28 abr, 2021 - 00:00 • José Bastos
Depois de tomar posse Biden prometeu 100 milhões de vacinados nos seus primeiros 100 dias na sala oval, e esse marco simbólico foi atingido logo no 58º dia de mandato. Neste momento, quase 30% da população está completamente vacinada, mais de quase 100 milhões de pessoas de um total próximo de 330 milhões. A meio de abril mais de 200 milhões de pessoas já foram inoculadas pelo menos com a primeira dose de alguma das três vacinas disponíveis no país.
Para reativar a economia e libertar o país dos piores índices desde a grande depressão da década de 30 era decisivo travar a pandemia, depois do fracasso inicial na contenção do vírus com o trágico balanço de mais de 570 mil mortos.
Superando a pandemia, Biden não está a ter o mesmo sucesso nas políticas migratórias, outro dos ângulos em que prometeu marcar a diferença para Trump. E na frente externa e na luta climática qual é o balanço dos êxitos e fracasos dos 100 dias?
A análise é de Tiago Moreira de Sá, professor na Universidade Nova de Lisboa, especialista em relações transatlânticas e autor, entre outros, dos livros “História das relações Portugal-Estados Unidos 1776-2015” e “Carlucci Vs Kissinger, os EUA e a revolução portuguesa”.
Biden pretendeu marcar diferenças imediatas para Trump na economia, políticas sociais, política externa, luta climática, mas colocou a vacinação anti-pandemia como a principal meta da agenda dos 100 dias como presidente. Meta superada com sucesso?
O sucesso ou não da vacinação era o primeiro grande teste à administração Biden. Há que dizer que Biden tem uma herança muito boa, a anterior administração Trump esteve bem na compra de vacinas e, pelo menos, nessa área a herança não é má, é boa.
Mas onde é que a administração Biden tem muito mérito? É sobretudo no planeamento e execução do processo de vacinação, porque estava razoavelmente caótico. Mesmo que a maior parte das vacinas chegasse nos prazos contratualizados, no terreno havia um claro problema de organização. Desde então a organização melhorou significativamente, e o plano de vacinação anti-Covid-19 tem avançado a um ritmo tal que a própria administração Biden, ao início, tinha dúvidas de poder cumprir.
Por isso, Biden beneficia da herança de ter as vacinas, mérito da administração anterior, mas no planeamento e execução há muito mérito da atual administração.
Na economia há um colossal plano de modernização de infraestruturas - comparável ao new deal de Roosevelt - e uma ambiciosa reforma fiscal que promete aumentar os impostos das empresas para cumprir a promessa de Biden de reduzir a pobreza infantil e a desigualdade social sistémica. Mas o Congresso promete ser decisivo nestas questões e o processo não vai ser fácil na frente económica...
Não vai ser nada fácil, mas é crucial que corra bem. Quer Biden, quer o próprio Trump, quer mesmo Obama, todos foram eleitos com um mandato claro: reconstruir a América em vez de andar no exterior a reconstruir países como o Afeganistão, o Iraque e outros.
Assim, o que os americanos esperam desde presidente como esperavam de outros é que usem os muitos recursos disponíveis, desde logo económicos, para mudar significativamente a vida da população dos Estados Unidos.
É agora ainda mais importante por causa dos brutais efeitos económicos e sociais da pandemia. Se no imediato a forma de lidar com a vacinação é uma das marcas que vai ficar ligada a esta administração, no médio prazo a grande questão é mesmo o sucesso desse grande e ambicioso plano económico.
Os Estados Unidos da América têm hoje em dia uma série de problemas para resolver na sua economia e inverter um certo declínio - relativo, evidentemente - que se verificou, mas é mais do que isso: é o problema de uma grande questão política para resolver.
Estou convencido de que as profundas divisões que existem na sociedade norte-americana, a própria ascensão do movimento chamado "populista nacionalista", no fundo, a extrema polarização da sociedade tem a ver com várias razões, mas a principal causa relaciona-se com questões económico sociais ligadas com perda de emprego, aumento de desigualdades, longa estagnação dos rendimentos e no final do mandato a administração Biden será, sobretudo avaliada pela capacidade de mudar este quadro.
