Reportagem

Volodymyr, o português que ficou em Brovary a ver a guerra do nono andar

02 mai, 2022 - 21:41 • José Pedro Frazão, enviado especial à Ucrânia

Esta é a história de um luso-ucraniano que primeiro quis sair e depois quis ficar na sua cidade numa das zonas de batalha com os russos às portas de Kiev. Assistiu aos combates de um nono andar enquanto o filho e a neta se refugiavam na cave . Foi um mês de alarmes, bombas e de falta de comida para muitos. Um mês depois do cerco a Brovary, este cidadão português prepara o regresso ao nosso país.

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Não é a primeira nem a segunda vez que o vento desafia o gravador de reportagem na Ucrânia. Há sempre uma aragem, às vezes suave, outras vezes cortante, por estas paragens, sobretudo quando as temperaturas estão mais agrestes.

Desta vez, a manhã está amena no Parque da Vitória em Brovary, arredores de Kiev, onde corre a mesma brisa contínua que nos perfuma a conversa. Um homem alto e agasalhado, incluindo de chapéu, caminha na nossa direção e não se consegue tirar os olhos do pormenor da barba gigante e branca que ostenta.

"Como está? ", disse, quando percebi que aquele senhor, que suspeitaria ser Volodymyr, aproximava-se num passo lento de quem tem 64 anos e muitos quilómetros nas pernas. Usar a língua portuguesa nestas paragens serve de senha para confirmar que aquele é mesmo o cidadão português Volodymyr Naumenko, nascido nos arredores de Brovary, cidade onde vive com um filho e uma neta, com um quarto de século de biografia em Portugal.

Vim para saber como foi essa aventura de resistir na cidade à artilharia russa que, nas primeiras semanas de ofensiva terrestre, fez um cerco parcial à capital. A partir de certo momento, percebemos que todas as histórias partem do mesmo cais, à mesma hora: "no dia 24 de fevereiro, estava eu a dormir, eram 5 horas da manhã e ...Buuuuuum", exclama Volodymyr, prolongando muito a vogal, pois o alvo era Burispil, o aeroporto internacional que fica à distância de uma caminhada de 30 minutos. E mais "Buum ! Buum!” veio a seguir e nas notícias "contaram que a guerra começou".

A decisão de ficar

Volodymyr trabalhou 25 anos em Portugal, primeiro a reparar barcos na Marina de Vilamoura, depois a abrir uma mercearia em Lisboa. Acabou a apostar numa clínica de “medicinas alternativas”, que deixou quando quis internacionalizar - até agora sem sucesso - uma patente curativa de cancro.

"Sou português e preciso de apoio do meu país para sair daqui", disse ao telefone a uma funcionária da embaixada, no dia da primeira bomba, quando já sabia que todas as estradas estavam bloqueadas. O tempo passou sem resposta e o relato de Volodymyr dá a entender que a comunicação com a estrutura diplomática portuguesa não foi fácil naquelas horas confusas de fevereiro. Procurando alternativas por Portugal, deram-lhe um contacto de um advogado que também pouco adiantou.

Mais tarde, uma voz calma e grave da embaixada sugeriu-lhe a rota de saída pela estação de comboios de Kiev.

A decisão final foi a de ficar em Brovary. "Não posso deixar o meu filho de 40 anos sozinho com a minha neta de 5 anos. Ele não tem esposa e mesmo sabendo que correm histórias na fronteira de que se paga para passar, fiquei cá com eles", diz Volodymyr. A propósito deste e doutros pretextos, por aquela breve brisa da tarde passou um furacão verbal contra a corrupção no seu país. Está tudo gravado, apesar do vento.

Tanques nas ruas, gente nas caves

Brovary está a tantos quilómetros de Kiev como Irpin ou Bucha. Faziam parte de um anel de primeira linha de defesa num raio de 25 mil metros em torno do centro da capital. Brovary, mais a leste e a nordeste, travava a progressão das forças terrestres que vinham de Chernihiv e Sumy. Foram travadas fortes batalhas nas aldeias nos arredores e ainda há muitos tanques calcinados remanescentes nestas zonas que mostram bem a ferocidade dos combates. A cidade foi constantemente bombardeada, com misseis e também artilharia russa desencadeada a partir de posições de aproximação a uma cidade que tem mais de 100 mil habitantes.

"Durante o dia, o alarme antiaéreo tocava três ou quatro vezes por dia. A minha neta ouvia o alerta e começava a chorar, pelo que a opção deles foi abrigar-se diariamente numa cave bem preparada que foi deixada com uma chave por uns vizinhos amigos", explica Volodymyr. Mas o homem que ajudou a marear no Algarve ficou sempre nas alturas do nono andar que comprou em Brovary. "Nunca tive medo" diz o senhor Naumenko, relatando apenas a grande dificuldade por exemplo em comprar pão sob bombas.

“As lojas estavam cheias de pessoas, mas as prateleiras estavam vazias. Só ao fim de 3 a 4 semanas, as lojas começaram a reabrir. Durante todo esse tempo, pai e filha ficaram no abrigo, só subindo ao nono andar durante o dia para tomar banho e fazer comida para levar para baixo. " A minha neta estava tão assustada que, sempre que ouvia alguma voz mais elevada, começava a chorar", conta o luso-ucraniano.

Com o fecho das lojas, as ruas ficaram vazias de gente e recheadas de blocos de cimento. "Estacionaram aqui os tanques, a cidade ficou muito cheia de tropas. Ninguém estava na rua, carros, nada, durante 2 a 3 semanas. Faltou o pão, os ovos, a carne."

Voltar, o medo e o desejo

Não tem medo de que eles voltem? Lembrei-me de lhe perguntar isto numa tarde no Parque da Vitória em que toda a gente passeia como se não houvesse perigo de bombas a cair a todo o momento, mesmo sem russos em tanques por perto. Quando se fala em russos, Volodymyr sobe ao tal nível da indignação das queixas sobre corrupção.

" É inaceitável esta estupidez de um soldado matar um civil. Quantas mulheres foram violadas? Quantos homens foram mortos? Não há garantias de que não venham", diz Volodymyr ao vento de Brovary. Mas também ele não tem a certeza de sair. "Estamos a pensar mudar para Portugal", diz pela primeira vez na conversa.

Uma das netas nasceu em Portugal, outro dos seus dois filhos está na Polónia. Volodymyr diz que em Portugal " a lei é cumprida como a lei", voltando ao tema da corrupção. Quer aplicar no seu e nosso país aquele produto de que tem patente para retardamento do processo de envelhecimento e precisa de mais colaboradores para os testes clínicos.

Volodymyr está à espera do melhor momento para atacar o mercado e cruzar a fronteira para o país de que é cidadão pleno de direitos.

"Temos de ir, não de fugir. Vou para um país onde tenho a honra de ser cidadão, mesmo indo de mãos vazias”. Sente-se mais português do que ucraniano, é isso? O senhor Nausenko diz que sim. Ato contínuo, tira a carteira onde estão um cartão de cidadão e carta de condução emitidos pela República Portuguesa.

"Muito obrigado ao povo que me ajudou tanto, como ninguém me ajudou em 64 anos". E despedimo-nos com um "até breve", em Belém ou Brovary.

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