Max Schrems. "Herói da privacidade" elogia cancelamento de envio de dados dos Censos para os EUA

12 jul, 2021 - 16:24 • Inês Rocha

O ativista pela privacidade austríaco, que emprestou o nome às duas decisões do tribunal europeu sobre transferências de dados para os Estados Unidos, elogia a CNPD pela decisão de travar o eventual envio de dados dos Censos 2021 para os EUA, através da Cloudflare. Max Schrems admite, no entanto, que o problema das partilhas ilegais de dados com os EUA é tão sistémico que não há, para já, uma solução à vista.

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Quando ouviu falar da decisão da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) de impedir uma eventual transferência de dados de portugueses para os Estados Unidos, através da norte-americana Cloudflare, Max Schrems diz ter ficado “contente”.

“Foi interessante porque foi uma das primeiras decisões na Europa sobre isso. Muitas das autoridades deram orientações e disseram 'não está autorizado a fazer isso, não deve fazê-lo, etc'. Mas ainda não aplicaram realmente nada”, diz o ativista austríaco, em entrevista à Renascença.

Schrems apelida a posição da CNPD como “uma das poucas decisões corajosas na Europa” desde a última decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de julho de 2020, e lamenta que os reguladores não atuem mais para fazer cumprir as leis europeias.

“Normalmente, ficamos contentes se os reguladores avançarem. Mas honestamente, eles provavelmente deveriam agir mais”, considera.

O ativista austríaco é o responsável pelo fim dos acordos sobre transferência de dados entre Estados Unidos e União Europeia, em dois processos a que emprestou o seu nome - “Schrems I” e “Schrems II”. Mas vê as decisões do tribunal europeu muito pouco respeitadas.

"O Tribunal de Justiça foi muito explícito a dizer que a transferência de dados é ilegal, mas porque toda a gente o faz, as autoridades normalmente não começam a aplicar. É um pouco como o ovo e a galinha, se não há aplicação da lei, as empresas não vão mudar a sua política, e se ninguém muda a política, é sempre necessário aplicar a lei caso a caso. Portanto temos uma espiral negativa de não cumprimento massivo”, diz Schrems.

Em abril, a CNPD ordenou ao Instituto Nacional de Estatística (INE) que travasse o envio de dados dos Censos 2021 para os Estados Unidos, através da norte-americana Cloudflare.

O INE negou sempre que os dados tenham sido alguma vez transferidos para os Estados Unidos, mas acabou por cancelar o contrato com a empresa.

Schrems preferia não ser um “herói da privacidade” na Europa

O facto de ser visto como uma “super-estrela” da privacidade na Europa não é motivo de particular alegria para Max Schrems. Para o advogado austríaco, conhecido pelas lutas em tribunal com gigantes tecnológicos como Facebook e Google, isso é apenas sinal de que há algo errado com a aplicação da lei na União Europeia.

“Se os reguladores fizessem o seu trabalho, se não houvesse violações tão maciças, então não haveria necessidade de um simples estudante se tornar a vanguarda da privacidade. Seria ridículo. Mas como a aplicação da lei é tão má, se há apenas um tipo que alguma vez foi a tribunal, ele é, de repente, o herói da privacidade”.

Max é fundador do Noyb ("None of your business"), uma ONG que luta pela defesa da privacidade na União Europeia. Antes tinha fundado a organização "Europa versus Facebook”, com a qual moveu vários processos contra o Facebook. Dois desses processos foram particularmente importantes para definir as regras das transferências de dados entre União Europeia e Estados Unidos - e foi neles que a CNPD se baseou para a decisão sobre a utilização do serviço da Cloudflare nos Censos.

Qual o problema desta transferência? A União Europeia só permite a exportação de dados pessoais se o país de destino garantir o mesmo nível de proteção dos dados que o regime da UE - algo que não acontece nos Estados Unidos, tendo em conta as leis e as conhecidas práticas do Governo de vigilância sobre a população, incluindo sobre estrangeiros.

No processo “Schrems I”, em outubro de 2015, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu invalidar a Decisão “Porto Seguro” (Safe Harbour Decision), que até então regulava as transferências de dados pessoais da UE para organizações norte-americanas, por considerar que não oferecia um nível de proteção suficiente.

Após um longo período de negociações, em julho de 2016, os EUA e a UE acordaram um novo enquadramento legal para as transferências transatlânticas de dados pessoais - o “Escudo de Protecção da Privacidade UE-EUA” (EU-U.S. Privacy Shield). Mas em julho de 2020, o tribunal invalidou também este acordo, na decisão “Schrems II”.

Max defende um “acordo internacional contra a espionagem”

Muitos apelidaram a decisão da CNPD sobre o INE de “radical”, argumentando que o serviço da Cloudflare não armazenava dados dos Censos - apenas fazia uma interceção dos mesmos para prestar o seu serviço, de desempenho e segurança dos servidores no site. Assim, para o Governo norte-americano aceder aos dados, teria de mandatar a empresa para que os intercetasse em tempo real, com o objetivo de fazer espionagem.

Questionado pela Renascença sobre este argumento, Max Schrems afirma que é “exatamente assim que funciona o Upstream”.