A América só inverte esta polarização social e o seu declínio relativo se conseguir dar resposta a este tipo de problemas.
No plano externo, Biden tem várias etapas nos primeiros 100 dias na Casa Branca com a China na mira, o desafio a Putin, adeus ao Afeganistão e o regresso à luta climática - "a nova guerra-fria" com Moscovo vai ser chave nas relações euro-atlânticas?
Não lhe chamaria "a nova guerra fria", porque há diferenças grandes face ao que foi a guerra fria, embora o conceito não seja mau de todo, porque há crescentes elementos de bipolaridade no sistema internacional que tem algumas semelhanças com o que foi o funcionamento do sistema na guerra fria.
Mas há diferentes questões: a primeira é que no sistema crescentemente bipolar o grande conflito é agora entre os Estados Unidos e a China. De resto, é um eixo bastante assumido na estratégia interina de defesa nacional e, claramente - ao contrário da campanha eleitoral - a administração Biden admite a ascensão da China como sendo o grande risco para o futuro dos Estados Unidos e os chineses como o grande adversário.
Não usando a palavra ‘risco’, a administração Biden assume também uma espécie de guerra de transição de poder entre os Estados Unidos e a China com várias vertentes como a económica, com guerra comerciais de tarifas aduaneiras, vertente política, normativa, questões como Xinjiang, Tibete e outras.
Já a questão Estados Unidos/Rússia está lá, não é tão essencial como a questão da China, mas é um ponto que muda em relação à administração anterior.
Essa é uma das diferenças na política externa Biden Vs Trump e no fundo consiste nisto: enquanto para a administração Trump, equacionando o mundo a três - Estados Unidos, China e Rússia - havia uma espécie de "Nixon invertido" (durante a guerra fria Nixon aproximou-se da China contra a Rússia) - o que Trump tentou fazer foi abrir à Rússia contra a China, não o conseguindo pelas razões internas que conhecemos.
Com Biden há uma diferença: a ideia de que os Estados Unidos têm de se preparar para competir com agressividade em simultâneo com a China e Rússia, porque o atual presidente está absolutamente convencido de que a Rússia não é de confiança e, em segundo lugar, que para todos os efeitos há uma aliança entre a Rússia e a China contra Washington com o objetivo de inverter a superioridade dos Estados Unidos da América e que não é possível quebrar essa aliança, por ser do interesse comum de Moscovo e Pequim.
Essa é a grande diferença em relação ao passado. Do ponto de vista norte-americano a China é a grande ameaça e a China será central para esta administração, com o já era e vai ser "o tema" para a próxima década ou mais. A Rússia é importante, mas passou a uma espécie de segundo lugar na lista de prioridades da política externa norte-americana.
"Já há um sério problema na fronteira com o México com um significativo grupo de jovens sem pais a tentar entrar nos Estados Unidos e que depois ficam em centros de detenção provisórios. É uma situação de equilíbrio muito complexo, porque se a administração Biden ceder abre uma caixa de Pandora e, amanhã, pode ter milhares de pessoas a tentar entrar nas suas fronteiras"
Se a vacinação foi o grande sucesso nos primeiros 100 dias de Biden, a política de migração está a ser "o problema". O seu modelo de promessas eleitorais terá dificuldades num Congresso dividido e polarizado. A Câmara de Representantes, de maioria democrata, aprovou o plano de regularização de 11 milhões de ilegais, mas no Senado é mais complexo, necessita de 60 votos e tem 50, precisa de convencer 10 republicanos... E no terreno é o caos na fronteira com o México e aumenta o fenómeno dos menores desacompanhados a chocar a opinião pública... Este é "o" fracasso em 100 dias?
Não tenho dúvidas que é. Já desconfiava que viesse a acontecer pelas posições que foram sendo assumidas na campanha eleitoral. A administração Biden está a ser vítima da sua própria "generosidade" das propostas apresentadas na área da migração. Em larga medida seria de esperar que essa abertura fosse aproveitada por muitos atores nesta área.
