociações seria, no caso do Donbass, dizer: ‘essas regiões russófilas e ‘proxys’ de Moscovo serão permitidas e não iremos destituir do poder os ucranianos pró-russos, podemos negociar uma espécie de quadro federal ou autonómico’.

Acho que esta possibilidade ainda existe por parte de Kiev, mas Putin não quer negociar. De resto, tenho de sublinhar que em nenhum momento depois de 24 de fevereiro ou antes da invasão foi intenção de Putin negociar o que quer que fosse.

Por razões de política interna, Vladimir Putin já havia sinalizado à sociedade russa que queria tornar a Ucrânia parte da Rússia. Putin deixou entender que este seria o seu legado. E quando Putin envia uma força militar tão expressiva, não apenas para o leste da Ucrânia, mas tentando capturar Kiev, a tentar derrubar o governo legítimo e substituí-lo por um executivo fantoche é muito difícil afastar-se dessa narrativa inicial.

De resto, Putin ainda continua nesse discurso ao lançar mais forças para o leste da Ucrânia. Putin e os seus comandantes militares ainda estão a falar sobre como controlar todo o sul da Ucrânia, embora, pessoalmente, eu não ache essa possibilidade viável para os russos.

Neste contexto, Putin vai ter de sofrer uma derrota militar significativa, isto é, outra derrota militar significativa antes de podermos falar sobre negociações de paz.

A União Europeia nunca funcionou bem, mas neste caso a resposta à invasão russa tem funcionado. Esperemos o corte das importações do petróleo e só então se chegará à grande questão, o gás natural, para realmente atingir a Rússia no plano económico.

A UE apresentou propostas para uma nova ronda, a sexta, de sanções à Rússia, incluindo a proibição total das importações de petróleo russo até o final do ano. Existe aqui o risco de sobrecarregar o contribuinte europeu e a economia? E quanto ao risco de desunião na União Europeia? Já está a acontecer com a Hungria...

Já entramos, na última quarta-feira, na fase em que se já se produzem discussões detalhadas sobre o corte total das importações do petróleo russo até o final de 2022. Já se está a ver que não será um processo fácil. Temos a Hungria a resistir às propostas da Comissão Von der Leyen. Acho que a Hungria vai tentar uma isenção para poder manter o seu próprio abastecimento de petróleo russo por algum tempo. A Bulgária também pede uma isenção e a Eslováquia igualmente solicita uma isenção de três anos.

O cenário mais provável é uma interdição da União Europeia à importação de petróleo russo, mas não para todos. Alguns países receberão isenções de Bruxelas porque têm uma alta dependência do petróleo russo, como a Eslováquia, ou, vamos lá ser honestos, porque têm líderes como o húngaro Viktor Orban, que ainda é muito próximo de Vladimir Putin.

Mas acho que a União Europeia, como tem feito ao longo desta crise, foi realmente capaz de concertar esforços diplomáticos para que os 27 membros já tivessem concordado com cinco rondas de sanções e tentar adotar uma linha política comum contra a invasão da Ucrânia.

E, sublinho, muitos dos países membros da União Europeia, é claro, agora fornecem ajuda militar significativa à Ucrânia. Portanto, a União Europeia nunca funcionou bem, mas neste caso, a resposta à invasão russa tem funcionado. Esperemos ver ainda um corte significativo nas importações de petróleo até o final deste ano.

Só então chegaremos à grande questão, que é a Europa reduzir drasticamente as importações de gás da Rússia para poder realmente atingir Moscovo no plano económico.

Nesse contexto, como fica a Alemanha que desempenhou um papel tão controverso na última década, pelo menos, nas relações com Putin. Como é que a História irá julgar Merkel e Schroeder?

Essa é uma pergunta complexa sobre as relações da Alemanha com a Rússia e com a Ucrânia. A História não será simpática, por exemplo, com o ex-chanceler Gerhard Schroeder, sobretudo no plano das suas ligações com o Estado russo via um braço da sua máquina económica, como a Gazprom.

Outros políticos alemães, incluindo a chanceler Merkel, podem ser vistos como se tendo ‘esforçado’ demais para se ‘acomodar’ a Vladimir Putin após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, já depois das regiões ‘proxy’ russas terem sido restabelecidas no leste e durante o período em que Putin, objetivamente, levou a cabo uma guerra híbrida durante quase oito anos.

Falo das operações de pirataria informática na área da cibersegurança, ações de sabotagem económica e ações de desinformação. O que realmente importa agora em 2022 é o que o atual governo alemão está a fazer para enfrentar este quadro. Tem-se registado muita tensão interna, porque é um governo de coligação, mas tem havido um debate abrangente.

