Guerra na Ucrânia

“Só te consegues aproximar com uma câmara de um homem armado tanto quanto este deixar”

06 mai, 2022 - 07:26 • Fábio Monteiro

É possível cobrir uma guerra dos dois lados? Só se for do interesse de ambos. “Na crise no Kosovo, os sérvios tinham a perceção de que se colocassem meios de comunicação ocidentais rapidamente em locais dos bombardeamentos da NATO, isso iria minar o apoio público pela guerra. Eles tinham algo a ganhar com isso”, lembra Jake Lynch, antigo jornalista da Sky News, em declarações à Renascença.Na guerra na Ucrânia, o acesso às trincheiras russas tem sido um problema. “Temos de ir à procura do contraditório. Mas aqui não há contraditório, porque o contraditório é falso”, diz a professora universitária Dora Santos Silva.

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A guerra na Ucrânia começou há pouco mais de dois meses. Desde então, foram emitidas e escritas milhares de reportagens sobre o conflito. Pelo menos dezoito jornalistas perderam a vida para relatar o que se está a passar em solo ucraniano. Tudo isto para contar a História – enquanto esta ainda está a decorrer.

A narrativa vigente é: de um lado, estão os invasores russos, sob o jugo de Putin, e, do outro, a resistência liderada por Zelenskiy. A larga maioria dos relatos que chegam da Ucrânia, porém, proveem das trincheiras ucranianas.

Até ao momento, apenas um jornalista português terá conseguido acesso às forças militares russas; ligado ao PCP, Bruno Amaral de Carvalho é autor de reportagens que têm sido alvo de contestação por reproduzirem a justificação do Kremlin para a invasão: a alegada desnazificação da Ucrânia. Nas redes sociais, a ex-eurodeputada Ana Gomes acusou o jornalista de ser um “infiltrado”.

Ao contrário do que aconteceu noutros conflitos de memória recente – como a guerra nos Balcãs, a invasão norte-americana do Afeganistão –, na guerra na Ucrânia não há (praticamente) correspondentes a cobrir o “outro lado”. O primeiro artigo do Código Deontológico dos jornalistas portugueses é explícito ao dizer: “Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso.”

Cobrir ambos os intervenientes de uma guerra, contudo, é em muitos casos uma ambição irreal, para não dizer impossível. “A regra de ouro de reportagem de guerra é: só te consegues aproximar com uma câmara de um homem armado tanto quanto o homem armado deixe”, diz Jake Lynch, antigo jornalista da Sky News e professor universitário no departamento de Estudos sobre Conflito e Paz na Universidade de Sidney, Austrália, em declarações à Renascença.

Lynch recorda o conflito nos Balcãs para estabelecer um paralelismo: “Na crise no Kosovo, os sérvios tinham a perceção de que se colocassem meios de comunicação ocidentais rapidamente nos locais bombardeados pela NATO, isso iria minar o apoio público pela intervenção da NATO. Eles tinham algo a ganhar com isso.”

Desta feita, a Rússia – que desempenha o papel de nação invasora - não tem o mesmo interesse. “Suponho que os russos sintam que não haja muito a ganhar por tentarem jogar com a opinião pública europeia. Estão mais preocupados com a opinião pública do seu país. Por essa razão, será muito difícil que correspondentes ocidentais se aproximem dos homens do lado russo”, explica o antigo jornalista.


Sempre dos dois lados?

O conflito na Ucrânia é “absolutamente diferente de todos os anteriores” e uma das suas principais características é cruzar “três tempos distintos”: a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial e o século XXI, aponta Carla Baptista, especialista em história dos media e docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, à Renascença.

A Primeira Guerra Mundial foi “a primeira vez em que nós deixámos de ter acesso ao outro lado. Tivemos também uma grande dificuldade do lado dos Aliados em saber o que estava a acontecer e vice-versa”, recorda. Por outras palavras: o que está a acontecer na Ucrânia, no campo dos media, já aconteceu no passado.