Neste momento já temos um sério problema na fronteira com o México com um significativo grupo de jovens sem pais a tentar entrar nos Estados Unidos e que depois ficam em centros de detenção provisórios. É uma situação de equilíbrio muito complexo, porque se a administração Biden ceder abre uma caixa de Pandora e amanhã pode ter milhares de pessoas a tentar entrar nas suas fronteiras. Ao não ceder tem um sério problema no interior do Partido Democrata, sobretudo nalguns setores mais à esquerda do partido. Tal como lemos as propostas de Biden para esta área durante a campanha, todos os diretamente interessados também leram, aproveitando as promessas o que está a ser politicamente jogado contra o presidente.
Neste momento, a administração Biden responde de duas formas no plano concreto, duas respostas, do meu ponto de vista, ambas acertadas. Primeiro nomeou a vice-presidente Kamala Harris para lidar com o problema, o que significa conferir peso político à questão, mas também gerir o tema em função das várias sensibilidades do partido.
Em segundo lugar, está a renegociar com os países de origem destas vagas migratórias na América Central de forma a retomar os programas de apoio económico que Trump suspendeu para tentar conseguir que esses movimentos de milhares de pessoas sejam contidos. No fundo, tentar resolver o problema da migração na sua origem e ao mesmo tempo convencer estes governos de países da América Central a não deixar sair os seus cidadãos.
"O grande problema que a América enfrenta para o exercício e estabilização do seu poder, não vem da China, não surge da Rússia, mas vem sim das profundas divisões da sociedade americana, da extrema polarização nos Estados Unidos da América"
E como está a polarização das duas Américas - cujo ponto alto terá sido simbólicamente o incidente do Capitólio - e as tensões internas nos Republicanos...
Acho que essa é a grande questão e a grande diferença - há várias continuidades e distinções - mas esta é a grande diferença da administração anterior de Trump para esta administração de Biden. O problema da polarização não é um novo como todos sabemos. Na versão atual este problema começa nos anos 60, depois vai-se radicalizando até ter um pico de radicalização nos anos 90 e de novo nos últimos anos.
Trump não criou esta polarização, nem pouco mais ou menos. Trump, ele próprio, tinha uma estratégia de poder pessoal político assente na promoção desta polarização. Portanto, desse ponto de vista, extremou ainda mais essa polarização. Trump foi o fator polarizador. O que Biden está a fazer é exatamente o oposto e acho que tem razão. Biden percebe que o grande problema da América, inclusive para o seu declínio relativo, é tentar suavizar a situação interna de extrema polarização política e da sociedade norte-americana.
O sistema político norte-americano foi todo ele constituído para poder funcionar com os ‘checks and balances’, com a separação de poderes, com a constante fiscalização entre poderes na base de acordos e de consensos. Quando este cenário de equilíbrios não se concretiza o governo fica paralisado, o governo em ‘latu sensu’, aquilo que o Francis Fukuyama chamou ‘a decadência da democracia’ e, enquanto isso se verificar, o governo praticamente não consegue funcionar nas questões essenciais e isso significa que a América não consegue inverter o seu declínio relativo. Isto tem uma forte projeção interna, mas também internacional.
Tenho insistido em que o grande problema que a América enfrenta, do ponto de vista do exercício e estabilização do seu poder, não vem da China, não vem da Rússia, mas vem das profundas divisões da sociedade americana, da extrema polarização nos Estados Unidos da América. Só outra questão: foi referida a dificuldade de se obter maiorias sobretudo no Senado. Há uma questão que já está em debate, debate fundamental por ser muito sensível.
A América tem um sistema quase único em que uma parte considerável dos pacotes legislativos, mesmo quando aí não tem origem, devem passar sempre no Senado e, como referido, tem de passar com uma espécie de super-maioria de 60 senadores. Essa exigência significa que as minorias, neste caso a dos republicanos, mesmo estando em minoria (neste caso 50-50 com os votos da vice-presidente os democratas acabam por ter a maioria) os republicanos para todos os efeitos têm a possibilidade de bloquear esta administração Biden, enquanto se mantiver esta composição do Senado.
Este é um problema a ser muito discutido: como se ultrapassa este quadro? - e há mecanismos para isso, mas implicam uma série de consequências – como é que se supera este bloqueio? Não vai ser fácil chegar a uma solução, porque para aprovar a política económica – fundamental para Biden – políticas para as decisões em matéria migratória e outras é muito importante resolver este problema.