O governo alemão não reagiu rapidamente, é certo, mas atente-se onde se encontra a Alemanha, agora no terceiro mês do conflito. A Alemanha está envolvida nas sanções e, apesar da sua dependência, prometeu nos últimos dias apoiar o corte definitivo da importação de petróleo russo até ao final de 2022.

Os responsáveis alemães ainda não se comprometeram com um cronograma de corte das importações de gás, mas os analistas acreditam que essa rutura está prevista para 2024. Alguns observadores dirão que não é ainda uma reação suficientemente ágil, mas é um movimento significativo se o ponto de referência for a posição onde Berlim se encontrava há um ano.

A Alemanha está também agora a fornecer assistência militar à Ucrânia. Pela primeira vez Berlim está a fornecer a Kiev veículos blindados pesados, os sistemas de tanques antiaéreos, os Flakpanzer Gepard, estão a ser entregues aos ucranianos. É algo que, há tempos, não se antecipava como possível por parte da Alemanha.

A Alemanha movimenta-se de forma suficientemente rápida para aqueles que defendem uma Ucrânia totalmente defensiva? Não, acho que não. Mas acho que podemos dizer que a Alemanha está envolvida neste esforço por parte dos aliados, por parte da UE, em vez de ter ficado de lado, em vez de se ter auto-marginalizado no apoio a Kiev.

A cartada nuclear não vai dar a vitória à Rússia

Como avalia o envolvimento muito ativo dos Estados Unidos nesta crise? E devemos estar muito preocupados quando a Rússia ameaça com a cartada nuclear?

O ponto é que quando se dá um empurrão a um ‘bully’, o rufia não se baixa de imediato. O valentão vai bater no peito e dizer ‘eu apanho-te’. É isso o que estamos a ver por parte de Putin.

Putin não sabe recuar. Vladimir Putin só enverga a máscara de quem avança. E assim, quando ele diz ‘temos essas armas de consequências imprevisíveis, se o ocidente direcionar a sua ajuda militar para a Ucrânia, temos essas armas nucleares que estão entre as melhores do mundo, temos opções se a Ucrânia tentar aderir à OTAN’, quando Putin diz tudo isso ele está a bater no peito.

O ponto e a realidade é que as armas nucleares não mudarão a situação na frente da batalha na Ucrânia. A cartada nuclear não vai dar a vitória à Rússia. E se a Rússia usar armas nucleares, o seu isolamento político por parte de todos os países, incluindo países como a China, será garantido.

Assim sendo, neste momento – e muito embora tenhamos sempre de estar preocupados com um país que tem armas nucleares - acho que a situação não é ainda de um cenário de escalada iminente para o uso de armas de destruição em massa numa escala expressiva, desde logo dado o grau de destruição já registado na Ucrânia.

Agora, qual é a outra parte da equação nesta análise sobre o risco nuclear? Os Estados Unidos? Acho importante que este conflito não possa ser visto como uma guerra por procuração entre EUA e Rússia. Mas, claro, certamente é assim que o Kremlin quer ver retratada a guerra na Ucrânia.

Certamente é assim que os apoiantes do Kremlin no Ocidente, incluindo ativistas nos EUA e no Reino Unido, tentam enquadrar a guerra. É tudo culpa dos EUA por tentar cercar a Rússia através da NATO. O ponto aqui é tratar-se da invasão russa à Ucrânia. Não esquecer.

É uma força militar a invadir outro estado soberano, com assassinatos em massa de civis, com crimes de guerra. Um quadro que necessita de uma resposta, não apenas dos EUA, mas da comunidade internacional. Uma resposta que tem de incluir países como Portugal.

Tem de incluir países de toda a Europa. Deve incluir países de outras áreas do mundo, como Austrália, Japão, Coreia do Sul, Canadá. Deve incluir também a tentativa de fazer com que outros países do Oriente Médio, Índia e Paquistão também tentem adotar uma atitude de condenação e de desafio da invasão russa.

“Quando se dá um empurrão a um ‘bully’, o rufia não se baixa logo. O valentão vai bater no peito e dizer: ‘eu apanho-te’. Tem sido esta a reação de Putin quando fala de armas de consequências imprevisíveis”

Nesse sentido, acho que a administração Biden, tardiamente - digo tardiamente porque a comunidade internacional foi muito lenta no apoio a Kiev – tardiamente é certo, mas está a fazer um bom trabalho.

Washington apostou em sanções económicas efetivas que não impediram os ataques militares russos, mas pressionaram Moscovo e a Casa Branca promoveu um aumento significativo da ajuda militar.

Bom, é certo que a razão pela qual a Ucrânia não entrou em colapso é, em primeiro lugar, por causa da própria Ucrânia.