“Upstream” é um sistema de vigilância da NSA “que tem de aceder aos dados em tempo real”. Para isso, utiliza as redes de transporte e de fornecimento de conteúdos, “que são hoje uma grande parte da espinhal dorsal da Internet”, explica Max Schrems. O ativista lembra ainda que “a FISA, a principal lei de vigilância, mas também a ordem executiva EO 12333 não têm uma limitação geográfica".

“Assim, desde que uma empresa americana tenha acesso aos dados, não importa onde se encontrem no mundo, e desde que possam ter acesso remoto, se tiverem algum tipo de forma de os integrar num software que encaminhe os seus dados para os EUA, têm de o fazer”, explica Schrems.

O ativista explica que esta não é uma prática exclusiva dos Estados Unidos - “fazemos a mesma coisa também na Europa. Se uma empresa austríaca tiver alguma informação secreta, mesmo que a guardem num servidor indiano, têm na mesma de a fornecer ao governo se houver uma ordem judicial”.

Mas há algo que é exclusivo dos Estados Unidos: “eles têm uma diferenciação entre cidadãos e não-cidadãos. Quando não se é cidadão, basicamente não se tem direitos. E isso é algo que penso ser a questão central que temos de resolver - os EUA precisam de alterar as suas leis para que também os estrangeiros tenham algum tipo de direitos básicos”, considera o ativista austríaco.

Para Max, casos como o Wikileaks vieram provar que a espionagem é uma realidade dos Estados Unidos. “É muitas vezes para espionar governos estrangeiros, indústrias estrangeiras, académicos, jornalistas”.

Para minimizar o problema, seria necessário um “um acordo internacional contra a espionagem”, com algumas regras. Por exemplo, “que diga que só se pode espiar as pessoas se houver um juiz que o tenha aprovado”. Ou que obrigue a que as pessoas sejam informadas de que foram espiadas, uma vez terminada a operação, caso se conclua que a investigação não se justificou, sugere o ativista.

No entanto, Max Schrems considera que isso não irá acontecer enquanto não houver pressão por parte das próprias empresas norte-americanas.

“A indústria tem-me dito que pode pressionar Washington a mudar a lei, mas não vê necessidade. De qualquer modo, a Europa não está a fazer nada a esse respeito”, diz o advogado.

A indústria diz: “porque havíamos de desperdiçar o nosso capital político para a reforma da vigilância sobre estrangeiros, quando preferimos fazer lobby por menos impostos?”

A decisão da CNPD foi “dogmática”, mas “é assim que a lei funciona”

Max Schrems concorda com os críticos que dizem a decisão da CNPD, de ordenar o fim do envio de dados, sem qualquer prova de que eles tivessem efetivamente a ser enviados, é dogmática.

No entanto, o advogado lembra que é “assim que a lei funciona”. “Todo o RGPD é bastante dogmático. E a razão é porque normalmente nunca se tem provas”, explica à Renascença.

Mas por outro lado, “é também muito dogmático dizer que não se tem direitos, a menos que se possa prová-lo, numa situação em que simplesmente não se pode prová-lo”, considera o ativista.

“É por isso que o RGPD segue geralmente uma abordagem mais de meta-regulação. Por exemplo, não é permitido guardar dados que já não sejam necessários. Isso também é dogmático, mas porque nunca ninguém sabe se isso vai ser mal utilizado mais tarde. É muito difícil de provar. Portanto, coloca-se uma linha vermelha no nível em que se pode provar e onde se pode realmente ter um debate sobre o assunto”, explica o especialista.

Problema é “sistémico”. A solução é usar apenas serviços europeus?

Um ano depois da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, muito pouco mudou nas práticas das empresas no que toca a transferência de dados para os Estados Unidos.

A informação continua a ser enviada sem qualquer controlo, sem grande ação por parte das autoridades de proteção de dados.

O Noyb, a organização criada por Max Schrems, já agiu. “Temos neste momento um litígio a envolver o Facebook, a Google, acho que também a Microsoft. Na última declaração da Google, o argumento foi: ‘mas nós temos vedações à volta dos nossos data centers, temos medidas de segurança’”.

“Mas por lei, a NSA só tem de entrar pela porta da frente, não lhes interessam as vedações. É absurdo o que argumentam”, afirma Schrems.

Apesar de estar a tentar que a lei seja aplicada, o ativista não vê uma solução à vista para esta questão. “O problema de que estamos a falar é tão sistémico que todos apontam para outra pessoa. Os reguladores atiram a responsabilidade para a Comissão Europeia, para fazer um novo acordo, a Comissão Europeia atira para os EUA, os EUA atiram para a indústria, a indústria atira novamente para os reguladores. Portanto, é um ciclo interminável”.

Enquanto não há solução, Schrems considera que, a curto prazo, devia haver uma preferência pelos atores europeus.

“Penso que, por vezes, não olhamos muito para alternativas. Estamos tão habituados a estes monopólios que eles são usados de qualquer forma. Mas há empresas na Europa”, lembra o ativista.

“Definitivamente, os serviços europeus são mais do que suficientes, especialmente se estivermos a falar de uma página como a do Instituto Nacional de Estatística de Portugal”, remata.

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