Não há coberturas jornalísticas perfeitas e totais. E isso tem consequências. Uma, por exemplo, é a inexistência de uma visão macro do conflito. A cobertura da guerra na Ucrânia “dá-nos frescos de locais, que têm um valor informativo grande, mas que não têm um valor explicativo muito grande. Acho que todos nós temos a sensação de estar um bocadinho no escuro”, nota Carla Baptista.

Para haver testemunhas – leia-se, jornalistas - de ambos os lados, a Rússia teria de ter interesse nisso; teria de se expor a observadores externos que certificassem a narrativa que o Kremlin tem montado. Em vez disso, adotou o modelo de comunicação que já empregara na Segunda Guerra Mundial. “Comunicações extremamente hierarquizadas, com um ou dois interlocutores basicamente”, de modo a evitar o surgimento de contraditórios, diz Carla Baptista.

Há ainda que somar o século XXI à equação. A guerra na Ucrânia ocorre hoje assente num modelo de comunicação baseado na internet. “Temos uma produção, uma exuberância, uma proliferação que nunca antes existiu na História, nunca antes este dispositivo tinha sido colocado ao serviço de uma informação militar.” Algo “vital para os ucranianos”.

À Renascença, Dora Santos Silva, também docente na FCSH, alerta que é importante não cair na “ingenuidade de dizer que não havia desinformação antes”. Dito isto, a campanha (narrativa) do conflito que a Rússia tem feito – por via dos órgãos de comunicação russos ligados ao Kremlin – é singular.

“Mesmo que estejam jornalistas do lado da Rússia, é impossível fazer uma cobertura eficaz, não é possível. Não sai informação cá para fora. Portanto, a única informação a que temos acesso é aquela que nos vem do lado da Ucrânia, onde conseguimos reportar do lado da Ucrânia”, afirma.

A investigadora aponta ainda outra limitação no acompanhamento dos militares russos. “Muitos não sabem o que está a acontecer. São alvos de uma narrativa de desinformação, quase uma lavagem cerebral. Portanto, não conseguimos ver o outro lado, porque não existe outro lado, por assim dizer.”

“Podes dizer: temos de ir à procura do contraditório. Mas aqui não há contraditório, porque o contraditório é falso. A versão da Rússia são sempre relatos falsos.”

Desde o início da guerra, lembra Dora Santos Silva, o Observatório dos Media Digitais Europeus começou a compilar listas de notícias vindas da Rússia. “É quase como se o contraditório que estamos a fazer fosse o fact-checking [verificação dos factos] da guerra. É quase um paradoxo.”

Normalmente, o fact-checking é feito às declarações de um indivíduo, não de uma nação inteira.

Memória curta, consequências longas

Desde o início da guerra, a Rússia “não comunica com o ocidente ou comunica de forma absolutamente propagandista e manipulatória”. Mas o Ocidente também cortou as linhas que existiam com o Kremlin.

“O Ocidente não parece desejar ou falar o conhecer o lado russo. E essa posição isolacionista é uma coisa que compromete uma solução, a não ser uma solução que se resolva pela força militar e isso não parece ser possível para já. Pode conduzir a um conflito que se eterniza no tempo e no espaço com grande dano, sobretudo para os ucranianos”, diz Carla Baptista.

Em 2017, Jake Lynch recebeu o prémio da Paz do Luxemburgo, atribuído pela Fundação Schengen e o Fórum Mundial para a Paz. O motivo: o antigo jornalista da Sky News dedica-se há anos à investigação no campo do Peace Journalism (Jornalismo pela Paz) – prática que dá prioridade a noticiar tentativas de cessação de conflitos, “lembrar o que foi dito no passado” e olhar para além das “fontes de elite”.