É por causa do seu povo, seus militares e do seu governo. Mas a comunidade internacional, incluindo os EUA, tem sido útil para garantir que, nesta altura, a Ucrânia ainda permaneça como um país independente. E esta invasão já dura há quase três meses.

E Putin? Este tipo de autocracia pode sobreviver à guerra? Depende dos efeitos das sanções e do risco de a Rússia se tornar uma potência pária no quadro internacional?

É sempre arriscado quando, neste momento, se olha para uma bola de cristal poder ver o que vai acontecer para lá da frente de batalha na Ucrânia e poder antecipar o que vai acontecer a seguir na Rússia. Trata-se de um país onde Vladimir Putin ampliou muito o seu poder pessoal e político há já mais de duas décadas como líder, em muitos aspetos um poder expandido com base na sua experiência anterior como chefe da KGB.

Trata-se de um país onde o espaço político se contraiu, onde a oportunidade de expressar uma opinião diferente da oficial, seja através dos órgãos de comunicação, seja por intermédio de políticos da oposição, ou via sociedade civil, foi drasticamente reduzida. Neste momento Vladimir Putin e o Kremlin ainda controlam a grande maioria dos meios de comunicação social russos. É muito difícil escutar ou ler uma voz discordante nos media.

Putin e o Kremlin ainda dominam a Duma. Putin e o Kremlin ainda controlam a maior parte do espaço político e público. Só num quadro hipotético, a partir de uma posição em que a Rússia tenha sofrido uma derrota militar significativa, ou num cenário em que a economia tenha entrado em colapso de uma maneira tão expressiva, se criaria uma atmosfera com condições para o círculo íntimo de Putin se poder revoltar contra ele.

Ainda não estamos nesse ponto. Isto é, ainda não se chegou ao cenário dos primeiros dias da guerra, onde vimos o rublo cair 30% num único dia, onde seguimos bancos e empresas russas em crise, empresas russas a enfrentar o isolamento do sistema internacional e onde testemunhamos multinacionais a abandonar a Rússia.

Nós observamos essa reação, mas não significa que, na Rússia, o poder de Putin desapareça de um momento para o outro. Noutras palavras, trata-se duma maratona em vez de um sprint para retirar o poder a Putin.

Coloco a questão desta maneira: para Putin ter uma vitória que alavanque e justifique a sua permanência no poder ele precisa de uma certa janela temporal. Nas próximas semanas, Putin vai ter uma janela de tempo para finalmente apresentar algum tipo de ampliação no controlo russo do sul e leste da Ucrânia. Essa janela temporal está a fechar-se a um ritmo diário na proporção inversa da ajuda militar e económica do ocidente à Ucrânia e, francamente, a pressão aumenta cada vez mais e mais para Putin.

E quando essa janela temporal se encerrar definitivamente – e eu penso que vai fechar – o nosso foco vai desviar-se da Ucrânia para tentar perceber como vai Putin continuar a controlar a sociedade russa quando, na prática, ele será o comandante de um exército derrotado.

Do lado da Ucrânia, Zelenskiy foi eleito presidente com três de cada quatro votos dos eleitores. Onde está agora a sua popularidade eleitoral? Quatro em cada quatro? Zelenskiy é ‘o Churchill ucraniano’?

Ninguém consegue 100% de popularidade, ninguém obtém em quatro em cada quatro e Zelenskiy não é ‘o Churchill ucraniano’. Ele é o ucraniano Zelenskiy.

Quero dizer algo cautelosamente, sobre o nosso primeiro-ministro britânico, Boris Johnson e não sou grande fã dele.

Na última terça-feira, Boris Johnson discursou em vídeo no parlamento, bateu no peito e disse aos deputados ‘esta é a melhor hora da Ucrânia’. Isto é, Boris Johnson queria ser Churchill a discursar para o povo ucraniano. Mas um deputado da oposição ucraniana disse: ‘olhe, este não é nada o nosso melhor momento. Estamos a viver um inferno, a Ucrânia está no inferno’.

Acho que é assim que o presidente Zelenskiy deve ser visto. Zelenskiy não tinha experiência política anterior, apenas tinha sido ator.

Um comediante famoso da televisão que faz uma campanha eleitoral como um outsider eleitoral em 2019 e é eleito. Zelenskiy assume o poder num país seriamente dividido no plano político, económico, socialmente e com problemas de corrupção. Zelenskiy ainda estava a desenhar o seu caminho quando a invasão russa teve lugar.

Acho que estou a falar agora em nome dos meus amigos ucranianos e quase todos eles, incluindo aqueles que não votaram em Zelenskiy em 2019, dizem-me que este homem está a ser um líder, um líder impressionante, o exato líder de que a Ucrânia precisava neste momento da História.

Mas não se trata apenas de Zelenskiy. Os meus amigos ucranianos falam também de figuras à volta do presidente, como o ministro dos negócios estrangeiros, Dmytro Kuleba, como a procuradora-geral que tem falado sobre os crimes de guerra russos.

Foram os militares ucranianos, foi o próprio povo ucraniano e os militares que se ofereceram para se rebelar contra a invasão russa, mesmo, e apesar das atrocidades descobertas dia a dia. Foi essa gente anónima que se ofereceu para devolver o país a Zelenskiy.

Não sabemos como a guerra irá evoluir. E objetivamente, depois da frente de batalha ser fechada, ainda há uma cartada política a ser jogada e que terá que passar pelo regresso ao comando total por parte de Zelenskiy.

Mas até lá neste ponto em que nos encontramos, o capítulo que está a ser escrito é o de um presidente a ser visto por seu povo como um herói num momento em que o mundo precisa de heróis. Zelenskiy é o homem no local onde aconteceu o que aconteceu em Kiev.

Estamos ainda em pandemia, temos em andamento o desastre das alterações climáticas e agora a guerra na Ucrânia. Qual é a minha conclusão? A de que nenhum país vence sozinho.

Prever o futuro - como disse - é complexo, mas em tempos de tantas incertezas é uma tarefa difícil, às vezes impossível. Nós sabemos. Mas como vê o dia seguinte ao fim desta guerra no plano político e económico, tanto na Europa quanto na geopolítica mundial? Esta crise confere uma vida nova e um sentido de propósito para a NATO. Mas, por outro lado, temos a China, o país que mais lucrou com a globalização. A China pode aproximar-se da Rússia. Afinal, existe Taiwan... Como desenha o futuro olhando para a Ucrânia 2022?

Vou situar a resposta num contexto mais amplo. O pano de fundo marcado por todos os pontos de viragem pelos quais já passamos nos últimos anos e que trouxeram consigo tanto desastres causados pelo homem como desastres naturais.

Iraque 2003 foi um momento de catarse que fez fracassar a tentativa americana de ser a potência unipolar num momento em que, acho eu, os Estados Unidos perderam toda a possibilidade de se assumir como a única superpotência global. A seguir passamos pela grande recessão de 2008, 2009, a crise das dívidas soberanas que afetou tantos países e cujas consequências continuam a fazer-se sentir em muitos deles.

Depois veio a chamada 'Primavera Árabe´, com todas as revoltas populares no Médio Oriente e Norte da África, e depois pudemos ver quantas dessas 'primaveras' não se tornaram protagonistas duma história com final feliz.

Passámos a seguir pela pandemia, ou estamos ainda na pandemia, aliás, e além dessa ameaça, temos em andamento o desastre das alterações climáticas. E agora temos a guerra Ucrânia a somar-se a todos estes acontecimentos. Qual é a conclusão que eu extraio de tudo isto? A de que nenhum país consegue vencer sozinho no final da história.

Por algum tempo, os Estados Unidos chegaram a atuar ofuscados por essa ilusão de vitória em solitário. Não quero pensar que Washington continue a operar sob o efeito dessa ilusão. Espero sinceramente que não. Pensando bem, agora provavelmente temos outra ilusão, pelo menos, a da Rússia, com Vladimir Putin a pensar poder ser ele o vencedor no final da história.

Estamos a descobrir que não vai ser o caso. Outros vão dizer que será a China a ganhar. Xi será o vencedor no final da história e a China será a potência dominante, mas ninguém domina o mundo.

Quem tentar dominar o mundo, acabará por levar um pontapé nas costas. Então a segunda lição que eu extraio é que nalgum momento temos de voltar ao multilateralismo, ao discurso global sobre os problemas globais. Temos de regressar a um momento em que se fale de um mundo que pode concordar com certos direitos básicos para todos, um mundo em que há um direito básico de que não se invada outro país, que não se mate, não se pratique crimes de guerra, que possamos estar a falar sobre a Ucrânia, ou sobre o Iémen ou se falamos sobre o passado no Iraque ou se falamos sobre crimes que são cometidos num lugar como a Palestina.

Concordar que toda a pessoa merece o direito de ter saúde, educação e segurança, e que não se está a dar essas garantias básicas. E concordarmos que quando se trata de algo como alterações climáticas ou a saúde global após a pandemia, estamos todos juntos.

Porque se não continuarmos todos juntos, se dividirmos o mundo em Rússia Vs Ucrânia, China Vs Taiwan, Israel Vs Palestina, vamos continuar a retroalimentar ciclos de conflito onde ninguém ganha. Neste caso não há um vencedor e um derrotado.

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