Na opinião do especialista, houve uma mudança importante no conflito na Ucrânia: “Nos primeiros dias o presidente Zelenskiy estava a dar sinais de que a Ucrânia estava preparada para negociar um acordo com a Rússia, em que iria existir um grande nível de autonomia para as províncias [de Donetsk e Lugansk] de leste. E que a Ucrânia iria voltar à sua posição anterior de neutralidade, não se juntar à NATO. Isso parece ter desaparecido.”

Algures no tempo, deixou de existir uma busca por uma solução pacífica para uma luta de desgaste contra a Rússia – prioridade imposta pelos Estados Unidos. “A convulsão quando a Rússia invadiu a Ucrânia foi de simpatia para com as pessoas ucranianas. Agora, parece que essas pessoas estão a ser instrumentalizadas para enfraquecer as forças militares russas. E não considero que isso esteja em linha com as expectativas das pessoas à partida”, afirma.

Em março, Joe Biden deixou escapar: "Pelo amor de Deus, este homem [Putin] não pode permanecer no poder."

A Ucrânia é agora um pião nas mãos dos EUA? Lynch recorda um memorando famoso do Pentágono – divulgado pelo “New York Times” em 1992 –, assinado por três futuros membros do Executivo de George W. Bush, que desenhava uma “nova arquitetura de segurança” mundial. Aí, era explicitado como “enfraquecer” as potências que nasceram no seguimento do fim da União Soviética.

O mesmo memorando defendia ainda o reforço da NATO e a “importância de evitar encontrar soluções individuais de segurança [dos países europeus] que excluíssem a NATO”.

Os jornalistas "do outro lado"

Como qualquer cidadão, os jornalistas votam, têm afinidades eletivas. Ter filiação partidária não é um “obstáculo a que seja um bom jornalista”. “Não há nada na lei portuguesa que impeça os jornalistas de ter filiação partidária”, lembra Carla Baptista.

As inclinações pessoais, porém, não devem levar a “um discurso partidarizado” no exercer da profissão. No caso da guerra na Ucrânia, “a estruturação da opinião pública é muito dependente dos media. E isso coloca responsabilidades acrescidas. A haver uma ligação menos clara, menos transparente com um dos lados, isso deve ser assumido”, diz.

Segundo Dora Santos Silva, de modo a evitar emaranhados de pós-verdade, é necessário ir à raiz do problema. “Há um código deontológico. E a primeira obrigação do jornalista é para com a verdade. Acho que isso diz tudo. Não pode ser influenciado pelas suas simpatias políticas”, reitera.

Os órgãos de comunicação, os editores que distribuem tarefas, defende a investigadora, deviam ter atenção a este tipo de situações. “Até pelas repercussões que têm na opinião pública.” No final, é o jornalismo como um todo, não o jornalista, que arca com as consequências.

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  • Joaquim valerio
    09 mai, 2022 Almada 21:45
    O jornalismo é como as eleições quando são ganhas por alguém com 90 e tal porcento não tenho dúvidas que são falsas. A unanimidade do nosso jornalismo em condenar a Rússia e elogiar a Ucrânia também não deixa espaço para dúvidas, falsidade e propaganda é o que nos entra diariamente pelos diversos meios de (des)informação. Pelo menos podia nos permitir ver também a propaganda do outro lado.
  • Eu
    08 mai, 2022 Lisboa 08:22
    Tenho visto na TV1 Russa variadas notícias sobre a guerra, entre elas reportagens em situações de combate (ao contrário do que fazem os repórteres portugueses) e outras em que exactamente as mesmas pessoas que são entrevistadas pelo ocidente lá são notícia, por cá não passam por não servir o interesse pago. Cheio de ver "última hora" com escolas bombardeadas, veria com interesse uma reportagem bem feita sobre os actuais grupos de extrema direita existentes na Ucrânia, sobre as suas influências e actividades, bem como uma reportagem séria sobre o endividamento da Ucrânia com os países simpatizantes que fornecem armamento e sobre a forma como esse endividamento irá ser pago e por quem (bem vindos à UE).

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